goo.gl/4d1oZ6 | O Brasil possui uma das maiores populações carcerárias do mundo. Possui também um dos mais altos índices de homicídio, mesmo se comparado com outros países marginais. Não bastasse, convive com um elevado grau de segregação social e uma visceral rede de corrupção, presente em diversos escalões de poder.
Em virtude desse cenário, a pergunta que dá título a este texto parece merecer uma resposta razoável. Antes, porém, de enfrentar a questão em si, é preciso deixar registrado o fato de que a necessidade de justificar, em termos de utilidade, a busca por um saber, faz parte de uma racionalidade tecnocrática comum ao nosso tempo, mas estranha ao modo de se pensar a atividade de pesquisa e busca por conhecimento poucos séculos atrás.
Feito o registro, pretende-se, a seguir, defender três razões pelas quais o estudo acerca do Direito Penal Internacional oferece rendimento “prático” ao jurista. A primeira razão diz respeito ao mau uso de Direito Comparado por juízes e tribunais no Brasil. São muitos os casos em que nosso poder judiciário calca suas razões de decidir em teoria e jurisprudência estrangeira, tentando com isso legitimar suas sentenças e acórdãos.
Especificamente na seara penal, podem ser citados como exemplos dessa tentativa, o uso da teoria do domínio do fato, conforme aplicada na AP nº 470; o voto do Min. Luís Roberto Barroso no HC 126.292/SP; o uso da teoria da cegueira deliberada como “forma” de dolo eventual (como na própria AP nº 470 e, mais recentemente, nas decisões que se originaram da Operação “Lava Jato”). O ponto de encontro em todos esses casos é que as teoria e/ou regras processuais foram “importadas” sem que se apresentassem quaisquer elementos de estudo em Direito Comparado.
Importante destacar que Direito Comparado é, em si, um método e não uma espécie de argumento. Para servir como fundamentação legítima de uma decisão, precisa receber tratamento cuidadoso e seguir uma série de adequações aos fatos e ao ordenamento interno.
O que se fez nos casos citados foi, simplesmente, a “compra” de ideias que permitissem chegar às decisões que eram, de antemão, pretendidas. Apenas um estudo sério de Direito Penal Comparado parece ser capaz de oferecer o constrangimento teórico necessário para limitar esse uso ilegítimo de elementos de direito externo.
Uma segunda razão pela qual o estudo de Direito Penal Internacional, que obviamente não se resume ao estudo comparado, possui relevância prática, tem que ver com o desenvolvimento das tentativas de criação de uma jurisdição penal universal (ou, ao menos, transnacional).
A criação de Cortes Internacionais de Direitos Humanos e, sobremaneira, de Tribunais Penais Internacionais, culminando na entrada em vigor do Tribunal Penal Internacional permanente na cidade de Haia (Holanda) inaugura, a despeito de suas limitações, uma aspiração de longa data, traduzida no ideal de estabelecimento de uma justiça (penal) não limitada às fronteiras da soberania, mas capaz de efetivar um consenso sobre valores mínimos universais.
Não resta dúvida de que este projeto, que possui forte tendência de crescimento, dependerá de pesquisadores de todo o mundo para desenvolver um sistema de justiça que retrate o pluralismo e o ideal humanitário que retoricamente diz promover.
Para os que conhecem o funcionamento real do poder punitivo, surge a preocupação com a gênese de uma manifestação “planetária” (Zaffaroni) deste poder, caso não seja estruturado com forte apego às garantias conquistadas mediante o derramamento de muito sangue no decorrer dos séculos que precederam a universalização dos direitos humanos e ao processo de constitucionalização democrática que se seguiu ao segundo pós-guerra.
Um último motivo pelo qual o estudo do Direito Penal Internacional demonstra não carecer de validez prática é o fato de que os crimes dos quais procura dar conta podem ser apontados, sem receio, como aqueles que produzem, quer em termos quantitativos, quer em termos de valoração acerca de sua atrocidade, os resultados mais alarmantes.
Os delitos centrais sob a gestão punitiva do Direito Penal Internacional são o genocídio, os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade e os crimes de agressão (estes ainda em fase de depuração conceitual). Isso faz com que as construções teóricas sobre as funções do Direito Penal, assim como sobre os fins perseguidos pela pena, nesses casos, sofram um tensionamento difícil se der igualado na experiência de Direito interno.
Além do mais, a própria teoria do delito, em especial no que toca aos elementos de autoria, passa por uma série de intensos debates no Direito Penal Internacional, o que permite um avanço sem igual para a dogmática penal em geral, salvaguardados os cuidados já mencionados sobre Direito comparado.
Elencados apenas três motivos que podem convencer o pesquisador da ciência penal, neófito ou experimentado, a investir com vigor nesta área de pesquisa, fica o convite para os leitores desta coluna para que acompanhem os textos que procurarão tratar de assuntos voltados ao Direito Penal Internacional em ocasiões futuras.
REFERÊNCIAS
AMBOS, KAI. Derecho Y Processo Penal: ensayos críticos. México: Fontamara, 2008.
_________. Pena sem soberano? Ius puniendi e função do direito penal interncional: dois estuso para uma teoria coerente do direito penal internacional. Brasília: Gazeta Jurídica, 2014.
__________. Estado y Futuro del Derecho Penal Comparado. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol 140. fev/2018
BAZELAIRE, Jena-Paul. CRETIN, Thierry. A justiça penal internacional: sua evolução, seu futuro: de Nuremberg a Haia. Barueri, SP: Manole, 2004.
CASSE, Antonio; DELMAS-MARTY. Crimes internacionais e jurisdições internacionais. Barueri, SP: Manole, 2004.
DISSENHA, Rui. Por uma política criminal universal: uma crítica aos Tribunais Penais Internacionais. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo. Faculdade de Direito: 2013.
Por Paulo Incott
Fonte: Canal Ciências Criminais
Em virtude desse cenário, a pergunta que dá título a este texto parece merecer uma resposta razoável. Antes, porém, de enfrentar a questão em si, é preciso deixar registrado o fato de que a necessidade de justificar, em termos de utilidade, a busca por um saber, faz parte de uma racionalidade tecnocrática comum ao nosso tempo, mas estranha ao modo de se pensar a atividade de pesquisa e busca por conhecimento poucos séculos atrás.
Feito o registro, pretende-se, a seguir, defender três razões pelas quais o estudo acerca do Direito Penal Internacional oferece rendimento “prático” ao jurista. A primeira razão diz respeito ao mau uso de Direito Comparado por juízes e tribunais no Brasil. São muitos os casos em que nosso poder judiciário calca suas razões de decidir em teoria e jurisprudência estrangeira, tentando com isso legitimar suas sentenças e acórdãos.
Especificamente na seara penal, podem ser citados como exemplos dessa tentativa, o uso da teoria do domínio do fato, conforme aplicada na AP nº 470; o voto do Min. Luís Roberto Barroso no HC 126.292/SP; o uso da teoria da cegueira deliberada como “forma” de dolo eventual (como na própria AP nº 470 e, mais recentemente, nas decisões que se originaram da Operação “Lava Jato”). O ponto de encontro em todos esses casos é que as teoria e/ou regras processuais foram “importadas” sem que se apresentassem quaisquer elementos de estudo em Direito Comparado.
Importante destacar que Direito Comparado é, em si, um método e não uma espécie de argumento. Para servir como fundamentação legítima de uma decisão, precisa receber tratamento cuidadoso e seguir uma série de adequações aos fatos e ao ordenamento interno.
O que se fez nos casos citados foi, simplesmente, a “compra” de ideias que permitissem chegar às decisões que eram, de antemão, pretendidas. Apenas um estudo sério de Direito Penal Comparado parece ser capaz de oferecer o constrangimento teórico necessário para limitar esse uso ilegítimo de elementos de direito externo.
Uma segunda razão pela qual o estudo de Direito Penal Internacional, que obviamente não se resume ao estudo comparado, possui relevância prática, tem que ver com o desenvolvimento das tentativas de criação de uma jurisdição penal universal (ou, ao menos, transnacional).
A criação de Cortes Internacionais de Direitos Humanos e, sobremaneira, de Tribunais Penais Internacionais, culminando na entrada em vigor do Tribunal Penal Internacional permanente na cidade de Haia (Holanda) inaugura, a despeito de suas limitações, uma aspiração de longa data, traduzida no ideal de estabelecimento de uma justiça (penal) não limitada às fronteiras da soberania, mas capaz de efetivar um consenso sobre valores mínimos universais.
Não resta dúvida de que este projeto, que possui forte tendência de crescimento, dependerá de pesquisadores de todo o mundo para desenvolver um sistema de justiça que retrate o pluralismo e o ideal humanitário que retoricamente diz promover.
Para os que conhecem o funcionamento real do poder punitivo, surge a preocupação com a gênese de uma manifestação “planetária” (Zaffaroni) deste poder, caso não seja estruturado com forte apego às garantias conquistadas mediante o derramamento de muito sangue no decorrer dos séculos que precederam a universalização dos direitos humanos e ao processo de constitucionalização democrática que se seguiu ao segundo pós-guerra.
Um último motivo pelo qual o estudo do Direito Penal Internacional demonstra não carecer de validez prática é o fato de que os crimes dos quais procura dar conta podem ser apontados, sem receio, como aqueles que produzem, quer em termos quantitativos, quer em termos de valoração acerca de sua atrocidade, os resultados mais alarmantes.
Os delitos centrais sob a gestão punitiva do Direito Penal Internacional são o genocídio, os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade e os crimes de agressão (estes ainda em fase de depuração conceitual). Isso faz com que as construções teóricas sobre as funções do Direito Penal, assim como sobre os fins perseguidos pela pena, nesses casos, sofram um tensionamento difícil se der igualado na experiência de Direito interno.
Além do mais, a própria teoria do delito, em especial no que toca aos elementos de autoria, passa por uma série de intensos debates no Direito Penal Internacional, o que permite um avanço sem igual para a dogmática penal em geral, salvaguardados os cuidados já mencionados sobre Direito comparado.
Elencados apenas três motivos que podem convencer o pesquisador da ciência penal, neófito ou experimentado, a investir com vigor nesta área de pesquisa, fica o convite para os leitores desta coluna para que acompanhem os textos que procurarão tratar de assuntos voltados ao Direito Penal Internacional em ocasiões futuras.
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REFERÊNCIAS
AMBOS, KAI. Derecho Y Processo Penal: ensayos críticos. México: Fontamara, 2008.
_________. Pena sem soberano? Ius puniendi e função do direito penal interncional: dois estuso para uma teoria coerente do direito penal internacional. Brasília: Gazeta Jurídica, 2014.
__________. Estado y Futuro del Derecho Penal Comparado. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol 140. fev/2018
BAZELAIRE, Jena-Paul. CRETIN, Thierry. A justiça penal internacional: sua evolução, seu futuro: de Nuremberg a Haia. Barueri, SP: Manole, 2004.
CASSE, Antonio; DELMAS-MARTY. Crimes internacionais e jurisdições internacionais. Barueri, SP: Manole, 2004.
DISSENHA, Rui. Por uma política criminal universal: uma crítica aos Tribunais Penais Internacionais. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo. Faculdade de Direito: 2013.
Por Paulo Incott
Fonte: Canal Ciências Criminais