Momento é propício para uma reforma profunda na tributação indireta

http://goo.gl/wI6spE | Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no NEF/FGV Direito SP. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Prática recorrente há pelo menos quatro décadas, a concessão de benefícios fiscais unilaterais relativos ao ICMS por parte dos Estados gera distorções socioeconômicas relevantes, de modo que, já há algum tempo, deixou de ser uma questão eminentemente tributária. Adotada unanimemente pelos Estados, essa prática é viabilizada, essencialmente, pelo problemático desenho de um imposto sobre consumo pretensamente não-cumulativo, e cuja competência é conferida de forma descentralizada.

Não fosse essa prática, a mecânica do ICMS, ainda que continuasse a ser um imposto estadual, funcionaria muito bem: em uma operação interestadual, o Estado de destino da mercadoria vendida permitindo a tomada de crédito do imposto pago ao Estado de origem, tributaria somente o valor agregado em seu território, como idealmente deveria ser.

Exatamente para não frustrar essa lógica e, consequentemente, onerar-se o Estado de destino com créditos de ICMS não recolhidos ao Estado de origem é que a concessão de benefícios fiscais deve ser acordada unanimemente. Do contrário, viola-se o pacto federativo, subjacente ao sistema de compensação de créditos e débitos do ICMS em operações interestaduais, deflagrando-se o que se convencionou chamar “guerra fiscal”.

Se, de um lado, é a manipulação do tributo que gera as anomalias, é fato incontroverso que as consequências extrapolam as questões arrecadatórias, gerando impacto no desenvolvimento e na economia regionais, na criação de empregos e essencialmente, na política de atração de investimentos para longe dos centros de consumo.

Como sói acontecer em nosso país em razão da fragmentação do Poder Executivo e da costumeira inércia do Poder Legislativo, a “solução” deste problema fica relegada ao Poder Judiciário.

O Superior Tribunal de Justiça chegou a ser posicionar de forma pragmática, reconhecendo, a validade da guerra fiscal como meio de desenvolvimento dos Estados ante a uma realidade econômica e social desproporcional entre as regiões brasileiras.

No Supremo Tribunal Federal, a questão é tratada de maneira diametralmente oposta. Chegou-se, inclusive, a ponderar solução impactante pontual para o problema com a Proposta de Súmula Vinculante 69, cujo enunciado, em linha com a jurisprudência do Tribunal, estabelece a necessidade de que benefícios fiscais de ICMS sejam aprovados por todos os Estados, sob pena de afronta à Constituição.

Ocorre, porém, que os benefícios fiscais unilaterais são figuras frequentes no ordenamento já há muito tempo e as manifestações contrárias dos tribunais jamais tiveram o condão de eliminá-los ou, ao menos, impedir, na prática, a sua aplicação.

Nesse contexto, qualquer medida imediatista de eliminar tais benefícios terá de enfrentar as questões econômicas, políticas e sociais adjacentes, o que, por certo, é algo de difícil execução e que requer mandatória coordenação dos Poderes Executivo e Legislativo.

Ante a esse impasse, a agenda de “soluções” retornou ao plano normativo, em que alguma evolução foi constatada com a edição da Resolução 13, do Senado Federal, aprovada em 25 de abril de 2012. Esta medida mitigou a prática ostensiva da chamada “guerra dos portos”, espécie do gênero “guerra fiscal”, na qual o foco dos benefícios residia nas importações de mercadorias e nas operações interestaduais subsequentes.

Depois disso, os Estados aprovaram o Convênio 70, de 29 de julho de 2014, por meio do qual celebraram verdadeiro protocolo de intenções para o fim da guerra fiscal, prometendo remissão e anistia de créditos tributários oriundos da disputa entre os Estados e a convalidação de benefícios unilateralmente concedidos. Essas intenções, no entanto, por determinação do próprio convênio, somente se revelariam factíveis após intensa movimentação do Congresso Nacional para aprovação de medidas de impacto, como a redução gradual das alíquotas do ICMS nas operações interestaduais e a aprovação de Emenda Constitucional que promovesse a repartição adequada do imposto entre Estados de origem e destino nas operações interestaduais.

Sob muita pressão política e a toque de caixa, o Senado Federal aprovou, no início do mês de abril, o PLS 130/2014, que convalida os benefícios concedidos unilateralmente e estabelece remissão dos débitos deles decorrentes. A medida, que ainda pende de aprovação da Câmara dos Deputados, estabelece, também, o fim da necessidade da unanimidade entre os Estados para aprovação de Convênios.

Ainda mais recentemente, em 16 de abril de 2015, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional 87, que veio a tratar da repartição do ICMS entre os Estados de origem e destino das mercadorias nas operações interestaduais.

Assim, mesmo que tardiamente, o protagonismo do Poder Legislativo para por fim à guerra fiscal é, hoje, inegável.

Por outro lado, a forma com que o Legislativo tem lidado com a questão é bastante questionável.  Além das incertezas acerca da adequação jurídica e da efetividade das medidas que vêm sendo tomadas, já há muito se questiona a obsolescência do modelo de tributação pelo ICMS tal como o conhecemos.

Mesmo que reúna características da tributação indireta moderna, tais como a sistemática não-cumulativa, o ICMS atual contempla particularidades que o tornam complexo, ultrapassado e excessivamente oneroso para segmentos basilares da economia que sequer deveriam sofrer impacto tributário.

O emaranhado de normas editadas por 27 estados, a utilização demasiada e indevida dos regimes de substituição tributária, a “maquiagem” de alíquotas mediante a incidência do imposto sobre sua própria base, a adoção do crédito físico em detrimento do crédito financeiro, a oneração dos investimentos e bens de capital e a falsa desoneração das exportações com a geração dos famigerados créditos acumulados são elementos que evidenciam impropriedades para um sistema que deveria ser essencialmente simples.

O momento requer — e é propício — para a aprovação de uma reforma mais profunda na tributação indireta brasileira. Algo que, a rigor, simplifique, modernize e aproxime o que temos de sistemas tributários bem sucedidos, como o que instituiu o IVA Europeu: tributação indireta unificada e coordenada pela União; arrecadação concentrada no destino; alíquota efetiva transparente — ainda que mais elevada; adoção plena do crédito financeiro para não-cumulatividade; e, finalmente, desoneração real de investimentos, bens de capital e exportações.

Não se pode garantir que esse modelo elimine por completo as disputas entre os Estados, sepultando de vez a guerra fiscal. Ele tende, entretanto, a mitigar os efeitos dessa mazela que em muito compromete um sistema obsoleto e deveras remendado. Por melhores que sejam as intenções; por mais contundentes que sejam as mudanças.

Por Vanessa Rahal Canado e Hélio Barthem Neto
Fonte: conjur.com.br
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