http://goo.gl/7tmnQf | Peço a permissão dos esclarecidos leitores de nossa coluna para dedicar o presente artigo à homenagem de um dos maiores advogados brasileiros, o professor Ruy Samuel Espíndola, recentemente empossado na cadeira 14 da Academia Catarinense de Letras Jurídicas (Acalej).
Dentre as muitas frases que imortalizou, esse grande pensador brasileiro, Nelson Rodrigues, talvez um de seus poucos verdadeiros filósofos, deixou em todos gravados essa indiscutível verdade: “toda unanimidade é burra” (quando não pelo conteúdo, pela forma como é alcançada). Ideia tanto mais verdadeira quanto desconsiderada, pois, como se sabe, todos adoramos escalar um ideia pronta. A pesquisa jurídica no Brasil não é diferente.
Boa parte das teorias jurídicas brasileiras, sem que isso implique qualquer novidade, assenta-se em conjecturas ou em generalizações de pesquisas sociais absolutamente desprovidas de comprovação. São verdades repetidas sem que ninguém as tenha submetido à comprovação.
Todos nós somos confrontados diariamente com hipóteses elevadas à condição de notoriedades evidentes por si mesmas. O cidadão é permanentemente testado em sua paciência e credulidade com hipóteses veiculadas de forma grandiloquente por especialistas que generalizam experiências isoladas, que, na maior parte das vezes, representam pesquisas que sequer foram desenvolvidas para nossa realidade. É esse o caso dos seguintes exemplos: “cadeia não reduz a criminalidade”, divulgada com a mesma solenidade com que se divulga o seu exato oposto: “a maior causa da criminalidade em nossas ruas é a falta de cadeia para os criminosos”. Tem ainda uma versão mais requintada, que afirma superar ambas as contradições: “não é o tempo de encarceramento, mas a certeza de punição que de fato reduz a impunidade”. Afinal de contas, onde está a verdade em tudo isso? A audiência fica compreensivelmente perplexa com discrepâncias tão evidentes e que, não obstante, são defendidas com o mesmo vigor por intelectuais igualmente qualificados.
O impressionante nessas verdades absolutas e autoevidentes não é apenas a sua imanente contradição, já que umas, como se pode ver, afirmam precisamente o contrário das outras. Também não está no fato de que intelectuais igualmente qualificados as profiram com a mesma confiança na sua indiscutível excelência, não obstante — repita-se — essencialmente antagônicas. O mais impressionante, como se disse, talvez esteja no fato de que são generalizações sem que jamais a tenhamos testado seriamente nas realidades a que se destinam (país, estado, cidade).
Além disso, quem fizer uma rápida pesquisa em qualquer tema de fato social importante (homicídio, latrocínio, furto, aborto e pedofilia), mesmo em orgãos do governo, navegará em águas absolutamente turvas, com números a sustentar qualquer conclusão. Na ausência de pesquisas convincentes, pergunta-se: a mesma decisão tomada para a União terá o mesmo efeito num estado ou numa cidade? Decisões abstratas aparentemente aconselháveis para realidade como a de São Paulo, Santa Catarina e Paraná terão a mesma eficácia em Rondônia, Roraima ou Amapá?
Nada obstante, leis e decisões judiciais são cotidianamente adotadas sem que jamais tenham sido acompanhadas de pesquisas que possam comprovar os dados que suportaram suas premissas e generalizações.
Talvez isso explique porque, em matéria de direito, muitos prefiram sustentar suas posições em pesquisas sociais promovidas em realidades (econômica, história, social e politica) absolutamente diversas da brasileira. Em outras palavras, é como se dissessem: lá pelo menos as pesquisas são sérias. Isso me faz lembrar uma antiga piada contada por um querido professor de filosofia do direito e de criminologia: um vizinho encontra o outro completamente bêbado procurando a chave de casa perto do poste de luz. Depois de ajudá-lo a procurar por mais de meia hora, finalmente lhe pergunta se tinha certeza de ter perdido a chave naquele lugar. Ao que outro responde: — “não, mas aqui pelo menos tem luz”.
Karl Popper, na sua excepcional e mais prestigiada obra, “A lógica da pesquisa científica”, recusa a possibilidade de extrair enunciados universais, tais como teorias ou hipóteses, de enunciados particulares, singulares e concretos[1]. No dizer de Popper, do ponto de vista lógico, independentemente de quantos casos possamos observar, jamais poderemos retirar dessa observação uma conclusão universal: “não importa quanto cisnes brancos possamos observar, isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos”[2].
Para Popper, uma das mais graves questões do conhecimento consiste precisamente em saber os limites das inferências indutivas, ou seja, um dos mais importantes problemas da pesquisa científica está em saber em que medida as conclusões que retiramos das nossas observações e pesquisas podem ser generalizadas em hipóteses e teorias. Não é sem razão, pois, que Popper transformou esse problema, o problema da indução, na preocupação capital daquela que é sem dúvida uma das principais obras de teoria do conhecimento de nossos tempos (a sua “A lógica da pesquisa científica”).
Popper descreve o problema da seguinte forma: “O problema da indução também pode ser apresentado como a indagação acerca da validade ou verdade de enunciados universais que encontram base na experiência, tais como a hipótese e os sistemas teóricos das ciências empíricas”[3].
Em resumo, o problema de Popper é também o de saber o que é que nós, honestamente, do ponto de vista intelectual, podemos conhecer e concluir a partir da experiência sensível. No caso da pesquisa em direito no Brasil, o problema seria ainda mais grave, pois qual seria a consistência de conclusões e hipóteses que têm como base premissas não comprovadas, ou pelo menos não comprovadas em nossa própria experiência social?
Tem algum significado para o Brasil, por exemplo, a afirmação de que a pena morte reduziu, ou não, a criminalidade em determinada cidade norte-americana? Para Popper uma tal constatação provavelmente não teria muito significado nem mesmo para os Estados Unidos, já que a sua generalização só poderia ser concretizada ao custo da desconsideração de circunstâncias específicas (histórias, geográficas, econômicas, educacionais, culturais entre outros) de outras experiências e realidades.
Hegel, num maravilhoso pequeno texto (“Quem pensa abstratamente?”[4]), afirmava que as pessoas perspicazes dificilmente se deixavam enganar com “generalizações abstratas”, isto é, quem quer enxergar a verdade não se deixa iludir pela forma parcial daqueles que pensam por puras “abstrações”. Por essência, para “abstrair”, deve-se “generalizar”, isto é, deve desconsiderar as particularidades de cada situação concreta. Afinal de contas, pensar abstratamente nada mais é, temos que concordar com Hegel, do que desconsiderar particularidades.
(Precisamente para escapar ao perigo da arbitrariedade de suas próprias abstrações, que são sempre generalizações de aspectos parciais, é que o magistrado tem a obrigação de se submeter à abstração da lei, não podendo, a cada decisão sua, reinventar, ou reinaugurar um momento de abstração, onde possa impor, à revelia da abstração do legislador, a sua própria abstração).
Por sua vez, quem almeja compreender o fenômeno da criminalidade, por exemplo, não pode proceder a generalizações de aspectos particulares, muito menos deixar-se envolver pelas paixões que normalmente nos iludem quanto aos fatos sociais. Se o legislador tentar resolver o problema da criminalidade apenas com o “remédio” da punição terá o mesmo significativo efeito de quem, em sentido totalmente oposto, menospreza o caráter preventivo, concreto e, por que não?, simbólico, que o direito penal revela como orientação de sentido para as condutas humanas. Generaliza e erra tanto quem menospreza a eficácia do Direito Penal quanto aquele que o eleva à única solução para o problema da criminalidade.
O crime, evidentemente, não é um problema exclusivo do Direito Penal, mas também não pode desconsiderá-lo. O fenômeno do crescimento das taxas de homicídio em nossa sociedade, por exemplo, evidentemente, não pode ser explicado apenas como consequência de algum espírito degenerado de indivíduos cuja natureza nasce e é essencialmente criminosa. Fosse esse o caso, e a única solução seria mesmo o seu enclausuramento e, com isso, a sua exclusão do convívio social. Se indivíduos nascem mesmo predestinados ao crime, nada há que se fazer a não ser suportá-los ou excluí-los definitivamente da sociedade. Educação, família, economia e inclusão social nada têm o que dizer para o que é essencialmente mal. Obviamente, a simples disposição do problema já revela a parcialidade e inadequação de uma generalização assim deduzida. Também não explica como sociedades diminuem ou veem aumentar as suas taxas de criminalidade.
De outro lado, hoje é possível dizer que tampouco a criminalidade é um fenômeno que se reconduza apenas a aspectos econômicos e sociais, como muitos acreditavam. Países extremamente pobres convivem com taxas de criminalidade expressivamente menores que países de economia estável. E para não ir muito longe, não obstante o Brasil experimente nos últimos anos uma taxa considerável de inclusão social, no entanto, para a surpresa de muitos, ao invés de um decréscimo nos índices de criminalidade, assistimos assustados a uma desconcertante elevação de quase todos os indicadores de infrações criminais.
Muito provavelmente, como sustentam vozes mais autorizadas, o crime seja mesmo um fenômeno de múltiplas causa, não se podendo resumir uma resposta eficaz às suas origens meramente às qualidades ou deficiências do aparelho policial-repressivo. Parodiando alguém, sem desmerecer todos os agentes da repressão estatal à criminalidade, o crime é fenômeno complexo demais para ficar a cargo apenas da polícia.
Por coincidência, no mesmo belo texto acima referido, Hegel recusava enxergar no criminoso uma realidade social de uma única causa ou aspecto exclusivo (cito):
Na verdade, esse espetacular pensador de nossos tempos, Karl Popper, fez dessa uma de suas principais batalhas: a rejeição da possibilidade aceitarmos verdades universais a partir de experiências indutivas. Por isso, irá opor-se à ideia de um princípio da indução, insistentemente defendido por Reichenbach, que acreditava que a verdade das ciências depende da aceitação da legitimidade do raciocínio indutivo. Contrariamente, Popper dirá que, na melhor das hipóteses, o método indutivo é supérfluo. Que todos os corvos que eu tenha encontrado sejam pretos apenas prova isso, ou seja, que eu só encontrei corvos pretos, e não que não possam existir corvos de outra cor.
Além disso, abstrações genéricas trazem geralmente outro vício, para Popper inaceitável: o fato de não se predisporem a refutações. Para Popper, como se sabe, cada teoria ou hipótese apenas se sustenta cientificamente enquanto seja possível de ser refutada/confirmada. Hipóteses, afirmações ou teorias que, por sua conformação, não sejam permanentemente passíveis de falseabilidade (confirmadas/refutadas) não têm legitimidade científica.
Isso também explicaria a desconfiança de Popper quanto à possibilidade de a Filosofia colocar alguma problema genuíno: como acreditar em teorias que, precisamente como explicação de tudo, não se permitem verificar. A não ser que façamos como um espécie de pensamento analítica, que, depois de ser convencido de suas limitações, pretendeu reduzir a filosofia à lógica formal.
Por fim, tudo isso, obviamente, não significa a completa inutilidade de pesquisas comparadas, já que, desde que submetidas ao confronto permanente de experiências com a realidade para onde se queiram transportar, tem evidentemente a legitimidade do argumento de reforço.
[1] Karl Popper. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2ª ed., 2013, p. 27.
[2] Karl Popper. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2ª ed., 2013, p. 27.
[3] Karl Popper. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2ª ed., 2013, p. 27.
[4] G. W. F. Hegel. Quem pensa abstratamente?, (Síntese Nova Fase: V. 22 N. 69 (1995): 235-240), texto visualizado na data de 8-12-2014 no sítio http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/babel/textos/hegel-quem-pensa-abstratamente.pdf.
[5] No original, aparece a expressão “ungeheure Härte”, que a tradução original preferiu “punição monstruosa”. Talvez “tremenda dureza” ou “incrível severidade” traduza melhor o sentido. Confira-se em G. W. F. Hegel. Quem pensa abstratamente?, (Síntese Nova Fase: V. 22 N. 69 (1995): 235-240), texto visualizado na data de 8-12-2014 no sítio http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/babel/textos/hegel-quem-pensa-abstratamente.pdf.
Por Néviton Guedes
Fonte: conjur.com.br
Dentre as muitas frases que imortalizou, esse grande pensador brasileiro, Nelson Rodrigues, talvez um de seus poucos verdadeiros filósofos, deixou em todos gravados essa indiscutível verdade: “toda unanimidade é burra” (quando não pelo conteúdo, pela forma como é alcançada). Ideia tanto mais verdadeira quanto desconsiderada, pois, como se sabe, todos adoramos escalar um ideia pronta. A pesquisa jurídica no Brasil não é diferente.
Boa parte das teorias jurídicas brasileiras, sem que isso implique qualquer novidade, assenta-se em conjecturas ou em generalizações de pesquisas sociais absolutamente desprovidas de comprovação. São verdades repetidas sem que ninguém as tenha submetido à comprovação.
Todos nós somos confrontados diariamente com hipóteses elevadas à condição de notoriedades evidentes por si mesmas. O cidadão é permanentemente testado em sua paciência e credulidade com hipóteses veiculadas de forma grandiloquente por especialistas que generalizam experiências isoladas, que, na maior parte das vezes, representam pesquisas que sequer foram desenvolvidas para nossa realidade. É esse o caso dos seguintes exemplos: “cadeia não reduz a criminalidade”, divulgada com a mesma solenidade com que se divulga o seu exato oposto: “a maior causa da criminalidade em nossas ruas é a falta de cadeia para os criminosos”. Tem ainda uma versão mais requintada, que afirma superar ambas as contradições: “não é o tempo de encarceramento, mas a certeza de punição que de fato reduz a impunidade”. Afinal de contas, onde está a verdade em tudo isso? A audiência fica compreensivelmente perplexa com discrepâncias tão evidentes e que, não obstante, são defendidas com o mesmo vigor por intelectuais igualmente qualificados.
O impressionante nessas verdades absolutas e autoevidentes não é apenas a sua imanente contradição, já que umas, como se pode ver, afirmam precisamente o contrário das outras. Também não está no fato de que intelectuais igualmente qualificados as profiram com a mesma confiança na sua indiscutível excelência, não obstante — repita-se — essencialmente antagônicas. O mais impressionante, como se disse, talvez esteja no fato de que são generalizações sem que jamais a tenhamos testado seriamente nas realidades a que se destinam (país, estado, cidade).
Além disso, quem fizer uma rápida pesquisa em qualquer tema de fato social importante (homicídio, latrocínio, furto, aborto e pedofilia), mesmo em orgãos do governo, navegará em águas absolutamente turvas, com números a sustentar qualquer conclusão. Na ausência de pesquisas convincentes, pergunta-se: a mesma decisão tomada para a União terá o mesmo efeito num estado ou numa cidade? Decisões abstratas aparentemente aconselháveis para realidade como a de São Paulo, Santa Catarina e Paraná terão a mesma eficácia em Rondônia, Roraima ou Amapá?
Nada obstante, leis e decisões judiciais são cotidianamente adotadas sem que jamais tenham sido acompanhadas de pesquisas que possam comprovar os dados que suportaram suas premissas e generalizações.
Talvez isso explique porque, em matéria de direito, muitos prefiram sustentar suas posições em pesquisas sociais promovidas em realidades (econômica, história, social e politica) absolutamente diversas da brasileira. Em outras palavras, é como se dissessem: lá pelo menos as pesquisas são sérias. Isso me faz lembrar uma antiga piada contada por um querido professor de filosofia do direito e de criminologia: um vizinho encontra o outro completamente bêbado procurando a chave de casa perto do poste de luz. Depois de ajudá-lo a procurar por mais de meia hora, finalmente lhe pergunta se tinha certeza de ter perdido a chave naquele lugar. Ao que outro responde: — “não, mas aqui pelo menos tem luz”.
Karl Popper, na sua excepcional e mais prestigiada obra, “A lógica da pesquisa científica”, recusa a possibilidade de extrair enunciados universais, tais como teorias ou hipóteses, de enunciados particulares, singulares e concretos[1]. No dizer de Popper, do ponto de vista lógico, independentemente de quantos casos possamos observar, jamais poderemos retirar dessa observação uma conclusão universal: “não importa quanto cisnes brancos possamos observar, isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos”[2].
Para Popper, uma das mais graves questões do conhecimento consiste precisamente em saber os limites das inferências indutivas, ou seja, um dos mais importantes problemas da pesquisa científica está em saber em que medida as conclusões que retiramos das nossas observações e pesquisas podem ser generalizadas em hipóteses e teorias. Não é sem razão, pois, que Popper transformou esse problema, o problema da indução, na preocupação capital daquela que é sem dúvida uma das principais obras de teoria do conhecimento de nossos tempos (a sua “A lógica da pesquisa científica”).
Popper descreve o problema da seguinte forma: “O problema da indução também pode ser apresentado como a indagação acerca da validade ou verdade de enunciados universais que encontram base na experiência, tais como a hipótese e os sistemas teóricos das ciências empíricas”[3].
Em resumo, o problema de Popper é também o de saber o que é que nós, honestamente, do ponto de vista intelectual, podemos conhecer e concluir a partir da experiência sensível. No caso da pesquisa em direito no Brasil, o problema seria ainda mais grave, pois qual seria a consistência de conclusões e hipóteses que têm como base premissas não comprovadas, ou pelo menos não comprovadas em nossa própria experiência social?
Tem algum significado para o Brasil, por exemplo, a afirmação de que a pena morte reduziu, ou não, a criminalidade em determinada cidade norte-americana? Para Popper uma tal constatação provavelmente não teria muito significado nem mesmo para os Estados Unidos, já que a sua generalização só poderia ser concretizada ao custo da desconsideração de circunstâncias específicas (histórias, geográficas, econômicas, educacionais, culturais entre outros) de outras experiências e realidades.
Hegel, num maravilhoso pequeno texto (“Quem pensa abstratamente?”[4]), afirmava que as pessoas perspicazes dificilmente se deixavam enganar com “generalizações abstratas”, isto é, quem quer enxergar a verdade não se deixa iludir pela forma parcial daqueles que pensam por puras “abstrações”. Por essência, para “abstrair”, deve-se “generalizar”, isto é, deve desconsiderar as particularidades de cada situação concreta. Afinal de contas, pensar abstratamente nada mais é, temos que concordar com Hegel, do que desconsiderar particularidades.
(Precisamente para escapar ao perigo da arbitrariedade de suas próprias abstrações, que são sempre generalizações de aspectos parciais, é que o magistrado tem a obrigação de se submeter à abstração da lei, não podendo, a cada decisão sua, reinventar, ou reinaugurar um momento de abstração, onde possa impor, à revelia da abstração do legislador, a sua própria abstração).
Por sua vez, quem almeja compreender o fenômeno da criminalidade, por exemplo, não pode proceder a generalizações de aspectos particulares, muito menos deixar-se envolver pelas paixões que normalmente nos iludem quanto aos fatos sociais. Se o legislador tentar resolver o problema da criminalidade apenas com o “remédio” da punição terá o mesmo significativo efeito de quem, em sentido totalmente oposto, menospreza o caráter preventivo, concreto e, por que não?, simbólico, que o direito penal revela como orientação de sentido para as condutas humanas. Generaliza e erra tanto quem menospreza a eficácia do Direito Penal quanto aquele que o eleva à única solução para o problema da criminalidade.
O crime, evidentemente, não é um problema exclusivo do Direito Penal, mas também não pode desconsiderá-lo. O fenômeno do crescimento das taxas de homicídio em nossa sociedade, por exemplo, evidentemente, não pode ser explicado apenas como consequência de algum espírito degenerado de indivíduos cuja natureza nasce e é essencialmente criminosa. Fosse esse o caso, e a única solução seria mesmo o seu enclausuramento e, com isso, a sua exclusão do convívio social. Se indivíduos nascem mesmo predestinados ao crime, nada há que se fazer a não ser suportá-los ou excluí-los definitivamente da sociedade. Educação, família, economia e inclusão social nada têm o que dizer para o que é essencialmente mal. Obviamente, a simples disposição do problema já revela a parcialidade e inadequação de uma generalização assim deduzida. Também não explica como sociedades diminuem ou veem aumentar as suas taxas de criminalidade.
De outro lado, hoje é possível dizer que tampouco a criminalidade é um fenômeno que se reconduza apenas a aspectos econômicos e sociais, como muitos acreditavam. Países extremamente pobres convivem com taxas de criminalidade expressivamente menores que países de economia estável. E para não ir muito longe, não obstante o Brasil experimente nos últimos anos uma taxa considerável de inclusão social, no entanto, para a surpresa de muitos, ao invés de um decréscimo nos índices de criminalidade, assistimos assustados a uma desconcertante elevação de quase todos os indicadores de infrações criminais.
Muito provavelmente, como sustentam vozes mais autorizadas, o crime seja mesmo um fenômeno de múltiplas causa, não se podendo resumir uma resposta eficaz às suas origens meramente às qualidades ou deficiências do aparelho policial-repressivo. Parodiando alguém, sem desmerecer todos os agentes da repressão estatal à criminalidade, o crime é fenômeno complexo demais para ficar a cargo apenas da polícia.
Por coincidência, no mesmo belo texto acima referido, Hegel recusava enxergar no criminoso uma realidade social de uma única causa ou aspecto exclusivo (cito):
Um assassino é conduzido ao local de execução. Para o povo em geral trata-se somente de um criminoso e nada mais. Algumas damas comentam talvez que ele é um homem forte, belo e interessante. O povo reage com repulsa: ‘o que? um assassino belo?’ ‘Como se pode pensar tão equivocadamente a ponto de chamar um assassino de belo?’ ‘vocês não são melhores do que ele!’ O padre, que conhece bem a razão das coisas e os corações, acrescenta talvez, que isto é um sinal da corrupção dos costumes que permeia as classes superiores. Uma pessoa que realmente conheça o ser humano (Menschkenner) traça o caminho de formação do criminoso; ele encontrará na história do criminoso uma educação deficiente; péssimas relações familiares entre seu pai e sua mãe; alguma punição monstruosa (ou ‘incrível serveridade’)[5] após um leve delito, que deixa esse homem amargurado com a ordem civil; uma primeira reação dessa ordem contra ele, excluindo-o da sociedade e possibilitando-lhe a partir daí a sobrevivência somente através do crime. Provavelmente existem pessoas que ao ouvirem tais coisas dirão: este quer isentar o criminoso de sua culpa! Eu me lembro bem ter ouvido, quando era jovem, um prefeito reclamando que os escritores estavam passando dos limites, pois procuravam destruir totalmente o cristianismo e a honradez. Segundo o prefeito, um deles teria escrito uma apologia do suicídio; horrível, horrível demais! Algumas perguntas mais e descobriu-se que se tratava dos Sofrimentos de Werther (do Goethe). Pensar abstratamente significa isto: ver no assassino somente o fato abstrato que ele é um assassino e através desta simples qualidade anular toda a essência humana ainda remanescente nele.Em resumo, tanto em Popper como na bela passagem de Hegel, o que encontramos é a recusa a aceitar que possamos medir o mundo, ou qualquer fenômeno social, a partir das generalização de nossas experiências particulares.
Na verdade, esse espetacular pensador de nossos tempos, Karl Popper, fez dessa uma de suas principais batalhas: a rejeição da possibilidade aceitarmos verdades universais a partir de experiências indutivas. Por isso, irá opor-se à ideia de um princípio da indução, insistentemente defendido por Reichenbach, que acreditava que a verdade das ciências depende da aceitação da legitimidade do raciocínio indutivo. Contrariamente, Popper dirá que, na melhor das hipóteses, o método indutivo é supérfluo. Que todos os corvos que eu tenha encontrado sejam pretos apenas prova isso, ou seja, que eu só encontrei corvos pretos, e não que não possam existir corvos de outra cor.
Além disso, abstrações genéricas trazem geralmente outro vício, para Popper inaceitável: o fato de não se predisporem a refutações. Para Popper, como se sabe, cada teoria ou hipótese apenas se sustenta cientificamente enquanto seja possível de ser refutada/confirmada. Hipóteses, afirmações ou teorias que, por sua conformação, não sejam permanentemente passíveis de falseabilidade (confirmadas/refutadas) não têm legitimidade científica.
Isso também explicaria a desconfiança de Popper quanto à possibilidade de a Filosofia colocar alguma problema genuíno: como acreditar em teorias que, precisamente como explicação de tudo, não se permitem verificar. A não ser que façamos como um espécie de pensamento analítica, que, depois de ser convencido de suas limitações, pretendeu reduzir a filosofia à lógica formal.
Por fim, tudo isso, obviamente, não significa a completa inutilidade de pesquisas comparadas, já que, desde que submetidas ao confronto permanente de experiências com a realidade para onde se queiram transportar, tem evidentemente a legitimidade do argumento de reforço.
[1] Karl Popper. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2ª ed., 2013, p. 27.
[2] Karl Popper. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2ª ed., 2013, p. 27.
[3] Karl Popper. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2ª ed., 2013, p. 27.
[4] G. W. F. Hegel. Quem pensa abstratamente?, (Síntese Nova Fase: V. 22 N. 69 (1995): 235-240), texto visualizado na data de 8-12-2014 no sítio http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/babel/textos/hegel-quem-pensa-abstratamente.pdf.
[5] No original, aparece a expressão “ungeheure Härte”, que a tradução original preferiu “punição monstruosa”. Talvez “tremenda dureza” ou “incrível severidade” traduza melhor o sentido. Confira-se em G. W. F. Hegel. Quem pensa abstratamente?, (Síntese Nova Fase: V. 22 N. 69 (1995): 235-240), texto visualizado na data de 8-12-2014 no sítio http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/babel/textos/hegel-quem-pensa-abstratamente.pdf.
Por Néviton Guedes
Fonte: conjur.com.br