Entre discurso bonito e realidade feia: acesso à justiça e custas processuais

O acesso à justiça é um conceito muito bonito. Bonito mesmo. Muitos processualistas históricos levantaram a bandeira desse projeto, com as melhores das intenções.

Internacionalmente, Mauro Cappelletti ganhou fama com suas pesquisas de direito comparado e junto com Bryant Garth escreveu talvez um dos livros (depois da tradução da Ministra Ellen Gracie) mais “lidos” em nossas faculdades de direito. No Brasil, o tema ganhou força mesmo nos anos 80, com o trabalho “A instrumentalidade do processo” do professor Candido Rangel Dinamarco, e as pesquisas de Kazuo Watanabe e Ada Pelegrini Grinover sobre o assunto.

Desenvolveu-se aqui o conceito de ondas do acesso à justiça, numa espécie de paridade entre o surgimento do Estado Liberal, de garantias individuais, e da social democracia, Estado-provedor, consolidado no Brasil com a Constituição de 1988.

O primeiro estaria para o acesso à Justiça, meramente formal (porta abertas) e com “J” maiúsculo, assim como o segundo estaria para o acesso à justiça, substancial e com “j” minúsculo, representado por um conjunto de “fazeres” do Estado com o objetivo de garantir acesso a uma ordem jurídica justa ao cidadão e.g. informações adequadas, gratuidade de custos para os pobres, defensoria pública, tutela de direitos coletivos, juizados especializados em pequenas causas, entre muitos outros fatores.

Os viços do acesso à justiça, e das outras promessas constitucionais, não foram aqui ressaltados com ironia. São mesmo belos. O acesso à justiça nos foi prometido incessantemente pelo legislador constituinte, juntamente com outras promessas fundamentais de saúde, educação, moradia, segurança etc. Todos desejamos esses valores e idealizamos uma sociedade que os concretize plenamente!

O problema sempre surge, no entanto, quando questionamos: quem vai pagar a conta?

Ora, o cobertor é curto! Garantir saúde, educação, moradia, etc tem um custo. Do mesmo modo, garantir acesso à justiça importa em enormes custos para o Estado. Manter a Justiça e outros órgãos essenciais como o Ministério Público e a Defensoria Pública significa desviar diariamente milhões de reais de outros objetivos igualmente fundamentais, como a saúde, a educação, a moradia, segurança, etc. Isto é especialmente relevante, porque hoje não cumprimos – nem de perto – sequer um destes objetivos razoavelmente.

A verdade é que a Justiça, especialmente no âmbito do processo civil, embora tenha como objetivo solucionar crises individuais, que afetam a vida dos litigantes, custa muito caro e acaba sugando recursos essenciais do Estado.

Quem não litiga acaba pagando os custos daqueles que se envolvem em processos judiciais. E estamos falando de uma conta cara!

O fenômeno econômico aqui representado é o da externalização dos custos. Quem participa do processo civil dificilmente paga ao Estado-juiz quantia equivalente ao que custou o seu processo, com o trabalho de juízes, cartorários e com os custos de manutenção de toda sua estrutura física. Pra se ter uma ideia do tamanho colossal desses custos, basta acessar a página de transparência de nossos tribunais. Os custos da Justiça e do acesso à justiça são pagos por todos os cidadãos. There is no free meal!

E as custas processuais, pra que servem então? Ora, estas sim podem tentar melhorar este quadro de injustiça (toda a sociedade paga pelo processo que cuida do interesse de alguns). Permitem que os litigantes remunerem o Estado em função dos custos gerados por aquele específico processo.

As custas processuais servem de elemento de dissuasão do abuso do processo. Em artigo anterior, já ressaltamos aqui o fenômeno do judicial fishing muito comum na Justiça do Trabalho e propiciado por um regime absolutamente sem custos ou sucumbência. Já que não há risco financeiro na derrota, o demandante não tem nada a perder, e acaba por provocar o Judiciário sem prévia reflexão adequada quanto à existência de seu direito.[1]

Além disso, custas recursais têm o potencial de evitar a interposição de recursos protelatórios, não apenas remunerando o Estado, mas também evitando sua sobrecarga e consequente aumento de custos.

O problema é que as custas são feias e ninguém quer defende-las, nenhum litigante quer pagar custas. É ruim para estes e para seus advogados. Além disso, as legislações que regulam as custas processuais não se pautam em pesquisas empíricas de quantificação dos custos do processo e, por consequência, a receita com as custas processuais representa pequeno percentual frente às gordas despesas dos tribunais.

Não fosse isso suficiente, o regime de gratuidade generalizada, para a Justiça do Trabalho, para os Juizados Especiais e para aqueles que se declaram pobres, acaba por tornar ainda mais clara a externalização desses custos. São os pobres que acabam pagando o preço pela gratuidade da Justiça, sobra dinheiro no orçamento do Judiciário, falta dinheiro para hospitais, escolas decentes, projetos habitacionais em favelas, etc.

O que queremos então? Tudo grátis? Não dá. Temos que conceber um sistema que imponha aos litigantes o pagamento por parte significante dos custos do processo. O primeiro passo é avaliar e quantificar estes custos. O segundo passo é permitir que estes custos sejam distribuídos equilibradamente no curso do processo, de modo que efetivamente possam recair em face do sucumbente. É ele quem deve arcar com os custos do processo, não apenas por uma questão de justiça, mas também para incentivar a autocomposição. Processo que não gera ao sucumbente um mal significativamente maior que o mero ressarcimento não concede incentivos pré-processuais à autocomposição. A expectativa de pagar custas relevantes ao fim, é também incentivo para o cumprimento espontâneo do direito material.

Fonte: atualidadesdodireito.com.br
Anterior Próxima