“Estatuto da família” criaria cenário insustentável para casais homossexuais

Com a ascensão de um Congresso aparentemente mais conservador e faltando poucas semanas para o segundo turno das eleições presidenciais, as discussões envolvendo direitos humanos encontram-se ainda mais inflamadas do que o usual. Nesse cenário, assuntos supostamente assentados renascem e acabam interferindo nos rumos da corrida eleitoral, mesmo que indiretamente.

Dentre outras pautas, o casamento igualitário e a conceituação do instituto familiar foram objetos de recente projeto de lei, que em breve deverá ser debatido pela nova conformação do poder Legislativo.

Tramita perante a Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6.583/13, de relatoria do deputado Anderson Ferreira, denominado “Estatuto da Família”. Dentre outras inovações, o projeto pretende redefinir o conceito de entidade familiar, ao afirmar em seu artigo 2º que “para os fins desta lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

A disposição legislativa vem na contramão da decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto da ADI 4.277 e da ADPF 132, que reconheceu, naquela oportunidade, a união estável para casais do mesmo sexo.

Embora em interpretação contrária à literalidade das disposições do artigo 226, parágrafo 3º, da Constituição da República, e também do artigo 1.723 do Código Civil, a corte entendeu unanimemente por dirimir essa questão a partir da norma vedadora de discriminação constante dos objetivos da República (artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal) e de uma série de outros direitos fundamentais, obstados de fruição em razão de ausência de regulamentação.

A superveniência da lei, caso aprovada, evidenciaria a dissonância entre Judiciário e Legislativo, e o embate ocasionaria situação de fato insustentável: parte dos casais homossexuais teria sua união estável reconhecida, ao passo que os demais, cuja relação se deu início em momento posterior à vigência da lei, não estariam abarcados no conceito de entidade familiar. Daí se retira três hipóteses distintas: a) casais que já tiveram o reconhecimento de sua união estável, por decisão judicial ou escritura pública; b) casais que vivam, à época, em união estável de fato, mas deixaram de formalizá-la; e c) casais cujo início da união estável se deu em momento posterior à vigência do “Estatuto da Família”.

Quanto aos integrantes do grupo “a”, cremos não haver maiores discussões ou divagações teóricas a serem pontuadas, face ao direito adquirido (CF, artigo 5º, inciso XXXVI).

Relativamente aos integrantes do grupo “b”, por não haver posicionamento definido — doutrinário ou jurisprudencial — não se pode afirmar a viabilidade do reconhecimento da união estável e os direitos dela decorrentes. Por um lado, a vedação do retrocesso parece garantir esse direito àqueles casais que conviviam em união estável de fato anteriormente à vigência da lei. Há quem invoque também o chamado princípio da proteção da confiança. Por outro lado, pode-se defender que a edição desta lei, fruto da manifestação democrática, retiraria a legitimidade da decisão proferida; nesse caso, vedado o reconhecimento.

Quanto aos integrantes do grupo “c”, considerando que processo legislativo não se subordina ao entendimento jurisprudencial, e que aquele se sobrepõe a este, a consequência do novo conceito de entidade familiar obstaria o direito ao reconhecimento da união — pelo menos até pensarmos em nova declaração de inconstitucionalidade, o que, ainda assim, acirraria o debate no que tange à separação dos poderes e o ativismo judicial.

Ainda que amplamente defendida no mérito a decisão no julgamento das referidas ações diretas de inconstitucionalidade, não se duvida que os efeitos do período eleitoral repercutam não só no posicionamento do Legislativo, mas também, caso aprovado o “Estatuto da Família”, no debate acerca dos limites interpretativos do Supremo face à literalidade da Constituição e sua relação com a crise de representatividade dos parlamentares.

Também não deve se esquecer, a par do debate jurídico inicialmente desenvolvido, daqueles indivíduos integrantes dos grupos “b” e “c”, na hipótese de prevalecer o não reconhecimento de sua situação de fato como compatível com o ordenamento. Caso não esteja nosso direito ou os anseios populares suficientemente maduros para encarar as alterações relacionais da sociedade, será que podemos imputar o ônus de um conservadorismo majoritário nas mãos daqueles que vivem em situação negligenciada pelo Estado? Esperamos que o debate não se encerre por aqui.

Por Pedro Henrique Arcain Riccetto e Guilherme Fonseca de Oliveira
Fonte: conjur.com.br
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