Detento recebe permissão de juíza para estudar e se forma em Direito na Grande Florianópolis

http://goo.gl/vpFVi1 | O detento Carlos*, 29, era um jovem de Florianópolis que sonhava bastante nos idos de 2012. Com 24 anos, estava prestes a se formar em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) — só faltava cursar uma disciplina optativa e, finalmente, colocar no papel a ideia que tinha em mente para a monografia —, estagiava na Vara Criminal do Estreito, e visualizava uma carreira promissora como advogado criminalista. Tinha uma dezena de amigos. Também era muito próximo da família, principalmente do avô, a quem tinha como pai.

Mas na manhã do dia 11 de fevereiro daquele ano ele foi desarmado. Tudo aconteceu rápido: a polícia bateu em sua casa em Florianópolis e, ao fim do dia, já estava sendo levado para a Penitenciária de São Pedro de Alcântara, na Grande Florianópolis.

— Foi um baque para todo mundo, né? Foi chocante para o juiz com quem eu trabalhava. A minha família nem imaginava tudo isso que vinha acontecendo.

Carlos foi pego pela Operação Voyages, que envolveu Polícia Federal e Interpol em uma das maiores apreensões de drogas sintéticas em território nacional. Onze pessoas foram presas por tráfico internacional de drogas no esquema que levava cocaína para a Europa e retornava ao Brasil com êxtase e LSD. Ele foi condenado a 10 anos, 10 meses e 20 dias em regime fechado. O processo segue na Justiça em recurso.

— Foi um rapaz que eu conheci na faculdade. Ele viajou para a Holanda e eles [polícia] me colocaram como se eu fosse braço direito dele no Brasil, por responder pelas contas bancárias e patrimônio. Não fui preso com droga, com dinheiro, com nada. Mas tinham alguns cartões de banco dele comigo, da esposa dele também. Nisso tudo aí eu fui parar lá na penitenciária e fiquei quatro anos lá — diz, com pesar.

Evolução

Nesse período, Carlos abandonou o curso de Direito, deixou de ver amigos e familiares, e perdeu seu avô. Também se casou, teve uma filha, fez dois cursos técnicos e trabalhou no presídio. Mas o grande trunfo de sua história enquanto apenado foi voltar à universidade: frequentou aulas às quartas e sextas-feiras, escreveu parte da monografia à mão na cadeia, tirou nota 9,75 no trabalho final e começou a trabalhar em um escritório de advocacia.

— Todo mundo tem o direito de errar. O mais importante é dar a volta por cima. E é difícil, porque a gente perde a dignidade lá dentro. Somos jogados em um liquidificador. E eles batem. Somos a massa do sistema prisional. É difícil falar em ressocialização — conta.

Foi exatamente essa postura que motivou o advogado Flávio Andrey da Silva, de São José, a convidar Carlos para trabalhar enquanto ainda estava no regime semiaberto.

— Se ele errou, foi lá atrás. Ele tem o direito à ressocialização e não somos nós quem devemos julgar. Pelo contrário, temos de dar oportunidade. Ainda mais a uma pessoa esforçada e de boa índole como ele.

A volta

Carlos fala sobre o período em que permaneceu nos regimes fechado e semiaberto, em São Pedro de Alcântara e na Colônia Penal Agrícola, com a serenidade de não parecer ter duvidado de que voltaria a ter uma vida normal depois de cumprir a pena. Mas também fala rápido para chegar logo à parte da história pela qual mais se orgulha.

— Depois de seis meses avaliando o meu comportamento, comecei a trabalhar numa indústria que tem lá dentro. E ganhei um dinheirinho pela minha produção, que depositava para a minha mãe. Quando consegui ir para o semiaberto, tinha o dinheiro para pagar a faculdade — faz as contas o reeducando.

Quatro anos depois, ele teve a progressão do regime no mesmo despacho que autorizava a volta aos estudos. Foi o único detento a conseguir o feito. O documento tem a assinatura da juíza da Vara Regional de Execuções Penais do Fórum de São José, Alexandra Lorenzi da Silva, que leu a carta enviada por Carlos em janeiro pedindo reingresso na faculdade. O papel está anexado no processo até hoje.

— Eu procuro olhar o que eles [detentos] estão pedindo com bastante responsabilidade para ver o que é possível. Ele foi bem insistente e provou que poderia dar conta de sair e voltar. Eu só dei o caminho. A gente vê que quando o apenado cometeu um erro, ele está pagando para a sociedade, mas se ele tem vontade, consegue trilhar um novo caminho — fala a juíza.

O reeducando lembra com carinho do início dessa trajetória, em março deste ano:

— Foi numa quarta-feira de março. A advogada foi lá e disse: tu ganhasse o direito de ir para o semiaberto e poder estudar. Naquele momento eu falei: não volto mais para a cela. E eu disse para o agente [prisional] que eu não voltaria mais, que eu já iria para Palhoça [na Colônia Penal Agrícola], que era lá que eu poderia sair todos os dias para estudar. Ele duvidou, foi atrás e disse que eu tinha razão. No fim do dia eu estava indo em uma viatura sozinho para a outra unidade e no dia seguinte eu voltava para a universidade. Saí com as pernas tremendo — lembra, emocionado.



A juíza Alexandra Lorenzi da Silva foi quem permitiu que o reeducando voltasse a estudar, produzisse o TCC nas dependências da Colônia Penal e começasse a estagiar em escritório de advocacia. Foto: Diorgenes Pandini/Agência RBS

Estudou o próprio caso

Não fossem os quatro anos no sistema prisional, Carlos provavelmente não teria decidido pelo objeto de pesquisa de sua monografia. A aprovação na banca de defesa do trabalho de conclusão de curso veio da seguinte abordagem: A (in)constitucionalidade na definição legal de traficante e usuário pela falta de critério objetivo. Quem incentivou o reeducando a mergulhar no debate da descriminalização das drogas foi o major da Polícia Militar e professor do curso de Direito na Unisul, Paulo Calgaro de Carvalho.

— Em nenhum momento perguntei o motivo de ele estar lá [cadeia] para evitar constrangimento. Coube a nós uma relação acadêmica. E foi muito proveitosa, principalmente pelo debate atual da brecha na legislação nas definições de traficante e usuário. Ele é muito esforçado. Tenho certeza que será um ótimo profissional, porque tem o lado humano, de quem já passou por isso — fala o professor.

Pesquisar os conceitos de traficante e usuário de drogas nas dependências da Colônia Penal Agrícola foi somente mais um desafio para Carlos.

— Eu precisava de computador, de biblioteca. Então pedi autorização para a juíza, mas a resposta só veio depois de mais de um mês. Aí eu comecei a escrever à mão. Deu até calo nos dedos.

Base familiar

Passado o período de escrita do trabalho, engana-se quem pensa que a nota quase máxima foi dita pela banca examinadora seguida de aplausos da família.

— Pedi para ninguém ir. Com uma vida normal a pessoa já fica nervosa. Então tu imagina na minha condição — reflete.

Esse foi praticamente o único momento em que Carlos esteve distante de familiares, a quem credita a conquista:

— Muitos deles [presos] não têm nem Ensino Fundamental, muito menos uma família que possa intermediar isso tudo, sabe? Porque eu, por exemplo, pedi para a minha mãe entrar em contato com a coordenadora do curso de Direito da Unisul, mandei uma carta para ela também, outra para a doutora Alexandra, e aí falei que estaria indo para o regime semiaberto em dois meses e que queria estudar, concluir, realizar esse sonho. E eu consegui.

Agora ele aguarda em prisão domiciliar o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que acontece neste domingo, 29. Deve ter a liberdade condicional em 2017. Não sem antes colar grau no mês que vem e se tornar Bacharel em Ciências Jurídicas pela Unisul.



Apenado quer seguir na carreira de advogado criminalista. Foto: Diorgenes Pandini/Agência RBS

*O nome original foi alterado a pedido do entrevistado, para preservar a identidade e barrar o preconceito.

Fonte: dc.clicrbs.com.br
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