http://goo.gl/1BeiRU | Em virtude das recentes declarações do presidente francês François Hollande atribuindo o status de "atos de guerra" aos ataques terroristas deflagrados pelo autoproclamado Estado Islâmico é necessário refletir sobre o que significa, nos dias de hoje, uma guerra, bem como de que maneira a questão pode ser analisada perante o Direito Internacional. A realidade apresenta desafios conceituais consideráveis, que apontam para uma inflexão necessária sem a qual poderíamos nos comprometer com uma tática dolorosa e, pior, ineficaz. A dosagem é o que muitas vezes separa o medicamento do veneno.
A chamada ordem internacional surgiu, nos moldes atuais, como desfecho das guerras religiosas que opuseram católicos e protestantes, selada em conferência que teve lugar nas cidades alemãs de Osnabruque e Münster, conhecida como o Congresso de Paz de Vestfália. As fricções religiosas e o receio do conflito sanguinário estão na origem do sistema idealizado para controlar lideranças regionais sob as bandeiras de Estados nacionais reunidos em torno de interesses comuns. No interior dos reinos existentes os soberanos deveriam exercer o poder e estabelecer o Direito não só para a segurança dos súditos, mas também para a manutenção da paz entre os vizinhos.
O plano não foi perfeito, conflitos continuaram a eclodir. Mas surgiu dessa obrigação de pacificação territorial do Estado o monopólio do uso da força, de modo a garantir que menos governos viessem a comprometer a convivência de todos em favor de interesses segmentados e beligerantes. Os Estados ainda podiam usar a força no plano externo, mas todo aparato e burocracia da máquina da guerra garantiu que se tornasse algo incomum e extremamente custoso. Com o passar do tempo as nações descobriram que além de ferir o corpo de seus soldados, a guerra atingia profundamente os cofres governamentais, e passaram a desenvolver uma série de instrumentos voltados para restringir o uso indiscriminado da força no âmbito internacional.
Com a Carta das Nações Unidas inaugurou-se um novo tempo, de, teoricamente, proibição total da guerra no Direito Internacional. A Carta de São Francisco continha exceções, principalmente três. A primeira era o caso de uso da força armada mediante autorização do Conselho de Segurança. Trata-se da regra, de como ações coativas seriam realizadas. A segunda exceção é a da legítima defesa, que salvaguarda o direito de os Estados se protegerem diante de ofensiva externa. É um postulado jurídico garantido em todos os regimes jurídicos, mas que, diante da vedação do uso genérico da força, terminou por se tornar o modus operandi dos Estados belicosos. Atacar é proibido, mas defender-se não. A grande maioria dos conflitos internacionais foi justificada, no Direito internacional, mediante leituras cinzentas desta exceção. Finalmente havia a exceção de uso da força contra os antigos inimigos da Segunda Guerra Mundial, possibilidade hoje anacrônica e jamais empregada.
Em comum entre essas três formas de uso da força há o amplo reconhecimento de que não se tratam de atos de guerra. Mesmo que usem os semelhantes métodos e capacidade bélica, enquanto realizados sob o amparo da ONU seriam atos de manutenção da segurança internacional, atribuindo a pecha de guerra aos chamados rogue states, inimigos da paz internacional e candidatos constantes ao grupo do eixo do mal, que persiste na retórica internacionalista, ainda que em variadas composições.
Para além disso, a profusão de democracias, e, especialmente, o aprofundamento da globalização, constituiu um ambiente que desencoraja a guerra entre Estados. A desintegração da União Soviética foi o último prego no caixão do mundo bipolarizado, enterrando a dualidade belicosa em prol de uma pax mercatoria mais preocupada com a manutenção de fluxos internacionais de produção que com o nacionalismo representado pelas bandeiras nacionais. O conflito entre a Federação russa e Geórgia, que marcou as Olimpíadas de 2008, constitui precisamente a exceção que confirma a regra. Estados não se digladiam mais nos campos militares, preferindo solucionar as disputas em cortes de arbitragem ou organizações internacionais como a OMC.
Se persiste uma impressão de insegurança nas relações internacionais ela não se deve, pelo menos diretamente, aos Estados. Ao contrário: atores não-estatais surgiram no vácuo de países falidos com suas próprias pautas, armas e misteriosos financiadores. Grupos separatistas, fundamentalistas religiosos e narcotraficantes trataram de aproveitar a fragilidade de muitos governos, impondo suas ideias, muitas vezes pelo recurso ao terror.
Quando François Hollande denomina os atentados que abalaram Paris como "atos de guerra" está usando um nome antigo para designar um fenômeno novo. O chamado Direito da Guerra baseia-se em procedimentos quase cerimoniais, com declarações de abertura e encerramento de hostilidades, e diversas manifestações de uma espécie de violência cordial, que é consubstanciada pelo chamado Direito Humanitário, que regula os modos como os conflitos podem ser travados segundo o Direito, quase como num duelo vitoriano. Mas o inimigo delineado pela República Francesa não é um Estado - o país anunciou inclusive que somente passaria a referir-se ao grupo como Daesh, seu nome árabe, em vez da já disseminada alcunha de Estado Islâmico. As regras do Direito da Guerra fazem pouco sentido num contexto em que a brutalidade do adversário interdita qualquer perspectiva de solução diplomática. Concomitantemente, o emprego de drones e outras armas de destruição remota não encontra guarida no Direito humanitário, na maioria redigido tendo em mente conflitos físicos imediatos, distantes da tecnologia atual que separa quem ordena e quem sofre o ataque por milhares de quilômetros.
Quando a França reconhece um ato de guerra cometido por um grupo não-estatal, mobilizando não só seu aparato militar como o de toda a OTAN, subverte a lógica de Vestfália, de horizontalidade nas relações internacionais. A questão que surge é se essa nova visão é sustentável a longo prazo, sem arcabouço jurídico que esclareça a situação desses combatentes perante o Direito Internacional, bem como diante dos órgãos de segurança internacionais. Realizar uma campanha militar de larga escala pode resultar no acirramento das tensões na região, alimentando o ódio sectário que preenche continuamente as fileiras do extremismo religioso com pessoas revoltadas com o ambiente de violência contínua a que são submetidas, alvo de bombardeios remotos e sanções econômicas.
Ao afirmar o compromisso de extinguir o Estado Islâmico a França precisa atentar para a proporcionalidade e responsabilidade na busca por justiça, que não pode, em nenhum momento, ser suplantada pela sede de vingança. Caso cedam à tentação de agir como uma velha nação guerreira os franceses perdem valiosa oportunidade de estimular novas formas de governança e segurança regionais, correm o risco de semear mais uma geração de vítimas da violência sectária, e podem abdicar os ideais de liberdade e abraçar a ideologia do adversário momentâneo, comprometido tão somente com a irracionalidade e a violação dos direitos humanos.
Por Alberto do Amaral Jr. e Wagner Artur de Oliveira Cabral
Fonte: Conjur
A chamada ordem internacional surgiu, nos moldes atuais, como desfecho das guerras religiosas que opuseram católicos e protestantes, selada em conferência que teve lugar nas cidades alemãs de Osnabruque e Münster, conhecida como o Congresso de Paz de Vestfália. As fricções religiosas e o receio do conflito sanguinário estão na origem do sistema idealizado para controlar lideranças regionais sob as bandeiras de Estados nacionais reunidos em torno de interesses comuns. No interior dos reinos existentes os soberanos deveriam exercer o poder e estabelecer o Direito não só para a segurança dos súditos, mas também para a manutenção da paz entre os vizinhos.
O plano não foi perfeito, conflitos continuaram a eclodir. Mas surgiu dessa obrigação de pacificação territorial do Estado o monopólio do uso da força, de modo a garantir que menos governos viessem a comprometer a convivência de todos em favor de interesses segmentados e beligerantes. Os Estados ainda podiam usar a força no plano externo, mas todo aparato e burocracia da máquina da guerra garantiu que se tornasse algo incomum e extremamente custoso. Com o passar do tempo as nações descobriram que além de ferir o corpo de seus soldados, a guerra atingia profundamente os cofres governamentais, e passaram a desenvolver uma série de instrumentos voltados para restringir o uso indiscriminado da força no âmbito internacional.
Com a Carta das Nações Unidas inaugurou-se um novo tempo, de, teoricamente, proibição total da guerra no Direito Internacional. A Carta de São Francisco continha exceções, principalmente três. A primeira era o caso de uso da força armada mediante autorização do Conselho de Segurança. Trata-se da regra, de como ações coativas seriam realizadas. A segunda exceção é a da legítima defesa, que salvaguarda o direito de os Estados se protegerem diante de ofensiva externa. É um postulado jurídico garantido em todos os regimes jurídicos, mas que, diante da vedação do uso genérico da força, terminou por se tornar o modus operandi dos Estados belicosos. Atacar é proibido, mas defender-se não. A grande maioria dos conflitos internacionais foi justificada, no Direito internacional, mediante leituras cinzentas desta exceção. Finalmente havia a exceção de uso da força contra os antigos inimigos da Segunda Guerra Mundial, possibilidade hoje anacrônica e jamais empregada.
Em comum entre essas três formas de uso da força há o amplo reconhecimento de que não se tratam de atos de guerra. Mesmo que usem os semelhantes métodos e capacidade bélica, enquanto realizados sob o amparo da ONU seriam atos de manutenção da segurança internacional, atribuindo a pecha de guerra aos chamados rogue states, inimigos da paz internacional e candidatos constantes ao grupo do eixo do mal, que persiste na retórica internacionalista, ainda que em variadas composições.
Para além disso, a profusão de democracias, e, especialmente, o aprofundamento da globalização, constituiu um ambiente que desencoraja a guerra entre Estados. A desintegração da União Soviética foi o último prego no caixão do mundo bipolarizado, enterrando a dualidade belicosa em prol de uma pax mercatoria mais preocupada com a manutenção de fluxos internacionais de produção que com o nacionalismo representado pelas bandeiras nacionais. O conflito entre a Federação russa e Geórgia, que marcou as Olimpíadas de 2008, constitui precisamente a exceção que confirma a regra. Estados não se digladiam mais nos campos militares, preferindo solucionar as disputas em cortes de arbitragem ou organizações internacionais como a OMC.
Se persiste uma impressão de insegurança nas relações internacionais ela não se deve, pelo menos diretamente, aos Estados. Ao contrário: atores não-estatais surgiram no vácuo de países falidos com suas próprias pautas, armas e misteriosos financiadores. Grupos separatistas, fundamentalistas religiosos e narcotraficantes trataram de aproveitar a fragilidade de muitos governos, impondo suas ideias, muitas vezes pelo recurso ao terror.
Quando François Hollande denomina os atentados que abalaram Paris como "atos de guerra" está usando um nome antigo para designar um fenômeno novo. O chamado Direito da Guerra baseia-se em procedimentos quase cerimoniais, com declarações de abertura e encerramento de hostilidades, e diversas manifestações de uma espécie de violência cordial, que é consubstanciada pelo chamado Direito Humanitário, que regula os modos como os conflitos podem ser travados segundo o Direito, quase como num duelo vitoriano. Mas o inimigo delineado pela República Francesa não é um Estado - o país anunciou inclusive que somente passaria a referir-se ao grupo como Daesh, seu nome árabe, em vez da já disseminada alcunha de Estado Islâmico. As regras do Direito da Guerra fazem pouco sentido num contexto em que a brutalidade do adversário interdita qualquer perspectiva de solução diplomática. Concomitantemente, o emprego de drones e outras armas de destruição remota não encontra guarida no Direito humanitário, na maioria redigido tendo em mente conflitos físicos imediatos, distantes da tecnologia atual que separa quem ordena e quem sofre o ataque por milhares de quilômetros.
Quando a França reconhece um ato de guerra cometido por um grupo não-estatal, mobilizando não só seu aparato militar como o de toda a OTAN, subverte a lógica de Vestfália, de horizontalidade nas relações internacionais. A questão que surge é se essa nova visão é sustentável a longo prazo, sem arcabouço jurídico que esclareça a situação desses combatentes perante o Direito Internacional, bem como diante dos órgãos de segurança internacionais. Realizar uma campanha militar de larga escala pode resultar no acirramento das tensões na região, alimentando o ódio sectário que preenche continuamente as fileiras do extremismo religioso com pessoas revoltadas com o ambiente de violência contínua a que são submetidas, alvo de bombardeios remotos e sanções econômicas.
Ao afirmar o compromisso de extinguir o Estado Islâmico a França precisa atentar para a proporcionalidade e responsabilidade na busca por justiça, que não pode, em nenhum momento, ser suplantada pela sede de vingança. Caso cedam à tentação de agir como uma velha nação guerreira os franceses perdem valiosa oportunidade de estimular novas formas de governança e segurança regionais, correm o risco de semear mais uma geração de vítimas da violência sectária, e podem abdicar os ideais de liberdade e abraçar a ideologia do adversário momentâneo, comprometido tão somente com a irracionalidade e a violação dos direitos humanos.
Por Alberto do Amaral Jr. e Wagner Artur de Oliveira Cabral
Fonte: Conjur