goo.gl/0xjEZD | Abstract: Jusfilósofo dos EUA classifica os juízes em quatro perfis. Pode isso ser aplicado ao Brasil? A coluna discute esse tema de forma aberta e franca.
Calma: não é um texto ofensivo ou escrito contra os juízes. Leiam todo o texto. Primeiramente registro as homenagens aos professores Mario Cesar Andrade (UFRRJ), Siddharta Legale (UFJF), Margarida Lacombe e José Ribas Viera (UFRJ) que, de forma desprendida, demonstram a função social da Universidade pública, ao trazerem a lume a nova obra de Cass R. Sunstein. A resenha já está nas redes. Minha função, aqui, além de louvar o trabalho dos professores, é aproveitar a audiência da ConJur para levar mais adiante ainda a boa nova da nova obra do jusfilósofo norte-americano, Constitutional Personae (Oxford University Press, 2015, 171 páginas).
Na obra, Sunstein traça o perfil dos juízes da US Supreme Court a partir da posição que assumem nos julgamentos. Os perfis, que permito-me chamar também de modelos, como já o fizera há tantos anos François Ost (Jupiter, Hermes e Hércules), claro que sob outra perspectiva, aliás criticada por mim a partir de dez pontos,[1] são os seguintes: os heróis (heroes), os soldados (soldiers), os minimalistas (minimalists) e os mudos (mutes).
Vamos a cada um deles: Os heróis: As I am understanding them here, all Heroes can be considered "activist" in the distinctive sense that they are willing to use the Constitution to strike down acts of Congress and of state legislatures.[2] Ou seja, no modo como ele propõe, todos os Heróis podem ser considerados “ativistas” no sentido peculiar de que eles estão dispostos a usar a Constituição para derrubar os atos do Congresso e das legislaturas estaduais. Eles pensam que podem direcionar a sociedade e seus anseios via decisões judiciais. Para eles, o poder judiciário pode ser a vanguarda (iluminista? — inserção minha!) do país, corrigindo o marasmo ou inércia dos demais Poderes. Heróis e ativismo judicial passam a ser duas fazes da mesma moeda, com licença poético-jurídica de minha parte.
Já os soldados caracterizam-se por maior deferência ao processo político, entendendo como seu dever promover a concretização das normas produzidas pelos poderes politicamente legitimados. Os juízes soldados querem concretizar a Constituição, leis e atos governamentais como quem dá cumprimento a ordens superiores, entendendo não lhes competir a redefinição das valorações presentes em tais ordens.[3]
Quanto aos minimalistas, assumem uma postura essencialmente cautelosa. Sob a alegação de um dever de prudência, eles procuram evitar intervenções intensas ou abrangentes, privilegiando as práticas e tradições socialmente sedimentadas. Nesse sentido, os minimalistas preferem atuações mais centradas nos casos sob julgamento, receando da produção de repercussões potencialmente perturbadoras do processo sociopolítico, cujo ritmo próprio de maturação deve ser respeitado.[4]
O quarto perfil é o dos mudos, que, como o nome diz, resignam-se e mantém silêncio diante dos hard cases e das controvérsias que envolvam posicionamentos mais sensíveis. Repetem a jurisprudência já existente, evitando alterações na cadeia discursiva, por assim.[5]
No terreno hermenêutico, uma decisão será produto do campo de batalha entre esses perfis. Por isso, os EUA possuem as diversas “Cortes”, como a comandada por Warren, considerada uma Corte heroica: Because of its effects in invalidating racial segregation, Brown v. Board of Education is the iconic heroic decision, and its author, Chief Justice Earl Warren, is the iconic heroic judge.[6]
Dentre os perfis apresentados, Sunstein afirma preferir o minimalista, conservador e respeitante das tradições, um tipo-ideal-a-la-Edmund-Burke. Entretanto, reconhece que tradições podem ser injustas (inautênticas, na minha leitura hermenêutica). Por isso, Sunstein considera a personae burkeana adequada para a decisão sobre temas institucionais como separação de poderes e federalismo, mas devendo ser relativizada para casos envolvendo o direito de igualdade. O juiz minimalista não é nem um exegeta (convencionalista?) e nem um ativista. Fica entre os perfis de herói e de soldado.
Uma questão importante — ressalvada por Sunstein — é que os perfis não são estanques, variando de acordo com a matéria. Já eu me permitiria a acrescentar que os tais perfis não são ativados “por princípio” e, sim, ideológica e subjetivamente, seja em razão da matéria, seja em função do impacto da decisão a ser produzido. E é neste ponto que começa a minha divergência com a “questão dos perfis”. Todavia, é neste ponto que pode ocorrer, com os devidos cuidados, uma analogia com o que ocorre no Brasil, onde um dia um juiz é herói e no outro é soldado, sendo que, por vezes, atua como minimalista... mas quando a matéria é muito conturbada e a temática entrar em uma zona gris, o magistrado opta pela persona muda. Aqui chegamos ao perigoso paradoxo de termos um perfil herói-mudo, em um mix por vezes inexplicável.
Por tudo isso, temo pela aplicação da tese por aqui. Como explicarei mais adiante, parece-me inadequada uma “transplantação” pelo risco que pode representar uma aplicação “estatística”, gerando uma explicação distorcida da crise do direito brasileiro. Assim, à pergunta se a análise de Sunstein é boa para o nosso direito, diria que há duas respostas. Sim, se você se contenta com o modelo epistemológico que coloca como objeto a análise do que já passou e tem um olhar pessimista sobre as possibilidades de criar critérios que controlem as decisões; não, se compreende a necessidade de que, mediante critérios e uma teoria decisional, é possível influenciar e controlar antes as decisões, reforçando o papel da doutrina e não repristinando concepções realistas sobre o direito.
Não sei se a aplicação resolveria problemas em um sistema fragmentado e ainda dependente da subjetividade, enfim, da posição pessoal-ideológica do juiz. Afinal, embora parcela da comunidade jurídica não goste de admitir, continuamos reféns do paradigma da subjetividade, facilmente constatável no instrumentalismo processual, pela ênfase ao protagonismo judicial e pela crença nos livres convencimentos. Pergunto: Avançaríamos se disséssemos que a recente decisão do STF na ADPF 347, admitindo a tese do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), é a perfectibilização do perfil persona herói?
Tenho dúvidas, até pelo fato de que apareceria alguém para dizer esse julgamento não se enquadra no perfil “herói”. E cairíamos, antes de começar, no velho aguilhão semântico. De minha parte, travo já de há muito uma batalha contra esse quadro ativista. E isso me preocupa. E muito. Mostrei o problema do ativismo e o atendimento de “demandas sociais” pela suprema Corte. Listei uma série de decisões que, no modelo de tipos ideais de Sunstein, podem ser enquadradas como “persona herói”, como julgamentos políticos no sentido de que os resultados dos julgamentos por vezes atenderam reivindicações dos mais diversos setores da sociedade: nações indígenas, cotas raciais, uniões homoafetivas, causas feministas que forma buscar punitivismos no caso da Lei Maria da Penha, questões ligadas aos embriões e células tronco, governadores envolvidos em guerra fiscal, reivindicações de prestação de saúde via judicialização, moralização das eleições (ficha limpa); até o parlamento saiu-se bem, pois, conseguiu validar quase 500 medidas provisórias convertidas em lei em flagrante violação aos parágrafos 5º e 9º do artigo 62 da Constituição, graças a uma modulação de efeitos concedida pelo STF... E assim por diante. As decisões estiveram teleologicamente corretas? Principiologicamente incorretas (algumas)? Aí é que está o problema. Julgamentos não devem ser teleológicos, como venho dizendo de há muito e não reprisarei os argumentos. Veja-se, agora, a descriminalização das drogas, matéria legislativa e que o STF aceita decidir. Observe-se também a recentíssima decisão sobre o remédio não-testado para tratamento de câncer. E assim por diante (não importa, aqui, se esses “demais poderes” “mereceram” essa invasão ou não, em face de suas inércias). Talvez o grande problema esteja na distinção entre judicialização e ativismo, que poderia/deveria “segurar um pouco” a personae herói, dando-lhe boas pitadas da personae minimalista.
Sigo. Como tipos ideais, admito que a ausência de regra para apreciação de habeas corpus (o utente tem de torcer para que o writ seja não conhecido e ser concedido de forma discricionária) pode estar denunciando a presença em demasia do perfil personae muda. Agora mesmo na decisão sobre a permissão da entrada em domicílios sob suspeita de crime permanente, há indícios fortes da persona soldado (sem qualquer trocadilho ou ironia). Já no caso Donadon (MS 32.326), sobressaiu-se o perfil herói, que se manifestou — monocraticamente, é verdade — para contrariar a decisão anterior (tomada majoritariamente) a partir de uma postura (correta) que, ao meu ver, pode ser tida como soldado-minimalista, pela qual quem deve cassar mandatos é o parlamento. Pois o perfil herói acabou puxando — de forma equivocada — para o STF a prerrogativa de cassação do mandato naquele caso. O modus operandi do juiz Sergio Moro é, esculpido em carrara, o personae herói (respondo uma pergunta que viria, à toda evidência).
Temo que os perfis formatados por Sunstein sejam utilizados para fazer estatísticas com números tirados dos sites dos tribunais, o que, muitas vezes, mais encobre do que revela. Penso que devemos recepcionar a tese com muito cuidado. Corre-se o risco de ser mais uma de tantas pesquisas de perfil realista, preocupada em descobrir como os juízes decidem depois que já decidiram e não como eles devem decidir. Sempre o fantasma do velho realismo a nos assombrar.
Há o sério risco de se deslocar as pesquisas para o vértice “decisão”, como, por exemplo, dar ênfase a um agir estratégico, como, por exemplo, preocupar-se com o que os juízes vestem, comem, votam, etc., e dali tirar um perfil da persona, como se isso importasse (ou melhor, como se isso fosse condição de possibilidade) para se compreender como, por exemplo, um tribunal deve julgar os recursos que a ele são interpostos. Lembro-me do julgamento do mensalão e professores falando até da alimentação dos ministros. Bom, se o direito é isso, ou seja, se acreditamos que o direito é, ao fim e ao cabo, o que os juízes dizem que é, então só nos resta torcer para que nossa causa caia na mão daquele cujo perfil não seja contrário à causa que defendemos. Ou seja, um fatalismo tipo “já que não conseguimos controlar epistemicamente os juízes, contentemo-nos em traçar boas estratégias”... Agir como um vidente do passado, o que é um problema por aqui, porque, em Pindorama, nem as previsões sobre o passado são confiáveis. Em outras palavras: corre-se o risco de apostar mais nas estratégias (jogo) do que na teoria, algo como “calculo, estatisticamente, como vêm decidindo e ‘me enquadro’”. Resultado da partida: goleada. Agir estratégico 10x0 teoria do direito.
Por isso, a variável “personae dos juízes” não deve assumir esse patamar dado por Sunstein e certa sociologia jurídica. Talvez seja por isso que Sunstein, equivocadamente, classifique Dworkin como um “juiz herói”, pela leitura forçada que faz de outro suposto modelo, o juiz Hércules, quando este, na verdade, nada mais era do que a própria metáfora da exigência normativa de que as decisões judiciais sejam corretas, a partir da coerência e da integridade. Vale dizer, Hércules funciona como um arquétipo para descrever de que modo é possível afirmar uma teoria dos direitos. A questão aqui passa por uma diferença entre o “que” e o “como”, ou seja, mais do que simplesmente descrever de que modo os variados tipos de juízes se comportam quando exaram suas decisões, importa saber “como” devem se comportar quando examinam o direito com responsabilidade política. Esse “como” depende da observação de certos aspectos que vão além de um mero traço de personalidade ou inclinação subjetiva. Depende de uma concepção abrangente do direito que seja construída a partir do conjunto de princípios que incorporam a moralidade da comunidade política. Ou seja, há sempre algo “não empírico” que escapa dessa análise comportamental pretensamente “objetiva”. E é justamente esse “algo mais” que faz toda a diferença.
De todo modo, registre-se que o próprio Sunstein alerta para o fato de que seus perfis devem ser analisados ao lado de outros componentes, como o modo como os juízes votam (modelo seriatim, como no Brasil) e/ou a exigência ou não de unanimidade, com discussão antes do veredicto. Entretanto — permito-me dizer — tudo isso parece torcer pela vitória de certo tipo de sociologia, que sempre corre o risco de ser por demais “profeta do que já passou” e por vezes até mesmo banal, ao pretender fazer com que a doutrina perca seu papel crítico próprio, que é o de também zelar pela racionalidade do direito, retroalimentando argumentativamente os debates jurídicos de uma "sociedade aberta de intérpretes da Constituição".
Para quem quiser se empolgar com os perfis e sair por aí fazendo classificações, deixemos Sunstein falar: We have seen that as a matter of principle, it makes no sense to adopt a particular Persona for all occasions, and indeed few people do so. The right persona is a product of a right theory of interpretation.[7] Isto é, por uma questão de princípio, não faz sentido adotar uma Persona particular para todas as ocasiões, e de fato poucas pessoas fazem isso. A Persona certa é um produto de uma teoria certa da interpretação.
Quero que entendam bem. O direito deve ter um grau de autonomia. Deve-se resguardar dos predadores endógenos e exógenos. A subjetividade descontrolada é um predador endógeno. A política e a moral são perigosos fatores exógenos. Se ficar dependente de posições pessoais ou de “encaixes em perfis” — que, por acaso, podem variar exatamente em face da subjetividade de seus protagonistas — o (direito do) país coloca em sério risco as suas possibilidades de construir teorias próprias ou teorias que sirvam para criar previsibilidade. Imaginemos o exemplo de uma ADI absolutamente impactante, em que o placar esteja em 5x5; o último a votar é visto (enquadrado) pela comunidade jurídica como minimalista, mas como o caso trata de uma questão religiosa, ele se transmuda para o perfil “herói”. Ou quando todos esperam um voto heroico e dali sai um voto mudo? De que adiantou a pesquisa empírica sobre os perfis, em um caso destes? Afinal, se um perfil se manifesta de forma ad hoc, é ele, ainda, um perfil?
Por isso, embora louvando a preocupação de juristas da cepa como Sunstein e de tantos outros aqui do Brasil preocupados com essa problemática do tipo “afinal, como os juízes decidem”, prefiro continuar a apostar em um vetor de racionalidade estruturante, que vem antes de analises apofânticas e/ou sociológicas. Mas isso não quer dizer que as análises como as de Sunstein não sejam importantes. De novo, meus cumprimentos a todos que se dedicam a essa tarefa de investigar o imaginário dos juízes. Com certeza, temos todos um bom combate pela frente contra um adversário comum: qualquer forma de não-democracia e qualquer forma de arbítrio.
Não me agradaria ver o problema da decisão jurídica reduzida a um quadro, contendo números e perfis, algo como “nos últimos 5 anos o STF julgou 300 habeas corpus, dos quais 50 tiveram o perfil heróis,75, soldado, etc; ou 1003 ADIs, cujo resultado foi: 322 minimalistas, 188 mudas...”. Antes disso, preferiria que discutíssemos a teoria do direito, as razões pelas quais a teoria do direito ainda tem certa aversão a admitir os influxos dos paradigmas filosóficos, as razões pelas quais há tanta paixão pela moralização do direito, desmistificar coisas simples “quem inventou esse negócio de que princípios são valores”, “o que é isto — o pamprincipiologismo”, “porque, em pleno século XXI, o projeto do novo Código de Processo Penal insiste na livre apreciação da prova”, “porque há tanta resistência ao NCPC”, “porque nos queixamos das decisões e não reclamamos das posturas consequencialistas”, “porque achamos a discricionariedade uma ‘coisa natural’”, etc.
Para finalizar e demonstrar os cuidados que se deve ter na Teoria do Direito, deixemos Sustein falar de novo e nos confortar:
1 STRECK, Lenio Luiz. O (Pós-)Positivismo e os propalados modelos de juiz (Hércules, Júpiter e Hermes) - dois decálogos necessários. In: Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 7, p. 15-45, jan./jun. 2010. Texto publicado em quatro línguas.
2 SUSTEIN, Cass. E. Constitutional Personae. Nova Iorque: Oxford University Press, 2015. Chapter One, Heroes. Como se trata de um livro em formato epub, as páginas não estão especificadas, variando conforme o tamanho da resolução.
3 Op.cit. o espaço da coluna não permitiu a transcrição original em inglês.
4 Op.cit., idem.
5 Op.cit, idem.
6 “Devido aos efeitos da invalidação da segregação racial, Brown v. Board of Education é a típica decisão heróica, e seu autor, Juiz Earl Warren, é típico Juiz Herói”. Op.cit., chapter One, Heroes.
7 SUSTEIN, op.cit, Closing Words, Rules of Attarction.
8 “Eu me posicionei em favor de um entusiasmo geral para o Minimalismo, no sentido de que o minimalismo é bem apropriado para as virtudes institucionais e limites do Judiciário. Mas o minimalismo não é uma teoria completa da interpretação, e dificilmente é uma abordagem para todos os tempos e todas as estações”. Closing Words, Rules of Attraction.
Por Lenio Luiz Streck
Fonte: Conjur
Calma: não é um texto ofensivo ou escrito contra os juízes. Leiam todo o texto. Primeiramente registro as homenagens aos professores Mario Cesar Andrade (UFRRJ), Siddharta Legale (UFJF), Margarida Lacombe e José Ribas Viera (UFRJ) que, de forma desprendida, demonstram a função social da Universidade pública, ao trazerem a lume a nova obra de Cass R. Sunstein. A resenha já está nas redes. Minha função, aqui, além de louvar o trabalho dos professores, é aproveitar a audiência da ConJur para levar mais adiante ainda a boa nova da nova obra do jusfilósofo norte-americano, Constitutional Personae (Oxford University Press, 2015, 171 páginas).
Na obra, Sunstein traça o perfil dos juízes da US Supreme Court a partir da posição que assumem nos julgamentos. Os perfis, que permito-me chamar também de modelos, como já o fizera há tantos anos François Ost (Jupiter, Hermes e Hércules), claro que sob outra perspectiva, aliás criticada por mim a partir de dez pontos,[1] são os seguintes: os heróis (heroes), os soldados (soldiers), os minimalistas (minimalists) e os mudos (mutes).
Vamos a cada um deles: Os heróis: As I am understanding them here, all Heroes can be considered "activist" in the distinctive sense that they are willing to use the Constitution to strike down acts of Congress and of state legislatures.[2] Ou seja, no modo como ele propõe, todos os Heróis podem ser considerados “ativistas” no sentido peculiar de que eles estão dispostos a usar a Constituição para derrubar os atos do Congresso e das legislaturas estaduais. Eles pensam que podem direcionar a sociedade e seus anseios via decisões judiciais. Para eles, o poder judiciário pode ser a vanguarda (iluminista? — inserção minha!) do país, corrigindo o marasmo ou inércia dos demais Poderes. Heróis e ativismo judicial passam a ser duas fazes da mesma moeda, com licença poético-jurídica de minha parte.
Já os soldados caracterizam-se por maior deferência ao processo político, entendendo como seu dever promover a concretização das normas produzidas pelos poderes politicamente legitimados. Os juízes soldados querem concretizar a Constituição, leis e atos governamentais como quem dá cumprimento a ordens superiores, entendendo não lhes competir a redefinição das valorações presentes em tais ordens.[3]
Quanto aos minimalistas, assumem uma postura essencialmente cautelosa. Sob a alegação de um dever de prudência, eles procuram evitar intervenções intensas ou abrangentes, privilegiando as práticas e tradições socialmente sedimentadas. Nesse sentido, os minimalistas preferem atuações mais centradas nos casos sob julgamento, receando da produção de repercussões potencialmente perturbadoras do processo sociopolítico, cujo ritmo próprio de maturação deve ser respeitado.[4]
O quarto perfil é o dos mudos, que, como o nome diz, resignam-se e mantém silêncio diante dos hard cases e das controvérsias que envolvam posicionamentos mais sensíveis. Repetem a jurisprudência já existente, evitando alterações na cadeia discursiva, por assim.[5]
No terreno hermenêutico, uma decisão será produto do campo de batalha entre esses perfis. Por isso, os EUA possuem as diversas “Cortes”, como a comandada por Warren, considerada uma Corte heroica: Because of its effects in invalidating racial segregation, Brown v. Board of Education is the iconic heroic decision, and its author, Chief Justice Earl Warren, is the iconic heroic judge.[6]
Dentre os perfis apresentados, Sunstein afirma preferir o minimalista, conservador e respeitante das tradições, um tipo-ideal-a-la-Edmund-Burke. Entretanto, reconhece que tradições podem ser injustas (inautênticas, na minha leitura hermenêutica). Por isso, Sunstein considera a personae burkeana adequada para a decisão sobre temas institucionais como separação de poderes e federalismo, mas devendo ser relativizada para casos envolvendo o direito de igualdade. O juiz minimalista não é nem um exegeta (convencionalista?) e nem um ativista. Fica entre os perfis de herói e de soldado.
Uma questão importante — ressalvada por Sunstein — é que os perfis não são estanques, variando de acordo com a matéria. Já eu me permitiria a acrescentar que os tais perfis não são ativados “por princípio” e, sim, ideológica e subjetivamente, seja em razão da matéria, seja em função do impacto da decisão a ser produzido. E é neste ponto que começa a minha divergência com a “questão dos perfis”. Todavia, é neste ponto que pode ocorrer, com os devidos cuidados, uma analogia com o que ocorre no Brasil, onde um dia um juiz é herói e no outro é soldado, sendo que, por vezes, atua como minimalista... mas quando a matéria é muito conturbada e a temática entrar em uma zona gris, o magistrado opta pela persona muda. Aqui chegamos ao perigoso paradoxo de termos um perfil herói-mudo, em um mix por vezes inexplicável.
Por tudo isso, temo pela aplicação da tese por aqui. Como explicarei mais adiante, parece-me inadequada uma “transplantação” pelo risco que pode representar uma aplicação “estatística”, gerando uma explicação distorcida da crise do direito brasileiro. Assim, à pergunta se a análise de Sunstein é boa para o nosso direito, diria que há duas respostas. Sim, se você se contenta com o modelo epistemológico que coloca como objeto a análise do que já passou e tem um olhar pessimista sobre as possibilidades de criar critérios que controlem as decisões; não, se compreende a necessidade de que, mediante critérios e uma teoria decisional, é possível influenciar e controlar antes as decisões, reforçando o papel da doutrina e não repristinando concepções realistas sobre o direito.
Não sei se a aplicação resolveria problemas em um sistema fragmentado e ainda dependente da subjetividade, enfim, da posição pessoal-ideológica do juiz. Afinal, embora parcela da comunidade jurídica não goste de admitir, continuamos reféns do paradigma da subjetividade, facilmente constatável no instrumentalismo processual, pela ênfase ao protagonismo judicial e pela crença nos livres convencimentos. Pergunto: Avançaríamos se disséssemos que a recente decisão do STF na ADPF 347, admitindo a tese do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), é a perfectibilização do perfil persona herói?
Tenho dúvidas, até pelo fato de que apareceria alguém para dizer esse julgamento não se enquadra no perfil “herói”. E cairíamos, antes de começar, no velho aguilhão semântico. De minha parte, travo já de há muito uma batalha contra esse quadro ativista. E isso me preocupa. E muito. Mostrei o problema do ativismo e o atendimento de “demandas sociais” pela suprema Corte. Listei uma série de decisões que, no modelo de tipos ideais de Sunstein, podem ser enquadradas como “persona herói”, como julgamentos políticos no sentido de que os resultados dos julgamentos por vezes atenderam reivindicações dos mais diversos setores da sociedade: nações indígenas, cotas raciais, uniões homoafetivas, causas feministas que forma buscar punitivismos no caso da Lei Maria da Penha, questões ligadas aos embriões e células tronco, governadores envolvidos em guerra fiscal, reivindicações de prestação de saúde via judicialização, moralização das eleições (ficha limpa); até o parlamento saiu-se bem, pois, conseguiu validar quase 500 medidas provisórias convertidas em lei em flagrante violação aos parágrafos 5º e 9º do artigo 62 da Constituição, graças a uma modulação de efeitos concedida pelo STF... E assim por diante. As decisões estiveram teleologicamente corretas? Principiologicamente incorretas (algumas)? Aí é que está o problema. Julgamentos não devem ser teleológicos, como venho dizendo de há muito e não reprisarei os argumentos. Veja-se, agora, a descriminalização das drogas, matéria legislativa e que o STF aceita decidir. Observe-se também a recentíssima decisão sobre o remédio não-testado para tratamento de câncer. E assim por diante (não importa, aqui, se esses “demais poderes” “mereceram” essa invasão ou não, em face de suas inércias). Talvez o grande problema esteja na distinção entre judicialização e ativismo, que poderia/deveria “segurar um pouco” a personae herói, dando-lhe boas pitadas da personae minimalista.
Sigo. Como tipos ideais, admito que a ausência de regra para apreciação de habeas corpus (o utente tem de torcer para que o writ seja não conhecido e ser concedido de forma discricionária) pode estar denunciando a presença em demasia do perfil personae muda. Agora mesmo na decisão sobre a permissão da entrada em domicílios sob suspeita de crime permanente, há indícios fortes da persona soldado (sem qualquer trocadilho ou ironia). Já no caso Donadon (MS 32.326), sobressaiu-se o perfil herói, que se manifestou — monocraticamente, é verdade — para contrariar a decisão anterior (tomada majoritariamente) a partir de uma postura (correta) que, ao meu ver, pode ser tida como soldado-minimalista, pela qual quem deve cassar mandatos é o parlamento. Pois o perfil herói acabou puxando — de forma equivocada — para o STF a prerrogativa de cassação do mandato naquele caso. O modus operandi do juiz Sergio Moro é, esculpido em carrara, o personae herói (respondo uma pergunta que viria, à toda evidência).
Dá para acreditar em perfis? Ou isso enfraquece o papel da doutrina?
Mas, perguntou-me um aluno, qual seria o melhor perfil ou aquele que se mostraria adequado para o direito de terrae brasilis? Minha resposta: nenhum deles. Sob a mira de uma arma, tendo que escolher à força, escolheria o minimalista. Não porque Sunstein ligasse o minimalista a Burke, todavia crítico dos avanços da Revolução Francesa, é claro. Mas não é disso que tratam minhas teses e meus livros.Temo que os perfis formatados por Sunstein sejam utilizados para fazer estatísticas com números tirados dos sites dos tribunais, o que, muitas vezes, mais encobre do que revela. Penso que devemos recepcionar a tese com muito cuidado. Corre-se o risco de ser mais uma de tantas pesquisas de perfil realista, preocupada em descobrir como os juízes decidem depois que já decidiram e não como eles devem decidir. Sempre o fantasma do velho realismo a nos assombrar.
Há o sério risco de se deslocar as pesquisas para o vértice “decisão”, como, por exemplo, dar ênfase a um agir estratégico, como, por exemplo, preocupar-se com o que os juízes vestem, comem, votam, etc., e dali tirar um perfil da persona, como se isso importasse (ou melhor, como se isso fosse condição de possibilidade) para se compreender como, por exemplo, um tribunal deve julgar os recursos que a ele são interpostos. Lembro-me do julgamento do mensalão e professores falando até da alimentação dos ministros. Bom, se o direito é isso, ou seja, se acreditamos que o direito é, ao fim e ao cabo, o que os juízes dizem que é, então só nos resta torcer para que nossa causa caia na mão daquele cujo perfil não seja contrário à causa que defendemos. Ou seja, um fatalismo tipo “já que não conseguimos controlar epistemicamente os juízes, contentemo-nos em traçar boas estratégias”... Agir como um vidente do passado, o que é um problema por aqui, porque, em Pindorama, nem as previsões sobre o passado são confiáveis. Em outras palavras: corre-se o risco de apostar mais nas estratégias (jogo) do que na teoria, algo como “calculo, estatisticamente, como vêm decidindo e ‘me enquadro’”. Resultado da partida: goleada. Agir estratégico 10x0 teoria do direito.
Por isso, a variável “personae dos juízes” não deve assumir esse patamar dado por Sunstein e certa sociologia jurídica. Talvez seja por isso que Sunstein, equivocadamente, classifique Dworkin como um “juiz herói”, pela leitura forçada que faz de outro suposto modelo, o juiz Hércules, quando este, na verdade, nada mais era do que a própria metáfora da exigência normativa de que as decisões judiciais sejam corretas, a partir da coerência e da integridade. Vale dizer, Hércules funciona como um arquétipo para descrever de que modo é possível afirmar uma teoria dos direitos. A questão aqui passa por uma diferença entre o “que” e o “como”, ou seja, mais do que simplesmente descrever de que modo os variados tipos de juízes se comportam quando exaram suas decisões, importa saber “como” devem se comportar quando examinam o direito com responsabilidade política. Esse “como” depende da observação de certos aspectos que vão além de um mero traço de personalidade ou inclinação subjetiva. Depende de uma concepção abrangente do direito que seja construída a partir do conjunto de princípios que incorporam a moralidade da comunidade política. Ou seja, há sempre algo “não empírico” que escapa dessa análise comportamental pretensamente “objetiva”. E é justamente esse “algo mais” que faz toda a diferença.
De todo modo, registre-se que o próprio Sunstein alerta para o fato de que seus perfis devem ser analisados ao lado de outros componentes, como o modo como os juízes votam (modelo seriatim, como no Brasil) e/ou a exigência ou não de unanimidade, com discussão antes do veredicto. Entretanto — permito-me dizer — tudo isso parece torcer pela vitória de certo tipo de sociologia, que sempre corre o risco de ser por demais “profeta do que já passou” e por vezes até mesmo banal, ao pretender fazer com que a doutrina perca seu papel crítico próprio, que é o de também zelar pela racionalidade do direito, retroalimentando argumentativamente os debates jurídicos de uma "sociedade aberta de intérpretes da Constituição".
Para quem quiser se empolgar com os perfis e sair por aí fazendo classificações, deixemos Sunstein falar: We have seen that as a matter of principle, it makes no sense to adopt a particular Persona for all occasions, and indeed few people do so. The right persona is a product of a right theory of interpretation.[7] Isto é, por uma questão de princípio, não faz sentido adotar uma Persona particular para todas as ocasiões, e de fato poucas pessoas fazem isso. A Persona certa é um produto de uma teoria certa da interpretação.
Numa palavra.
No fundo, contra o perigo de sociologizarmos em demasia o direito, sobretudo, diante de uma realidade institucional e complexa, como a de um Estado Democrático de Direito, cujas exigências de princípio escapam a todo maniqueísmo, à doutrina nunca deverá restar apenas a tarefa de descrever, como um quadro comparativo, as decisões de cada um dos supostos tipos ou categorias de juízes, e de apostar, como em um jogo de cartas marcadas, o modo como esses mesmo juízes, pela própria teoria caricaturizados (alerto apenas para esse risco), uma vez incrivelmente descolados de toda uma história institucional mais complexa do que inutilmente a própria classificação seria capaz de abarcar, irão decidir daqui para frente.Quero que entendam bem. O direito deve ter um grau de autonomia. Deve-se resguardar dos predadores endógenos e exógenos. A subjetividade descontrolada é um predador endógeno. A política e a moral são perigosos fatores exógenos. Se ficar dependente de posições pessoais ou de “encaixes em perfis” — que, por acaso, podem variar exatamente em face da subjetividade de seus protagonistas — o (direito do) país coloca em sério risco as suas possibilidades de construir teorias próprias ou teorias que sirvam para criar previsibilidade. Imaginemos o exemplo de uma ADI absolutamente impactante, em que o placar esteja em 5x5; o último a votar é visto (enquadrado) pela comunidade jurídica como minimalista, mas como o caso trata de uma questão religiosa, ele se transmuda para o perfil “herói”. Ou quando todos esperam um voto heroico e dali sai um voto mudo? De que adiantou a pesquisa empírica sobre os perfis, em um caso destes? Afinal, se um perfil se manifesta de forma ad hoc, é ele, ainda, um perfil?
Por isso, embora louvando a preocupação de juristas da cepa como Sunstein e de tantos outros aqui do Brasil preocupados com essa problemática do tipo “afinal, como os juízes decidem”, prefiro continuar a apostar em um vetor de racionalidade estruturante, que vem antes de analises apofânticas e/ou sociológicas. Mas isso não quer dizer que as análises como as de Sunstein não sejam importantes. De novo, meus cumprimentos a todos que se dedicam a essa tarefa de investigar o imaginário dos juízes. Com certeza, temos todos um bom combate pela frente contra um adversário comum: qualquer forma de não-democracia e qualquer forma de arbítrio.
Não me agradaria ver o problema da decisão jurídica reduzida a um quadro, contendo números e perfis, algo como “nos últimos 5 anos o STF julgou 300 habeas corpus, dos quais 50 tiveram o perfil heróis,75, soldado, etc; ou 1003 ADIs, cujo resultado foi: 322 minimalistas, 188 mudas...”. Antes disso, preferiria que discutíssemos a teoria do direito, as razões pelas quais a teoria do direito ainda tem certa aversão a admitir os influxos dos paradigmas filosóficos, as razões pelas quais há tanta paixão pela moralização do direito, desmistificar coisas simples “quem inventou esse negócio de que princípios são valores”, “o que é isto — o pamprincipiologismo”, “porque, em pleno século XXI, o projeto do novo Código de Processo Penal insiste na livre apreciação da prova”, “porque há tanta resistência ao NCPC”, “porque nos queixamos das decisões e não reclamamos das posturas consequencialistas”, “porque achamos a discricionariedade uma ‘coisa natural’”, etc.
Para finalizar e demonstrar os cuidados que se deve ter na Teoria do Direito, deixemos Sustein falar de novo e nos confortar:
- I have argued on behalf of a general enthusiasm for the Minimalist, on the ground that minimalism is well suited to the institutional virtues and limits of the Judiciary. But minimalism is not a complete theory of interpretation, and it is hardly an approach for all times and all seasons.[8]
1 STRECK, Lenio Luiz. O (Pós-)Positivismo e os propalados modelos de juiz (Hércules, Júpiter e Hermes) - dois decálogos necessários. In: Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 7, p. 15-45, jan./jun. 2010. Texto publicado em quatro línguas.
2 SUSTEIN, Cass. E. Constitutional Personae. Nova Iorque: Oxford University Press, 2015. Chapter One, Heroes. Como se trata de um livro em formato epub, as páginas não estão especificadas, variando conforme o tamanho da resolução.
3 Op.cit. o espaço da coluna não permitiu a transcrição original em inglês.
4 Op.cit., idem.
5 Op.cit, idem.
6 “Devido aos efeitos da invalidação da segregação racial, Brown v. Board of Education é a típica decisão heróica, e seu autor, Juiz Earl Warren, é típico Juiz Herói”. Op.cit., chapter One, Heroes.
7 SUSTEIN, op.cit, Closing Words, Rules of Attarction.
8 “Eu me posicionei em favor de um entusiasmo geral para o Minimalismo, no sentido de que o minimalismo é bem apropriado para as virtudes institucionais e limites do Judiciário. Mas o minimalismo não é uma teoria completa da interpretação, e dificilmente é uma abordagem para todos os tempos e todas as estações”. Closing Words, Rules of Attraction.
Por Lenio Luiz Streck
Fonte: Conjur