Aplicam-se as imunidades penais para a violência doméstica e familiar contra a mulher?

No título que trata dos crimes contra o patrimônio, o Código Penal dispõe sobre as imunidades absolutas e relativas (arts. 181 e 182, respectivamente). As imunidades absolutas (também denominadas escusas absolutórias) isentam o agente de pena quando o crime for praticado em prejuízo de cônjuge, na constância da sociedade conjugal, ou em prejuízo de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.

Na imunidade relativa, impõe-se a necessidade de prévia oferta de representação, caso ocorra a prática de um crime em que figure como sujeito passivo o cônjuge desquitado ou judicialmente separado (inc. I); irmão, legítimo ou ilegítimo (inc. II); tio ou sobrinho, com quem o agente coabita, para que haja ação penal (inc. III). Nessas hipóteses, a ação penal é pública condicionada, razão pela qual só poderá o Ministério Público promover a ação penal se presente a condição de procedibilidade exigida.

Tais imunidades devem ser aplicadas a todos os crimes contra o patrimônio indistintamente, salvo nos seguintes casos (CP, art. 183):

Código Penal

Art. 183. Não se aplica o disposto nos dois artigos anteriores:

I – se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa;

II – [...]

III – se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. [hipótese acrescentada pelo Estatuto do Idoso – Lei n. 10.741/2003].

Diferentemente do que ocorreu em relação ao Estatuto do Idoso (conforme visto no item III do artigo recém transcrito – CP, art. 183), a Lei Maria da Penha nada disciplinou sobre o assunto, fazendo surgir dúvidas acerca do tema, principalmente pelo fato de que seu art. 7º, IV, estabeleceu como uma das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher a violência patrimonial, descrevendo‑a como “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”.

Por conta de tal dispositivo, há quem entenda que a Lei Maria da Penha, ao dedicar especial proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar, afastou, ainda que implicitamente, o disposto nos arts. 181 e 182, ambos do Código Penal. Neste sentido, destaca‑se o entendimento de Virginia Feix e de Maria Berenice Dias. A primeira afirma que “é exatamente pelos pressupostos teóricos e conceituais da violência de gênero, que não se pode aceitar que a Lei Maria da Penha tenha recepcionado as imunidades previstas nos arts. 181 e 182 do CP” (2011: 209).

Fundamentando seu posicionamento, assevera Maria Berenice Dias (2010: 71) que “a partir da nova definição de violência doméstica, que reconhece como tal também a violência patrimonial, não se aplicam as imunidades absolutas ou relativas dos arts. 181 e 182 do Código Penal quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar. Não há mais como admitir o injustificável afastamento da pena ao infrator que pratica um crime contra sua esposa ou companheira, ou, ainda, algum parente do sexo feminino. Aliás, o Estatuto do Idoso, além de dispensar a representação, expressamente prevê a não aplicação desta causa de isenção de pena quando a vítima tiver mais de 60 anos”.

Entretanto, há na doutrina quem discorde do referido posicionamento, entendendo que a Lei Maria da Penha não afastou as imunidades absoluta e relativa previstas no Código Penal, razão pela qual devem ser aplicadas. Para Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (2011, p. 61), “somente uma declaração expressa contida na lei teria o condão de revogar os dispositivos do Código Penal. E tal revogação não é vista, quer parcial quer totalmente, no estatuto em exame [Lei Maria da Penha]”. Usando o mesmo fundamento, têm‑se o entendimento de Wilson Lavorenti (2009: 242) e dos autores Gustavo Octaviano Diniz Junqueira e Paulo Henrique Aranda Fuller (2006: 672).

Nosso posicionamento: aplicam‑se os arts. 181 e 182 do CP aos crimes patrimoniais em que a vítima seja mulher em situação de violência doméstica e familiar, já que a ampliação do sentido da palavra violência trazida pela Lei Maria da Penha tem seu campo de aplicabilidade restrito às medidas protetivas e outras ações de caráter não estritamente penal. A a interpretação extensiva, quando prejudicial ao réu, não é permitida no campo do direito penal (HC 164.467­‑AC: princípio da reserva legal – art. 5º, XXXIX, da CF), uma vez que “é a vontade da lei que manda (não a vontade do legislador e muito menos a do intérprete). Nenhum intérprete pode ampliar o sentido do texto legal (para além do limite da vontade da lei)” (GOMES; GARCÍA­‑PABLOS DE MOLINA, 2010: 53). Concluir no sentido de que a Lei Maria da Penha rechaçou a possibilidade de aplicação das imunidades na hipótese em questão revela a existência de indevida interpretação extensiva, realizada em total arrepio ao princípio da legalidade.

Para uma melhor proteção da mulher nos casos de violência patrimonial, os demais mecanismos da Lei Maria da Penha previstos para coibir a violência e resguardar o patrimônio da ofendida, a exemplo do disposto no art. 24, I, da Lei, poderão ser levados a efeito. Assim, “para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, a seguinte medida, entre outras: I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida”.

Andou bem a Lei Maria da Penha ao dispor, taxativamente, no art. 7º, IV, que a violência patrimonial é uma das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, todavia afirmar que tal definição legal é apta a afastar expressa disposição do Código Penal não é medida que se coaduna com a correta interpretação das leis penais e, sobretudo, com o princípio da estrita legalidade que norteia a aplicação da lei penal.

Caso o legislador, à semelhança do que operou o Estatuto do Idoso, afastando a incidência dos arts. 181 e 182 do CP, opte por também não permitir a incidência de tais dispositivos na ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher, poderá fazê-lo por intermédio do devido processo legislativo.

Por: Alice Bianchini
Fonte: professoraalice.jusbrasil.com.br
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