Na coluna anterior tratei dos problemas da prova testemunhal em relação à fragilidade da memória e a possibilidade de implantação de falsas memórias, uma defraudação que pode ser criada por fatores endógenos ou exógenos.
Agora, o foco será o ‘reconhecimento pessoal’. Como explico na obra Direito Processual Penal (11ª edição, editora Saraiva, 2014), o reconhecimento pessoal é um ato através do qual alguém é levado a analisar alguma pessoa ou coisa e, recordando o que havia percebido em um determinado contexto, compara as duas experiências.[1] Quando coincide a recordação empírica com essa nova experiência levada a cabo em audiência ou no inquérito policial, ocorre o reconhecer. Partimos da premissa de que é reconhecível tudo o que podemos perceber, ou seja, só é passível de ser reconhecido o que pode ser conhecido pelos sentidos. Nessa linha, o conhecimento por excelência é o visual, assim previsto no CPP. Contudo, silencia o Código no que se refere ao reconhecimento que dependa de outros sentidos, como o acústico, olfativo ou táctil. Carecemos de um dispositivo similar ao artigo 216 do Códice di Procedura Penale italiano, que prevê:
Antes de entrar no tema, sublinho que entendo que o reconhecimento somente pode ocorrer com o consentimento do imputado. Não existe dever de participar e ele está protegido pelo nemo tenetur se detegere, ou seja, não é obrigado a participar do ato e não pode ser compelido. Sem embargo, reconheço que existem autores e entendimentos diversos. Mas minha posição é muito clara: o imputado não está obrigado a participar. Feito esse esclarecimento, sigamos.
O ponto de estrangulamento é o nível de (in)observância por parte dos juízes e delegados da forma prevista no Código de Processo Penal. Trata‑se de uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa de que — em matéria processual penal — forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais. Infelizmente, prática bastante comum na praxe forense consiste em fazer “reconhecimentos informais”, admitidos em nome do princípio do livre convencimento motivado. É um absurdo quando um juiz questiona a testemunha ou vítima se “reconhece(m) o(s) réu(s) ali presente(s) como sendo o(s) autor(es) do fato”. Essa “simplificação” arbitrária constitui um desprezo à formalidade do ato probatório, atropelando as regras do devido processo e, principalmente, violando o direito de não fazer prova contra si mesmo. Por mais que os tribunais brasileiros façam vista grossa para esse abuso, argumentando às vezes em nome do “livre convencimento do julgador”, a prática é ilegal e absurda.
Na Espanha, “la diligencia de reconocimiento en rueda” está previsto nos artigos 368 e seguintes da LECrim e é considerada uma prova típica da fase préprocessual, sendo “atipica e inidónea para ser practicada en el plenário o acto del juicio oral” (as primeiras sentenças do Tribunal Supremo nesse sentido são de 7 de dezembro de 1984 e 5 de março de 1986). Argumentam que a identificação do acusado é uma função típica da investigação preliminar, sem a qual não se pode produzir a acusação. Por outro lado, há uma preocupação muito grande (e incrivelmente desconsiderada pelo sistema judiciário brasileiro) de que a repetição dessa prova em juízo é extremamente problemática, pois é praticamente inviável repetir em juízo a “roda de reconhecimento” com as mesmas pessoas que estavam presentes na fase preliminar. Logo, a única pessoa cuja presença estaria sendo repetida em ambos os atos seria o réu, e isso constitui um inequívoco induzimento ao reconhecimento. Na sentença de 24 de junho de 1991, o Tribunal Supremo da Espanha alertou ainda da dificuldade de repetir o reconhecimento quando da primeira vez foi realizado de forma incorreta, pois “existe el grave peligro de que la persona que en la primera ocasión reconoció mal porque la rueda estaba mal constituída, siga reconociendo no al participe del hecho criminal, sino a quien ya fue defectuosamente identificado”. Tais questões são da maior relevância, mas nunca mereceram qualquer atenção por parte da doutrina ou jurisprudência brasileira... Daí por que há uma errônea cultura de simplificação das formas, que ao informalizar o ato reduz a esfera de garantias fundamentais.
Para além disso, o reconhecimento pessoal tem que ser problematizado à luz dos recentes estudos de psicologia social, especialmente em relação a memória e sua deturpação.
Tomando por ponto de partida os estudos de Real Martinez, Fariña Rivera e Arce Fernandez,[2] que necessariamente devem ser complementados pelas lições de Loftus,[3] devese considerar a existência de diversas variáveis que modulam a qualidade da identificação, tais como o tempo de exposição da vítima ao crime e de contato com o agressor; a gravidade do fato (a questão da memória está intimamente relacionada com a emoção experimentada); o intervalo de tempo entre o contato e a realização do reconhecimento; as condições ambientais (visibilidade, aspectos geográficos etc.); as características físicas do agressor (mais ou menos marcantes); as condições psíquicas da vítima (memória, estresse, nervosismo etc.); a natureza do delito (com ou sem violência física; grau de violência psicológica etc.), enfim, todo um feixe de fatores que não podem ser desconsiderados.
A presença de arma distrai a atenção do sujeito de outros detalhes físicos importantes do autor do delito, reduzindo a capacidade de reconhecimento. O chamado efeito do foco na arma é decisivo para que a vítima não se fixe nas feições do agressor, pois o fio condutor da relação de poder que ali se estabelece é a arma. Assim, tal variável deve ser considerada altamente prejudicial para um reconhecimento positivo, especialmente nos crimes de roubo, extorsão e outros delitos em que o contato agressorvítima seja mediado pelo uso de arma de fogo.
Também se devem considerar as expectativas da testemunha (ou vítima), pois as pessoas tendem a ver e ouvir aquilo que querem ver e ouvir. Daí por que os estereótipos culturais (como cor, classe social, sexo etc.) têm uma grande influência na percepção dos delitos, fazendo com que as vítimas e testemunhas tenham uma tendência de reconhecer em função desses estereótipos (exemplo típico ocorre nos crimes patrimoniais com violência — roubo — em que a raça e perfil socioeconômico são estruturantes de um verdadeiro estigma).[4]
Ainda que o criminoso nato de Lombroso seja apenas um marco histórico da criminologia, é inegável que ele habita o imaginário de muitos (principalmente em países com profundos contrastes sociais, baixo nível cultural e, por consequência, alto índice de violência urbana como o nosso). Assim, um dos estereótipos mais presentes, apontam os autores, é o de que “lo que es hermoso es bueno”. Um rosto mais bonito e atraente possui — aos olhos de muitos — mais traços de uma conduta socialmente desejável e aceita, do que uma cara feia...
Cicatrizes, principalmente na face ou em lugares visíveis, são consideradas anormais, indicando uma conduta também anormal. Elementar que tudo isso é um absurdo a nossos olhos, mas basta que olhemos em volta, para ver que tais pensamentos habitam o imaginário de muita gente.
Outra variável é a “transferência inconsciente”, quando a testemunha ou vítima indica uma pessoa que viu, em momento concomitante ou próximo àquele em que ocorreu o crime, dentro do crime, geralmente como autor. Citam os autores[5] o estudo de Buckhout, que simulou um roubo na frente de 141 estudantes e, sete semanas depois, pediu-lhes que reconhecessem o assaltante em um grupo de 6 fotografias. Sessenta por cento dos sujeitos realizaram uma identificação incorreta. Entre eles, 40% selecionaram uma pessoa que viram na cena do crime, mas que era um inocente espectador. LOFTUS obteve resultados similares em experiências do gênero.
O “efeito compromisso” (Gorenstein e Ellsworth) é definido quando ocorre uma identificação incorreta (por exemplo, quando a pessoa analisa muitas fotografias e elege erroneamente o sujeito) e posteriormente realiza um reconhecimento pessoal.
Nesse caso, o agente tende a persistir no erro, advertindo os autores de que não se deve proceder ao reconhecimento pessoal depois do reconhecimento por fotografias, pois há um risco muito grande de que ele mantenha o compromisso anterior, ainda que tenha dúvidas. Afirmam ainda que “esto resulta muy peligroso dado que la policía en su pesquisa utiliza este tipo de estrategias con los testigos presenciales”.[6]
Muitas vezes, antes da realização do reconhecimento pessoal, a vítima/testemunha é convidada pela autoridade policial a examinar ‘álbuns de fotografia’, buscando já uma pré-identificação do autor do fato. O maior inconveniente está no efeito indutor disso, ou seja, estabelece-se uma “percepção precedente”, ou seja, um pré-juízo que acaba por contaminar o futuro reconhecimento pessoal. Não há dúvida de que o reconhecimento por fotografia (ou mesmo quando a mídia notícia os famosos ‘retratos falados’ do suspeito) contamina e compromete a memória, de modo que essa ocorrência passada acaba por comprometer o futuro (o reconhecimento pessoal), havendo uma indução em erro. Existe a formação de uma imagem mental da fotografia, que culmina por comprometer o futuro reconhecimento pessoal. Trata-se de uma experiência visual comprometedora.
Portanto, é censurável e deve ser evitado o reconhecimento por fotografia (ainda que seja mero ato preparatório do reconhecimento pessoal), dada a contaminação que pode gerar, poluindo e deturpando a memória. Ademais, o reconhecimento pessoal também deve ter seu valor probatório mitigado, pois evidente sua falta de credibilidade e fragilidade.
Elementar que a confiabilidade do reconhecimento também deve considerar a pressão policial ou judicial (até mesmo manipulação) e a inconsciente necessidade das pessoas de corresponder à expectativa criada, principalmente quando o nível sociocultural da vítima ou testemunha não lhe dá suficiente autonomia psíquica para descolar‑se do desejo inconsciente de atender (ou de não frustrar) o pedido da “autoridade” (paicensor).
Malpass e Devine, citados pelos autores, realizaram uma simulação interessante. Montado o reconhecimento, foi informado aos presentes (aqueles que deveriam proceder à identificação) que o autor do delito estava provavelmente presente (quando na verdade não estava). Setenta e oito por cento dos sujeitos reconheceram erroneamente o agressor. Mas quando avisaram que o autor podia não estar presente, o índice de reconhecimento caiu para 33%. Definitivamente, a forma como é conduzido e montado o reconhecimento afeta o resultado final, de forma muito relevante.
A situação é mais preocupante quando verificamos que a imensa parcela dos reconhecimentos, no Brasil, é feita sem a presença de advogado, sem oportunidade de recusa por parte do imputado (pois preso temporariamente ou até ilegalmente conduzido coercitivamente), no interior de delegacias de polícia, sem qualquer controle. Não menos grave é a rotineira prática judicial de, em audiência, simplesmente perguntar à testemunha/vítima: “a senhora reconhece o réu ali sentado como sendo o agressor?”.
[1] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, v. 2, p. 106, apud LOPES Jr., Aury. “Direito Processual Penal”, 11ª ed., Saraiva, 2014, p. 700 e ss.
[2] REAL MARTINEZ, Santiago; FARIÑA RIVERA, Francisca e ARCE FERNANDEZ, Ramón. Reconocimiento de Personas Mediante Ruedas de Identificación. In: Psicologia e Investigación Judicial, p. 93 e ss
[3] Sobre o tema, além dos estudos de LOFTUS é imprescindível acompanhar a produção de Lilian Stein no Brasil.
[4] Infelizmente, vivemos uma realidade social em que o racismo (entre outros) constitui uma metarregra a orientar todo o sistema jurídico‑penal, desde a abordagem policial, passando pelo reconhecimento da vítima, até chegar no momento da sentença, em que o juiz não raras vezes julga a partir dessa metarregra (ainda que inconscientemente, é claro). A estigmatização de certos segmentos sociais é uma triste realidade, da qual temos muito de que nos envergonhar.
[5] REAL MARTINEZ, Santiago; FARIÑA RIVERA, Francisca e ARCE FERNANDEZ, Ramón. Reconocimiento de Personas Mediante Ruedas de Identificación. In: Psicologia e Investigación Judicial, p. 93 e ss.
[6] Idem, ibidem, p. 99.
Por Aury Lopes Jr
Fonte: conjur.com.br
Agora, o foco será o ‘reconhecimento pessoal’. Como explico na obra Direito Processual Penal (11ª edição, editora Saraiva, 2014), o reconhecimento pessoal é um ato através do qual alguém é levado a analisar alguma pessoa ou coisa e, recordando o que havia percebido em um determinado contexto, compara as duas experiências.[1] Quando coincide a recordação empírica com essa nova experiência levada a cabo em audiência ou no inquérito policial, ocorre o reconhecer. Partimos da premissa de que é reconhecível tudo o que podemos perceber, ou seja, só é passível de ser reconhecido o que pode ser conhecido pelos sentidos. Nessa linha, o conhecimento por excelência é o visual, assim previsto no CPP. Contudo, silencia o Código no que se refere ao reconhecimento que dependa de outros sentidos, como o acústico, olfativo ou táctil. Carecemos de um dispositivo similar ao artigo 216 do Códice di Procedura Penale italiano, que prevê:
Art. 216. Altre RicognizioniO reconhecimento de pessoas e coisas está previsto nos artigos 226 e seguintes do CPP, e pode ocorrer tanto na fase préprocessual como também processual.
1. Quando dispone la ricognizione di voci, suoni o di quanto altro può essere oggetto di percezione sensoriale, il giudice procede osservando le disposizioni dell’art. 213 [que trata do reconhecimento de pessoas], in quanto applicabili.
Antes de entrar no tema, sublinho que entendo que o reconhecimento somente pode ocorrer com o consentimento do imputado. Não existe dever de participar e ele está protegido pelo nemo tenetur se detegere, ou seja, não é obrigado a participar do ato e não pode ser compelido. Sem embargo, reconheço que existem autores e entendimentos diversos. Mas minha posição é muito clara: o imputado não está obrigado a participar. Feito esse esclarecimento, sigamos.
O ponto de estrangulamento é o nível de (in)observância por parte dos juízes e delegados da forma prevista no Código de Processo Penal. Trata‑se de uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa de que — em matéria processual penal — forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais. Infelizmente, prática bastante comum na praxe forense consiste em fazer “reconhecimentos informais”, admitidos em nome do princípio do livre convencimento motivado. É um absurdo quando um juiz questiona a testemunha ou vítima se “reconhece(m) o(s) réu(s) ali presente(s) como sendo o(s) autor(es) do fato”. Essa “simplificação” arbitrária constitui um desprezo à formalidade do ato probatório, atropelando as regras do devido processo e, principalmente, violando o direito de não fazer prova contra si mesmo. Por mais que os tribunais brasileiros façam vista grossa para esse abuso, argumentando às vezes em nome do “livre convencimento do julgador”, a prática é ilegal e absurda.
Na Espanha, “la diligencia de reconocimiento en rueda” está previsto nos artigos 368 e seguintes da LECrim e é considerada uma prova típica da fase préprocessual, sendo “atipica e inidónea para ser practicada en el plenário o acto del juicio oral” (as primeiras sentenças do Tribunal Supremo nesse sentido são de 7 de dezembro de 1984 e 5 de março de 1986). Argumentam que a identificação do acusado é uma função típica da investigação preliminar, sem a qual não se pode produzir a acusação. Por outro lado, há uma preocupação muito grande (e incrivelmente desconsiderada pelo sistema judiciário brasileiro) de que a repetição dessa prova em juízo é extremamente problemática, pois é praticamente inviável repetir em juízo a “roda de reconhecimento” com as mesmas pessoas que estavam presentes na fase preliminar. Logo, a única pessoa cuja presença estaria sendo repetida em ambos os atos seria o réu, e isso constitui um inequívoco induzimento ao reconhecimento. Na sentença de 24 de junho de 1991, o Tribunal Supremo da Espanha alertou ainda da dificuldade de repetir o reconhecimento quando da primeira vez foi realizado de forma incorreta, pois “existe el grave peligro de que la persona que en la primera ocasión reconoció mal porque la rueda estaba mal constituída, siga reconociendo no al participe del hecho criminal, sino a quien ya fue defectuosamente identificado”. Tais questões são da maior relevância, mas nunca mereceram qualquer atenção por parte da doutrina ou jurisprudência brasileira... Daí por que há uma errônea cultura de simplificação das formas, que ao informalizar o ato reduz a esfera de garantias fundamentais.
Para além disso, o reconhecimento pessoal tem que ser problematizado à luz dos recentes estudos de psicologia social, especialmente em relação a memória e sua deturpação.
Tomando por ponto de partida os estudos de Real Martinez, Fariña Rivera e Arce Fernandez,[2] que necessariamente devem ser complementados pelas lições de Loftus,[3] devese considerar a existência de diversas variáveis que modulam a qualidade da identificação, tais como o tempo de exposição da vítima ao crime e de contato com o agressor; a gravidade do fato (a questão da memória está intimamente relacionada com a emoção experimentada); o intervalo de tempo entre o contato e a realização do reconhecimento; as condições ambientais (visibilidade, aspectos geográficos etc.); as características físicas do agressor (mais ou menos marcantes); as condições psíquicas da vítima (memória, estresse, nervosismo etc.); a natureza do delito (com ou sem violência física; grau de violência psicológica etc.), enfim, todo um feixe de fatores que não podem ser desconsiderados.
A presença de arma distrai a atenção do sujeito de outros detalhes físicos importantes do autor do delito, reduzindo a capacidade de reconhecimento. O chamado efeito do foco na arma é decisivo para que a vítima não se fixe nas feições do agressor, pois o fio condutor da relação de poder que ali se estabelece é a arma. Assim, tal variável deve ser considerada altamente prejudicial para um reconhecimento positivo, especialmente nos crimes de roubo, extorsão e outros delitos em que o contato agressorvítima seja mediado pelo uso de arma de fogo.
Também se devem considerar as expectativas da testemunha (ou vítima), pois as pessoas tendem a ver e ouvir aquilo que querem ver e ouvir. Daí por que os estereótipos culturais (como cor, classe social, sexo etc.) têm uma grande influência na percepção dos delitos, fazendo com que as vítimas e testemunhas tenham uma tendência de reconhecer em função desses estereótipos (exemplo típico ocorre nos crimes patrimoniais com violência — roubo — em que a raça e perfil socioeconômico são estruturantes de um verdadeiro estigma).[4]
Ainda que o criminoso nato de Lombroso seja apenas um marco histórico da criminologia, é inegável que ele habita o imaginário de muitos (principalmente em países com profundos contrastes sociais, baixo nível cultural e, por consequência, alto índice de violência urbana como o nosso). Assim, um dos estereótipos mais presentes, apontam os autores, é o de que “lo que es hermoso es bueno”. Um rosto mais bonito e atraente possui — aos olhos de muitos — mais traços de uma conduta socialmente desejável e aceita, do que uma cara feia...
Cicatrizes, principalmente na face ou em lugares visíveis, são consideradas anormais, indicando uma conduta também anormal. Elementar que tudo isso é um absurdo a nossos olhos, mas basta que olhemos em volta, para ver que tais pensamentos habitam o imaginário de muita gente.
Outra variável é a “transferência inconsciente”, quando a testemunha ou vítima indica uma pessoa que viu, em momento concomitante ou próximo àquele em que ocorreu o crime, dentro do crime, geralmente como autor. Citam os autores[5] o estudo de Buckhout, que simulou um roubo na frente de 141 estudantes e, sete semanas depois, pediu-lhes que reconhecessem o assaltante em um grupo de 6 fotografias. Sessenta por cento dos sujeitos realizaram uma identificação incorreta. Entre eles, 40% selecionaram uma pessoa que viram na cena do crime, mas que era um inocente espectador. LOFTUS obteve resultados similares em experiências do gênero.
O “efeito compromisso” (Gorenstein e Ellsworth) é definido quando ocorre uma identificação incorreta (por exemplo, quando a pessoa analisa muitas fotografias e elege erroneamente o sujeito) e posteriormente realiza um reconhecimento pessoal.
Nesse caso, o agente tende a persistir no erro, advertindo os autores de que não se deve proceder ao reconhecimento pessoal depois do reconhecimento por fotografias, pois há um risco muito grande de que ele mantenha o compromisso anterior, ainda que tenha dúvidas. Afirmam ainda que “esto resulta muy peligroso dado que la policía en su pesquisa utiliza este tipo de estrategias con los testigos presenciales”.[6]
Muitas vezes, antes da realização do reconhecimento pessoal, a vítima/testemunha é convidada pela autoridade policial a examinar ‘álbuns de fotografia’, buscando já uma pré-identificação do autor do fato. O maior inconveniente está no efeito indutor disso, ou seja, estabelece-se uma “percepção precedente”, ou seja, um pré-juízo que acaba por contaminar o futuro reconhecimento pessoal. Não há dúvida de que o reconhecimento por fotografia (ou mesmo quando a mídia notícia os famosos ‘retratos falados’ do suspeito) contamina e compromete a memória, de modo que essa ocorrência passada acaba por comprometer o futuro (o reconhecimento pessoal), havendo uma indução em erro. Existe a formação de uma imagem mental da fotografia, que culmina por comprometer o futuro reconhecimento pessoal. Trata-se de uma experiência visual comprometedora.
Portanto, é censurável e deve ser evitado o reconhecimento por fotografia (ainda que seja mero ato preparatório do reconhecimento pessoal), dada a contaminação que pode gerar, poluindo e deturpando a memória. Ademais, o reconhecimento pessoal também deve ter seu valor probatório mitigado, pois evidente sua falta de credibilidade e fragilidade.
Elementar que a confiabilidade do reconhecimento também deve considerar a pressão policial ou judicial (até mesmo manipulação) e a inconsciente necessidade das pessoas de corresponder à expectativa criada, principalmente quando o nível sociocultural da vítima ou testemunha não lhe dá suficiente autonomia psíquica para descolar‑se do desejo inconsciente de atender (ou de não frustrar) o pedido da “autoridade” (paicensor).
Malpass e Devine, citados pelos autores, realizaram uma simulação interessante. Montado o reconhecimento, foi informado aos presentes (aqueles que deveriam proceder à identificação) que o autor do delito estava provavelmente presente (quando na verdade não estava). Setenta e oito por cento dos sujeitos reconheceram erroneamente o agressor. Mas quando avisaram que o autor podia não estar presente, o índice de reconhecimento caiu para 33%. Definitivamente, a forma como é conduzido e montado o reconhecimento afeta o resultado final, de forma muito relevante.
A situação é mais preocupante quando verificamos que a imensa parcela dos reconhecimentos, no Brasil, é feita sem a presença de advogado, sem oportunidade de recusa por parte do imputado (pois preso temporariamente ou até ilegalmente conduzido coercitivamente), no interior de delegacias de polícia, sem qualquer controle. Não menos grave é a rotineira prática judicial de, em audiência, simplesmente perguntar à testemunha/vítima: “a senhora reconhece o réu ali sentado como sendo o agressor?”.
O absurdo é total
O reconhecimento pessoal é uma prova que poderá ser decisiva em um julgamento, especialmente quando a tese é negativa de autoria. Por isso, há um alerta mundial sobre a forma como deve ser feito e as diversas cautelas que se deve ter para não deturpar essa prova. O problema brasileiro começa na parca disciplina legal (especialmente em relação ao número de participantes), na forma utilizada (reconhecimento simultâneo e não sequencial (trataremos disso na próxima coluna)) e, principalmente, na falta de um preparo específico da polícia judiciária para máxima preservação da originalidade da memória da testemunha/vítima. A cautela para não haver induções e tampouco a poluição/defraudação da memória é crucial para que se possa dar credibilidade ao reconhecimento pessoal, sob pena de continuarmos a cometer graves erros judiciários, infelizmente tão comuns na nossa realidade judiciária.[1] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, v. 2, p. 106, apud LOPES Jr., Aury. “Direito Processual Penal”, 11ª ed., Saraiva, 2014, p. 700 e ss.
[2] REAL MARTINEZ, Santiago; FARIÑA RIVERA, Francisca e ARCE FERNANDEZ, Ramón. Reconocimiento de Personas Mediante Ruedas de Identificación. In: Psicologia e Investigación Judicial, p. 93 e ss
[3] Sobre o tema, além dos estudos de LOFTUS é imprescindível acompanhar a produção de Lilian Stein no Brasil.
[4] Infelizmente, vivemos uma realidade social em que o racismo (entre outros) constitui uma metarregra a orientar todo o sistema jurídico‑penal, desde a abordagem policial, passando pelo reconhecimento da vítima, até chegar no momento da sentença, em que o juiz não raras vezes julga a partir dessa metarregra (ainda que inconscientemente, é claro). A estigmatização de certos segmentos sociais é uma triste realidade, da qual temos muito de que nos envergonhar.
[5] REAL MARTINEZ, Santiago; FARIÑA RIVERA, Francisca e ARCE FERNANDEZ, Ramón. Reconocimiento de Personas Mediante Ruedas de Identificación. In: Psicologia e Investigación Judicial, p. 93 e ss.
[6] Idem, ibidem, p. 99.
Leia também a parte 01. Clique aqui.
Por Aury Lopes Jr
Fonte: conjur.com.br