goo.gl/9RpxMr | Ganhou destaque a publicação, no último dia 7 de outubro, da Lei 13.344/16, a chamada Lei de Tráfico de Pessoas. Com vacatio legis de 45 dias, incrementa a luta contra o tráfico de pessoas.
A matéria já possuía disciplina em tratado internacional, sendo combatido pelo Protocolo Adicional à Convenção da ONU contra o Crime Organizado relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto 5.017/04. Todavia, em que pese o compromisso assumido pelo Brasil na órbita internacional, o tráfico de pessoas era reprimido criminalmente pelo ordenamento jurídico nacional apenas em sua forma de exploração sexual, por meio de crimes hospedados no próprio Código Penal (arts. 231 e 231-A do CP).
Esse cenário mudou com a edição da nova lei, de modo que o Brasil, que estava em mora com a comunidade internacional, desonera-se dessa obrigação e estabelece mecanismos de prevenção e repressão do tráfico de pessoas.
Passam a ser punidas outras formas de exploração (remoção de órgãos, trabalho escravo, servidão e adoção ilegal), o que representa inegável avanço no combate ao tráfico de pessoas, respeitando-se o disposto no artigo 3º do pacto internacional.
Interessante constatar que a Lei 13.344/16, na linha do que dispõe o tratado de direitos humanos, é calcada em 3 eixos, a saber, prevenção, repressão e assistência à vítima (art. 1º, parágrafo único).
Segundo o novel artigo 149-A do CP, configura tráfico de pessoas agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso. Trata-se de tipo misto alternativo, crime de ação múltipla que pode ser praticado mediante a prática de qualquer das condutas. Há atos que denotam permanência, tais como transportar e alojar, casos em que a consumação se prolonga no tempo. É um crime bicomum, não existindo condição especial do agente ou da vítima.
Como elemento subjetivo do tipo, demanda-se a finalidade especial, não necessariamente a exploração sexual, mas alternativamente a remoção de órgãos, trabalho escravo, servidão ou adoção ilegal. A consumação do delito independe da efetiva concretização da vontade específica, bastando a realização de um dos núcleos do tipo mediante violência física ou moral, fraude ou abuso.
Enquanto nos crimes dos artigos 231 e 231-A a violência ou fraude atuava como majorante, no crime de tráfico de pessoas passa a fazer parte do próprio tipo penal. Se o dissentimento é requisito do crime, o consentimento válido do ofendido exclui a tipicidade da conduta (não atuando como causa supralegal de exclusão da ilicitude).
Não deve ser considerada válida a concordância de pessoa vulnerável, entendida como o menor de 18 anos. O critério corresponde ao conceito de vulnerável emoldurado no artigo 218-B do CP, que protege o menor de 18 anos contra a exploração sexual, e não o patamar de 14 anos definido no artigo 217-A do CP, que tipifica o crime de estupro de vulnerável. Afinal, se o menor de 18 anos não pode consentir na sua exploração sexual, também não pode aquiescer validamente para seu tráfico com outras finalidades. Esse é o entendimento que se coaduna com o compromisso internacional assumido pelo Brasil, que especificamente remete à essa idade (art. 3º, d).
Diferentemente do tratado internacional, a Lei 13.344/16 não listou o pagamento de benefícios como meio de execução do delito, o que significa que em tese seria lícito o tráfico de pessoas mediante contraprestação aceita pelo indivíduo, muito embora seja difícil essa situação não envolver abuso ou fraude. Cabe tentativa do delito.
Foram revogados os artigos 231 e 231-A do CP (tráfico internacional e interno para fim de exploração sexual). Não se cuida de abolitio criminis, pois houver apenas a revogação formal do tipo penal, mas não a supressão material do fato criminoso. É dizer, ocorreu na verdade a incidência do princípio da continuidade normativo-típica, pois a conduta continua sendo definida como crime, muito embora tenha havido a alteração topográfica do tipo penal.
A legislação tornou mais rigorosas as penalidades. Logo, em se tratando de lex gravior, a lei não pode retroagir para prejudicar o réu.
As majorantes (1/3 a 1/2) definidas no parágrafo 1º incidem no caso de (a) crime cometido por funcionário público, (b) contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência, (c) prevalência de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função, (d) retirada da vítima do território nacional.
Fácil notar que o tráfico internacional de pessoas, em vez de constituir crime próprio, traduz uma causa de aumento de pena. O problema é que o legislador considerou como majorante apenas a retirada da vítima do país, olvidando-se de sua colocação no território nacional, em lamentável equívoco.
No parágrafo 2º está estampada a figura do tráfico de pessoas minorado (1/3 a 2/3), cabível ao agente primário que não integra organização criminosa. O dispositivo se parece com o tráfico de drogas privilegiado (art. 33, §4º da Lei 11.343/06 – que na verdade também é uma causa de diminuição de pena), aplicável caso o agente seja primário e não integre organização criminosa, e além disso tenha bons antecedentes e não se dedique às atividades criminosas.
O delito de tráfico de pessoas, em que pese não hediondo ou equiparado, sofre uma restrição relativa àquela categoria de crimes: requisito temporal mais severo (cumprimento de mais de 2/3 da pena) para obtenção do livramento condicional (art. 83, V do CP). Todavia, contra esse crime não incidem as demais vedações da Lei 8.072/90.
A ação penal é pública incondicionada.
A atribuição para investigação é da Polícia Civil, salvo se houver repercussão interestadual ou internacional (art. 144, §1º da CF), ocasião em que a apuração será deslocada para a Polícia Federal. Já a competência é da Justiça Estadual, em regra, devendo atuar a Justiça Federal em caso de transnacionalidade (art. 109, V da CF).
Quanto aos aspectos investigativos e processuais penais, vale destacar um dispositivo singelo, mas de extrema importância. O artigo 9º dispõe que “aplica-se subsidiariamente, no que couber, o disposto na Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013”. Se é permitida a aplicação subsidiária da Lei de Crime Organizado, isso significa que estão à disposição do Estado-Investigação os meios extraordinários de obtenção de prova lá albergados, tais como colaboração premiada, ação controlada e infiltração de agentes e captação ambiental de comunicações. Essas técnicas especiais de investigação revelam-se imprescindíveis no combate à criminalidade moderna, que se mostra cada vez mais organizada e sofisticada. Crimes graves exigem emprego de estratégias investigativas diferenciadas e por vezes mais intrusivas,[1] que não se limitem a testemunhas e perícias.
Iniciativa importante que auxiliará nas investigações do tráfico de pessoas é a criação pelo Poder Público de sistema de informações visando à coleta e à gestão de dados que orientem o enfrentamento ao tráfico de pessoas (art. 10). Tendo em vista que a atribuição investigativa é tanto da Polícia Federal e da Polícia Civil, é imprescindível que haja um adequado compartilhamento dos dados entre as Polícias Judiciárias, e também com o Ministério Público.
Modificação sensível ocorreu através do artigo 11 da Lei 13.344/16, que acrescentou 2 dispositivos no CPP.
Segundo o artigo 13-A do CPP, nos crimes de sequestro e cárcere privado (art. 148 do CP), redução a condição análoga à de escravo (art. 149 do CP) e tráfico de pessoas (art. 149-A do CP), sequestro relâmpago (art. 158, §3º do CP) e extorsão mediante sequestro (art. 159 do CP) e envio ilegal de criança ou adolescente para o exterior (art. 239 do ECA), o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia pode requisitar, de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, dados e informações cadastrais da vítima ou de suspeitos. Chama a atenção, além do exíguo prazo de 24 horas para atendimento da requisição, o fato de poder ser referir a dados não só do investigado, mas da própria vítima.
Vale lembrar que a requisição de dados cadastrais pela Polícia Judiciária ou Ministério Público no âmbito da persecução penal possui previsão também na Lei do Crime Organizado (art. 15 da Lei 12.850/13) e na Lei de Lavagem de Capitais (art. 17-A da Lei 9.613/98), que se referem expressamente ao investigado, e não estipulam prazo para cumprimento.
Especificamente quanto ao delegado de polícia, cabe mencionar também o chamado poder geral de requisição constante na Lei de Investigação Criminal (art. 2º, §2º da Lei 12.830/13), válido para quaisquer delitos, que apesar de não definir prazo, não limita a requisição ao suspeito.
Não é demais ressaltar que dados cadastrais referem-se à própria identidade (nome, nacionalidade, naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, RG, CPF, filiação e endereço), e sua requisição é facultada pelo legislador à autoridade policial para municia-la dos meios necessários para coletar provas de forma célere e eficaz.[2]
Importante grifar que nem toda medida investigativa está sujeita à cláusula de reserva de jurisdição. É perfeitamente possível que o legislador atribua à autoridade policial a possibilidade de adotar manu propria uma série de ações, pois o desenho constitucional adotado nem sempre exige prévia chancela do Judiciário para os atos investigatórios, o que em nada prejudica o controle judicial posterior. Destarte, enquanto as comunicações de dados demandam anterior autorização judicial, os dados em si mesmos podem ser acessados por autoridades investigativas.[3]
Por isso é que não há óbice para a apreensão e análise de agenda com dados sigilosos.[4] E, quanto ao aparelho celular, pode a autoridade policial acessar diretamente a agenda eletrônica e registros de ligações (histórico de chamadas),[5] não possuindo autorização apenas para verificar em tempo real as mensagens enviadas e recebidas e chamadas efetuadas e recebidas.[6] De igual forma, é lícita a requisição junto à operadora de telefonia, pelo delegado de polícia, de informações pretéritas das ERBs utilizadas pelo investigado.[7]
De outro lado, o artigo 13-B. do CPP causa perplexidade. Segundo a regra, no crime de tráfico de pessoas, o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia pode “requisitar, mediante autorização judicial”, às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados – como sinais (ERBs), informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso. Salta aos olhos a falta de técnica legislativa ao fazer menção à requisição mediante autorização judicial. Se há necessidade de ordem judicial, obviamente não se trata de requisição do Ministério Público ou Polícia Judiciária, mas sim requerimento ou representação, respectivamente.
De acordo com o parágrafo 4º do artigo 13-B do CPP, não havendo manifestação judicial no prazo de 12 horas, a autoridade competente requisitará às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso, com imediata comunicação ao juiz. Cuida-se de cláusula de reserva de jurisdição temporária, verdadeira inovação no mundo jurídico, em que o decurso de lapso temporal (bastante apertado – 12 horas) faz desaparecer a necessidade de autorização judicial. Trata-se de previsão dúplice, exigindo-se no início ordem judicial e passando a dispensá-la pelo decurso de tempo.
A sistemática se apresenta do seguinte modo: num primeiro momento o delegado representa ou o membro do MP requer ao Judiciário a aplicação de medida. Caso não seja apreciado com celeridade, dispensa-se a ordem judicial e a obtenção da informação passa para a esfera de requisição, ou seja, a Polícia Judiciária ou o Ministério Público determinam diretamente ao detentor da informação que remeta os dados diretamente ao órgão requisitante.
O parágrafo 3º do artigo 13-B do CPP também traz novidade ao estabelecer prazo para a instauração de inquérito policial: o procedimento policial deve ser iniciado no prazo máximo de 72 horas, contado do registro da respectiva ocorrência policial.
Consagra ainda o dispositivo em seu parágrafo 2º que a identificação da ERB não deve permitir acesso ao conteúdo da comunicação. Deve ser fornecida pela prestadora de telefonia móvel celular por período não superior a 30 dias, renovável por uma única vez por igual período. Para períodos superiores a 60 dias, exige-se ordem judicial. Assim, para prazos de até 60 dias (30 dias renováveis por igual período), pode-se aplicar a sistemática de que se o juiz não decidir em 12 horas, a autoridade pode requisitar diretamente a informação.
Note que até a disposição topográfica dos parágrafos foi equivocada, sendo a ordem mais lógica os parágrafos 1º, 4º, 3º e 2º. A confusão do legislador foi tamanha no artigo 13-B que certamente haverá quem alegue sua inconstitucionalidade.
Dentre acertos e equívocos, o fato é que a Lei 13.344/16 possui enorme relevância.
[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 979.
[2] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Requisição de dados pelo delegado de polícia. In: CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano; GOMES, Rodrigo Carneiro; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 98.
[3] STF, RE 418.416, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19/12/2006; STJ, HC 131.836, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ -04/11/2000.
[4] STJ, HC 142.205, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 04/11/2010.
[5] STF, HC 91.867, Rel. Min. Gilmar Mendes, 19/09/2012; STJ, HC 66.368, Rel. Min. Gilson Dipp, DP 29/06/2007.
[6] Apesar de haver jurisprudência admitindo até mesmo que o policial atenda ligação efetuada para o celular apreendido. (STJ, HC 55.288, Rel. Min. Alderita Ramos de Oliveira, DJ 02/04/2013).
[7] STJ, HC 247331, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 03/09/2014.
Por Henrique Hoffmann Monteiro de Castro
Fonte: Conjur
A matéria já possuía disciplina em tratado internacional, sendo combatido pelo Protocolo Adicional à Convenção da ONU contra o Crime Organizado relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto 5.017/04. Todavia, em que pese o compromisso assumido pelo Brasil na órbita internacional, o tráfico de pessoas era reprimido criminalmente pelo ordenamento jurídico nacional apenas em sua forma de exploração sexual, por meio de crimes hospedados no próprio Código Penal (arts. 231 e 231-A do CP).
Esse cenário mudou com a edição da nova lei, de modo que o Brasil, que estava em mora com a comunidade internacional, desonera-se dessa obrigação e estabelece mecanismos de prevenção e repressão do tráfico de pessoas.
Passam a ser punidas outras formas de exploração (remoção de órgãos, trabalho escravo, servidão e adoção ilegal), o que representa inegável avanço no combate ao tráfico de pessoas, respeitando-se o disposto no artigo 3º do pacto internacional.
Interessante constatar que a Lei 13.344/16, na linha do que dispõe o tratado de direitos humanos, é calcada em 3 eixos, a saber, prevenção, repressão e assistência à vítima (art. 1º, parágrafo único).
Segundo o novel artigo 149-A do CP, configura tráfico de pessoas agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso. Trata-se de tipo misto alternativo, crime de ação múltipla que pode ser praticado mediante a prática de qualquer das condutas. Há atos que denotam permanência, tais como transportar e alojar, casos em que a consumação se prolonga no tempo. É um crime bicomum, não existindo condição especial do agente ou da vítima.
Como elemento subjetivo do tipo, demanda-se a finalidade especial, não necessariamente a exploração sexual, mas alternativamente a remoção de órgãos, trabalho escravo, servidão ou adoção ilegal. A consumação do delito independe da efetiva concretização da vontade específica, bastando a realização de um dos núcleos do tipo mediante violência física ou moral, fraude ou abuso.
Enquanto nos crimes dos artigos 231 e 231-A a violência ou fraude atuava como majorante, no crime de tráfico de pessoas passa a fazer parte do próprio tipo penal. Se o dissentimento é requisito do crime, o consentimento válido do ofendido exclui a tipicidade da conduta (não atuando como causa supralegal de exclusão da ilicitude).
Não deve ser considerada válida a concordância de pessoa vulnerável, entendida como o menor de 18 anos. O critério corresponde ao conceito de vulnerável emoldurado no artigo 218-B do CP, que protege o menor de 18 anos contra a exploração sexual, e não o patamar de 14 anos definido no artigo 217-A do CP, que tipifica o crime de estupro de vulnerável. Afinal, se o menor de 18 anos não pode consentir na sua exploração sexual, também não pode aquiescer validamente para seu tráfico com outras finalidades. Esse é o entendimento que se coaduna com o compromisso internacional assumido pelo Brasil, que especificamente remete à essa idade (art. 3º, d).
Diferentemente do tratado internacional, a Lei 13.344/16 não listou o pagamento de benefícios como meio de execução do delito, o que significa que em tese seria lícito o tráfico de pessoas mediante contraprestação aceita pelo indivíduo, muito embora seja difícil essa situação não envolver abuso ou fraude. Cabe tentativa do delito.
Foram revogados os artigos 231 e 231-A do CP (tráfico internacional e interno para fim de exploração sexual). Não se cuida de abolitio criminis, pois houver apenas a revogação formal do tipo penal, mas não a supressão material do fato criminoso. É dizer, ocorreu na verdade a incidência do princípio da continuidade normativo-típica, pois a conduta continua sendo definida como crime, muito embora tenha havido a alteração topográfica do tipo penal.
A legislação tornou mais rigorosas as penalidades. Logo, em se tratando de lex gravior, a lei não pode retroagir para prejudicar o réu.
As majorantes (1/3 a 1/2) definidas no parágrafo 1º incidem no caso de (a) crime cometido por funcionário público, (b) contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência, (c) prevalência de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função, (d) retirada da vítima do território nacional.
Fácil notar que o tráfico internacional de pessoas, em vez de constituir crime próprio, traduz uma causa de aumento de pena. O problema é que o legislador considerou como majorante apenas a retirada da vítima do país, olvidando-se de sua colocação no território nacional, em lamentável equívoco.
No parágrafo 2º está estampada a figura do tráfico de pessoas minorado (1/3 a 2/3), cabível ao agente primário que não integra organização criminosa. O dispositivo se parece com o tráfico de drogas privilegiado (art. 33, §4º da Lei 11.343/06 – que na verdade também é uma causa de diminuição de pena), aplicável caso o agente seja primário e não integre organização criminosa, e além disso tenha bons antecedentes e não se dedique às atividades criminosas.
O delito de tráfico de pessoas, em que pese não hediondo ou equiparado, sofre uma restrição relativa àquela categoria de crimes: requisito temporal mais severo (cumprimento de mais de 2/3 da pena) para obtenção do livramento condicional (art. 83, V do CP). Todavia, contra esse crime não incidem as demais vedações da Lei 8.072/90.
A ação penal é pública incondicionada.
A atribuição para investigação é da Polícia Civil, salvo se houver repercussão interestadual ou internacional (art. 144, §1º da CF), ocasião em que a apuração será deslocada para a Polícia Federal. Já a competência é da Justiça Estadual, em regra, devendo atuar a Justiça Federal em caso de transnacionalidade (art. 109, V da CF).
Quanto aos aspectos investigativos e processuais penais, vale destacar um dispositivo singelo, mas de extrema importância. O artigo 9º dispõe que “aplica-se subsidiariamente, no que couber, o disposto na Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013”. Se é permitida a aplicação subsidiária da Lei de Crime Organizado, isso significa que estão à disposição do Estado-Investigação os meios extraordinários de obtenção de prova lá albergados, tais como colaboração premiada, ação controlada e infiltração de agentes e captação ambiental de comunicações. Essas técnicas especiais de investigação revelam-se imprescindíveis no combate à criminalidade moderna, que se mostra cada vez mais organizada e sofisticada. Crimes graves exigem emprego de estratégias investigativas diferenciadas e por vezes mais intrusivas,[1] que não se limitem a testemunhas e perícias.
Iniciativa importante que auxiliará nas investigações do tráfico de pessoas é a criação pelo Poder Público de sistema de informações visando à coleta e à gestão de dados que orientem o enfrentamento ao tráfico de pessoas (art. 10). Tendo em vista que a atribuição investigativa é tanto da Polícia Federal e da Polícia Civil, é imprescindível que haja um adequado compartilhamento dos dados entre as Polícias Judiciárias, e também com o Ministério Público.
Modificação sensível ocorreu através do artigo 11 da Lei 13.344/16, que acrescentou 2 dispositivos no CPP.
Segundo o artigo 13-A do CPP, nos crimes de sequestro e cárcere privado (art. 148 do CP), redução a condição análoga à de escravo (art. 149 do CP) e tráfico de pessoas (art. 149-A do CP), sequestro relâmpago (art. 158, §3º do CP) e extorsão mediante sequestro (art. 159 do CP) e envio ilegal de criança ou adolescente para o exterior (art. 239 do ECA), o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia pode requisitar, de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, dados e informações cadastrais da vítima ou de suspeitos. Chama a atenção, além do exíguo prazo de 24 horas para atendimento da requisição, o fato de poder ser referir a dados não só do investigado, mas da própria vítima.
Vale lembrar que a requisição de dados cadastrais pela Polícia Judiciária ou Ministério Público no âmbito da persecução penal possui previsão também na Lei do Crime Organizado (art. 15 da Lei 12.850/13) e na Lei de Lavagem de Capitais (art. 17-A da Lei 9.613/98), que se referem expressamente ao investigado, e não estipulam prazo para cumprimento.
Especificamente quanto ao delegado de polícia, cabe mencionar também o chamado poder geral de requisição constante na Lei de Investigação Criminal (art. 2º, §2º da Lei 12.830/13), válido para quaisquer delitos, que apesar de não definir prazo, não limita a requisição ao suspeito.
Não é demais ressaltar que dados cadastrais referem-se à própria identidade (nome, nacionalidade, naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, RG, CPF, filiação e endereço), e sua requisição é facultada pelo legislador à autoridade policial para municia-la dos meios necessários para coletar provas de forma célere e eficaz.[2]
Importante grifar que nem toda medida investigativa está sujeita à cláusula de reserva de jurisdição. É perfeitamente possível que o legislador atribua à autoridade policial a possibilidade de adotar manu propria uma série de ações, pois o desenho constitucional adotado nem sempre exige prévia chancela do Judiciário para os atos investigatórios, o que em nada prejudica o controle judicial posterior. Destarte, enquanto as comunicações de dados demandam anterior autorização judicial, os dados em si mesmos podem ser acessados por autoridades investigativas.[3]
Por isso é que não há óbice para a apreensão e análise de agenda com dados sigilosos.[4] E, quanto ao aparelho celular, pode a autoridade policial acessar diretamente a agenda eletrônica e registros de ligações (histórico de chamadas),[5] não possuindo autorização apenas para verificar em tempo real as mensagens enviadas e recebidas e chamadas efetuadas e recebidas.[6] De igual forma, é lícita a requisição junto à operadora de telefonia, pelo delegado de polícia, de informações pretéritas das ERBs utilizadas pelo investigado.[7]
De outro lado, o artigo 13-B. do CPP causa perplexidade. Segundo a regra, no crime de tráfico de pessoas, o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia pode “requisitar, mediante autorização judicial”, às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados – como sinais (ERBs), informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso. Salta aos olhos a falta de técnica legislativa ao fazer menção à requisição mediante autorização judicial. Se há necessidade de ordem judicial, obviamente não se trata de requisição do Ministério Público ou Polícia Judiciária, mas sim requerimento ou representação, respectivamente.
De acordo com o parágrafo 4º do artigo 13-B do CPP, não havendo manifestação judicial no prazo de 12 horas, a autoridade competente requisitará às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso, com imediata comunicação ao juiz. Cuida-se de cláusula de reserva de jurisdição temporária, verdadeira inovação no mundo jurídico, em que o decurso de lapso temporal (bastante apertado – 12 horas) faz desaparecer a necessidade de autorização judicial. Trata-se de previsão dúplice, exigindo-se no início ordem judicial e passando a dispensá-la pelo decurso de tempo.
A sistemática se apresenta do seguinte modo: num primeiro momento o delegado representa ou o membro do MP requer ao Judiciário a aplicação de medida. Caso não seja apreciado com celeridade, dispensa-se a ordem judicial e a obtenção da informação passa para a esfera de requisição, ou seja, a Polícia Judiciária ou o Ministério Público determinam diretamente ao detentor da informação que remeta os dados diretamente ao órgão requisitante.
O parágrafo 3º do artigo 13-B do CPP também traz novidade ao estabelecer prazo para a instauração de inquérito policial: o procedimento policial deve ser iniciado no prazo máximo de 72 horas, contado do registro da respectiva ocorrência policial.
Consagra ainda o dispositivo em seu parágrafo 2º que a identificação da ERB não deve permitir acesso ao conteúdo da comunicação. Deve ser fornecida pela prestadora de telefonia móvel celular por período não superior a 30 dias, renovável por uma única vez por igual período. Para períodos superiores a 60 dias, exige-se ordem judicial. Assim, para prazos de até 60 dias (30 dias renováveis por igual período), pode-se aplicar a sistemática de que se o juiz não decidir em 12 horas, a autoridade pode requisitar diretamente a informação.
Note que até a disposição topográfica dos parágrafos foi equivocada, sendo a ordem mais lógica os parágrafos 1º, 4º, 3º e 2º. A confusão do legislador foi tamanha no artigo 13-B que certamente haverá quem alegue sua inconstitucionalidade.
Dentre acertos e equívocos, o fato é que a Lei 13.344/16 possui enorme relevância.
[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 979.
[2] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Requisição de dados pelo delegado de polícia. In: CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano; GOMES, Rodrigo Carneiro; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 98.
[3] STF, RE 418.416, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19/12/2006; STJ, HC 131.836, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ -04/11/2000.
[4] STJ, HC 142.205, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 04/11/2010.
[5] STF, HC 91.867, Rel. Min. Gilmar Mendes, 19/09/2012; STJ, HC 66.368, Rel. Min. Gilson Dipp, DP 29/06/2007.
[6] Apesar de haver jurisprudência admitindo até mesmo que o policial atenda ligação efetuada para o celular apreendido. (STJ, HC 55.288, Rel. Min. Alderita Ramos de Oliveira, DJ 02/04/2013).
[7] STJ, HC 247331, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 03/09/2014.
Por Henrique Hoffmann Monteiro de Castro
Fonte: Conjur