Mães querem o direito de levar seus filhos para as salas de aula em universidades

http://goo.gl/q4SiYk | Estudantes que tiveram filhos durante a faculdade reivindicam que universidades públicas e particulares reconheçam uma necessidade básica: permitir a entrada de bebês nos prédios, inclusive nas salas de aula. E cobram dos gestores outras medidas para que os direitos à educação e à amamentação sejam exercidos plenamente.

O G1 ouviu estudantes, professores e universidades. Para muitas mulheres, a falta de alternativas levou ao abandono da graduação; em outros casos, a rotinas de constrangimentos e de preconceito. Pela lei, universitárias têm direito ao chamado regime domiciliar: a partir do oitavo mês de gestação, durante três meses, podem compensar a ausência nas aulas com trabalhos feitos em casa. O que determina o início e o fim desse regime é o atestado médico apresentado pela aluna.

Os relatos ouvidos pelo G1 apontam que o prazo é curto e, caso as mulheres não queiram ou não possam trancar a universidade por um ano - como também prevê a lei-, precisam lidar com falta de vagas em creches públicas (a USP tem espaço limitado na capital, sem previsão de novas vagas), preconceito de professores e colegas ou até mesmo dificuldade para entrar nos prédios, já que regimentos internos consideram os bebês como não-alunos.



Betânia senta na escadaria da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Na visão de especialistas, documentos como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Constituição resguardam os direitos de mães e filhos, se sobrepondo a regras ocasionais criadas pelas instituições de ensino.

Veja abaixo o relato detalhado de mães, professores e especialistas no tema:

“Não dá para estudar uma ciência em casa e cuidar de um recém-nascido.”

Maira Pinheiro, estudante de direito da Universidade de São Paulo (USP), considera que a lei do regime domiciliar não atende às necessidades das mães. “Não conseguia fazer as provas no fim do semestre. Duas semanas antes, pedi para os professores substituírem as provas por trabalhos. Mas metade sequer me respondeu. Alguns disseram que eu não poderia ser tratada diferente por estar grávida”, diz.

Ela foi orientada a não pedir para cumprir a licença domiciliar. “O pessoal assinava a lista de presença para mim", conta. E comenta sobre o fato de as orientações às gestantes serem as mesmas destinadas a pessoas com doenças congênitas (de nascimento) ou adquiridas, infecções, traumatismos e condições mórbidas. "Não entendo essa lei. Para doentes, faz sentido. Para gestante, não. Não dá para estudar uma ciência em casa e cuidar de um recém-nascido. Perdi aulas porque minha filha estava doente. Não durmo. Estudo, trabalho como doula, tenho um e-commerce e sou mãe”, completa.

No caso de Maira, a tentativa de  levar a bebê para a faculdade foi bem-sucedida – foi a solução que encontrou para poder amamentá-la e não precisar se preocupar em deixar a criança em escolas ou creches tão cedo. Poder entrar com a criança nas dependências da universidade ajuda também a evitar que as mulheres tranquem o curso ou desistam dele.

Betânia, hoje com 1 ano e 4 meses, acompanha Maira nas aulas de direito. Não havia vagas na creche da USP. “A cada fase da vida dela, me adapto de uma forma diferente. Agora, ela já fica no chão. Mas por um período, assisti às aulas em pé, andando pela sala. E não fico controlando o comportamento dela, é uma criança, ajo normalmente”, diz. “Na São Francisco (faculdade de direito da USP), a recepção até que foi boa. Mas melhor ainda no curso de saúde pública, onde faço algumas matérias.”

A assessoria de imprensa da Universidade de São Paulo afirma que “não há uma orientação geral sobre o assunto. As unidades de ensino e pesquisa da universidade têm autonomia para adotar as medidas que considerar adequadas”.

Sobre a creche, a USP declara que, de fato, não foram abertas vagas em 2015 e que, no ano que vem, ainda não há informações sobre a disponibilidade de receber mais crianças. Os 400 meninos e meninas de 0 a 6 anos que já estavam matriculados continuam frequentando o local.

As creches municipais também são insuficientes. Na cidade de São Paulo, por exemplo, há 258.617 bebês de 0 a 3 anos e 11 meses atendidos atualmente - e outros 151.755 esperando por uma vaga. Os dados são referentes à situação no dia 31 de outubro de 2015, de acordo com a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.

“Me disseram que ali não era berçário. Saí do banheiro e estava cheio de seguranças na porta”

A possibilidade de entrar na faculdade com o bebê não é aceita por determinadas faculdades. Algumas alegam que normas internas impedem a circulação de não-alunos nas dependências do local.

Em outubro, a paulista Alline Gomes foi à unidade de Santo Amaro da Uninove para entregar um trabalho e assistir a uma aula importante do curso de direito. A escola de sua filha Valentina estava sem água há dias e, por isso, as aulas foram canceladas. De segunda a quarta-feira, a mãe deixou a criança de 2 anos com amigas. Na quinta, ninguém poderia ficar com a menina.


Alline Gomes relata que entrou na universidade com Valentina, mas foi suspensa por um dia.

“Estava um temporal, peguei a Valentina, a mochila dela e todas as coisas e saí naquelas condições. Se não fosse necessário, não levaria minha filha para a faculdade”, conta. Quando as duas foram passar pela catraca, de acordo com Aline, foram barradas.

“Me disseram que ali não era berçário. Entrei do mesmo jeito e disse que ia até o banheiro e depois para a coordenação. Saí do banheiro e estava cheio de seguranças na porta. Minha filha começou a chorar, era muita gente fazendo tumulto”, diz.

Alline seguiu para a sala de aula e a professora, de acordo com ela, bateu a porta, sem deixá-la entrar. Os colegas teriam rido da jovem. Depois disso, a coordenadora conversou com a mãe de Valentina e explicou que as normas da faculdade não permitiriam a entrada da bebê. “Ela só cumpriu ordens, eu entendo. Mas expliquei que era atípico. Fui suspensa por um dia”, conta a estudante.

De acordo com comunicado divulgado pela Uninove, “exige-se a identificação do menor antes de sua entrada no campus, um ambiente universitário, frequentado por adultos. Assim, por adentrar no prédio acompanhada de uma criança de apenas 2 anos de idade, os colaboradores que organizam a entrada e saída dos alunos gentilmente solicitaram à aluna que seguisse os procedimentos de identificação da menor e aguardasse a autorização pela entrada. Foi pelo fato de a aluna ter se recusado a seguir as normas do regimento interno, deixando de atender à solicitação dos colaboradores da instituição, que a coordenação do curso aplicou o regime disciplinar”.

Alline afirma que estava com o RG da filha em mãos e que foi barrada por não deixarem que a criança entrasse. “Não me recusei a me identificar, isso é desculpa deles.”

“Desisti do curso a um semestre de concluí-lo”

Outro caso semelhante ocorreu com Aline Chaves, de 25 anos, estudante de ciências biológicas da Uniesp, faculdade particular em São Paulo. Ela engravidou durante o curso e, por três meses, seguiu o regime domiciliar. Não sabia se conseguiria retomar os estudos presencialmente, porque estava com depressão e síndrome do pânico.



Alline Chaves desistiu da faculdade a um semestre de terminar. A entrada da filha dela, Heloísa, não foi permitida na universidade

Em fevereiro de 2014, foi à instituição de ensino se informar sobre sua situação. “Tentei entrar com a Heloísa, minha filha, várias vezes. Eu queria poder amamentá-la, ela não tinha nem 3 meses de vida ainda. Tentei deixá-la com meu marido, mas ela só chorava. No balcão de entrada, disseram que eu não poderia entrar. Heloísa ficou com meu marido na porta, chorando”, explica.

“Ninguém da faculdade foi agressivo comigo, mas me explicaram que o regimento interno da faculdade não permitiria a entrada da minha filha. Na época, meu marido entrava comigo para me dar apoio nas crises de pânico. Sugeri que ele ficasse com a Heloísa no corredor e eu só saísse da sala para amamentá-la ali perto. Mas não deixaram”, conta Aline.

Como solução, a jovem desistiu do curso a apenas um semestre de concluí-lo. “Se eu pudesse entrar com ela, já estaria com diploma na mão. Hoje, ela está com 2 anos. Ainda mama, mas eu conseguiria deixá-la com alguém e ir para a faculdade. Infelizmente, hoje não tenho como pagar a mensalidade mais”, diz.

A Uniesp afirma que permite a entrada de alunas e de seus filhos nas dependências da instituição, mas o acesso é restrito à praça de alimentação, secretaria, diretoria e locais para atividades administrativas.
Em nota, a universidade diz que “o corpo discente é orientado a evitar o acesso com dependentes às salas de aula, por considerar que a presença das crianças poderá comprometer o andamento normal da aula, prejudicando os demais alunos e docentes”.

“Precisou ser leite artificial mesmo. Não teve jeito”

Há 5 anos, Amanda Cristina Marques estudava enfermagem na Univag, em Várzea Grande, município próximo a Cuiabá, quando engravidou. Ao se informar sobre quais procedimentos seguir na fase final da gestação, a faculdade particular afirmou que ela poderia fazer trabalhos em casa, para repor as faltas – mas as provas deveriam ser realizadas pessoalmente.


Amanda Cristina Marques trancou seu curso na faculdade por um semestre para cuidar de Izabella.

A barriga, já grande, dificultava que Amanda pegasse três ônibus até o local de estudos. Quando Izabella completasse 10 dias de vida, a mãe da bebê precisaria comparecer à faculdade para uma das avaliações do semestre. Como solução, só encontrou uma: trancar o curso por 6 meses.

De acordo com a interpretação da advogada Ana Lucia Keunecke, da Artemis (associação que luta pelos direitos das mulheres), a exigência de que Amanda fizesse a prova antes dos três meses de licença não é correta. “Regime domiciliar é regime domiciliar. Não tem essa de precisar ir para a faculdade”, explica.

A Univag afirma que, atualmente, os trabalhos podem ser entregues por e-mail e as provas devem ser feitas presencialmente. Para as gestantes, existe a possibilidade de reagendar as avaliações para, no mínimo, 45 dias depois da data original, de acordo com comunicado da universidade.

Amanda conseguiu retomar os estudos após destrancar o curso. Sua filha tinha 4 meses. “Foi um sacrifício, deixei a Izabella com a minha irmã nesse período. Só conseguia amamentar quando chegava da aula. De resto, precisou ser leite artificial mesmo, infelizmente”, diz. De acordo com as orientações da Organização Mundial da Saúde, o aleitamento materno exclusivo deveria ocorrer até os 6 meses do bebê.

Direitos das mães e bebês

Para Maira Pinheiro, não permitir a entrada dos bebês nas universidades é discriminação de gênero. “Se exclui o bebê, exclui a mãe que está com ele. Estou trabalhando para a sociedade ao criar uma pessoa. Valorizar as mães é garantir direitos”, afirma. “O acesso à educação deveria ser central. Não dizem que educação combate a desigualdade? Mas estão praticando a desigualdade.”

A advogada Ana Lucia Keunecke esclarece que os três meses de regime domiciliar devem ser cumpridos, com direito a fazer todos os exames finais. E, depois do retorno às aulas, a mãe pode, sim, levar o bebê para a universidade.

Keunecke cita o Estatuto da Criança e do Adolescente, nos artigos que garantem o aleitamento materno até os 2 anos e proíbem que a criança seja objeto de negligência dos pais. Também menciona a Constituição. “Ela dá ampla proteção à maternidade”, explica.

A especialista afirma que o Brasil assinou tratados internacionais como a Declaração de Pequim, a Convenção do Belém do Pará e a Cedaw (Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher). Os três abordam a proteção à maternidade, os direitos das mulheres em relação à sua fertilidade e à educação. “Os tratados têm força de lei, devem ser respeitados”, explica a advogada.

Para garantir os direitos, a mulher pode procurar a Secretaria de Educação, a Secretaria de Proteção à Mulher, o Ministério Público na área de direitos humanos, ou acionar um advogado ou defensor público. Também pode denunciar para os telefones 180 (Secretaria de Políticas para as Mulheres) e 181 (disque denúncia).

Ao ser procurado pela reportagem, o Ministério da Educação relembrou as leis que garantem o regime domiciliar e afirmou que a instituição de ensino pode oferecer as condições mais favoráveis e adequadas às gestantes.

Em novembro de 2010, uma reivindicação da Secretaria de Políticas para as Mulheres foi atendida em relação às alunas pós-graduandas que tenham bolsa de estudos pela Capes e pelo CNPQ. A partir de então, aquelas que engravidarem durante o mestrado ou o doutorado passam a ter direito à licença-maternidade com pagamento da bolsa, durante quatro meses. A exigência é que o parto ocorra no período de vigência do programa de estudos.

Mães apontam soluções

Maira Pinheiro aponta o que as universidades poderiam fazer para receber melhor uma mãe estudante da graduação com seu bebê: preparo do ambiente e dos professores. “Seria basicamente colocar um cadeirão no bandejão, um trocador no banheiro masculino e outro no feminino. E os professores precisariam entender a situação e aceitarem nossos filhos”, afirma.

“O arranjo não deve ser colocar uma criança tão cedo na creche ou desistir dos estudos. A licença-maternidade deve ser maior para as estudantes também”, diz.

Aline Gomes concorda que são necessárias modificações na estrutura das universidades. “A gente quer continuar os estudos, ter uma carreira. Mas às vezes não dá para achar espaço em creche pública ou não dá para pagar escola. Algumas meninas desistem, outras passam constrangimentos quando tentam entrar com a criança”, diz.

“Se as instituições adotarem espaço para as crianças, seria um incentivo para a educação. E o aleitamento materno é fundamental, todas as faculdades devem permitir. Se a mãe tivesse alguém responsável pelo filho dela ali, só por quatro horas, já ajudaria muito. O número de mulheres no âmbito acadêmico aumentaria”, completa Aline.

Fonte: G1
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