Tratamento social de transexuais não gera desacordo moral razoável: por José Carvalho Filho

http://goo.gl/d9BpjR | Recentemente, no julgamento do Recurso Extraordinário 845.779, relativo ao tratamento social dispensado às pessoas transexuais, o ministro Luiz Fux formulou pedido de vista. Por considerar que o caso envolve desacordo moral “bastante razoável”, sua excelência ponderou que a opinião social sobre o tema deveria ser considerada.[1]

Ocorre que essa justificação gera certa perplexidade, especialmente por dois motivos: I) Não há pluralidade de opções constitucionalmente legítimas no caso sob exame, razão pela qual não se vislumbra a razoabilidade de eventual desacordo moral existente; II) a recusa judicial de proteção dos direitos fundamentais diante da vontade majoritária significa negar função elementar da jurisdição constitucional em um Estado democrático de Direito.

Desacordos morais razoáveis são constituídos pela inexistência de consenso sobre tópicos polêmicos cujas soluções antagônicas são construídas como produtos de procedimento racional. Em outros termos, são posições diversas e constitucionalmente legítimas que coexistem no seio da sociedade. Questões como reprodução assistida e interrupção voluntária da gestação bem evidenciam esses desacordos, na medida em que há valores constitucionais igualmente relevantes em conflito, que legitimariam tanto as teses favoráveis a essas intervenções como as que visam a coibir essas práticas.

Na jurisprudência, o case Griswold v. Connecticut[2], em que a Suprema Corte dos Estados Unidos analisou lei que proibia o uso de contraceptivos, é habitualmente lembrado como precedente de desacordo moral. No Brasil, alguns exemplos recentes de feitos apreciados pelo Supremo Tribunal Federal são as descriminalizações do aborto de fetos anencéfalos[3] e do porte de maconha para uso recreativo[4].

No contexto da jurisdição constitucional, Jeremy Waldron critica a intervenção judicial em tais tópicos, por considerar que a regra da maioria, em que as decisões são tomadas pelos destinatários da norma, direta ou indiretamente, é a forma mais equitativa para se enfrentar situações de desacordo.[5] Assim, tais questões deveriam ser decididas na esfera legislativa, não na judicial.

A interdição do aborto, por exemplo, efetiva a proteção do nascituro em detrimento da autodeterminação da mulher; há, portanto, dois valores constitucionais em conflito que precisam ser ponderados em debate democrático. É nessa conjuntura que Waldron reputa indevida a intervenção do Judiciário.

Esse raciocínio, contudo, não se aplica ao tratamento social dos transexuais. Isso porque a dignidade desses seres humanos é histórica e sistematicamente violada, mas não há qualquer fundamento constitucional que legitime essa prática tão nociva. Não existe direito de terceiros a recusar a identidade de gênero das pessoas, muito menos a lhes constranger a não viverem livremente em uma sociedade plural. Assim, eventual dissenso acerca do tratamento social dos transexuais não pode ser qualificado como razoável.

Invocar o conceito de desacordo moral razoável para permitir a adoção de práticas inferiorizantes em relação a um grupo social significa deturpar teorias na tentativa de legitimar uma cultura de segregação. Isso não deve ser aceito no Brasil, país onde a Constituição expressamente estipula a pluralidade como fundamento do Estado de Direito.

De mais a mais, não se pode olvidar a função contramajoritária que exerce a jurisdição constitucional, que é tão indispensável à democracia quanto as eleições. Com efeito, o processo democrático não pode ser reduzido a uma democracia eleitoral, na medida em que ele se perfaz em um Estado de Direito, em que todos os poderes constituídos estão submetidos à Constituição e devem respeitar não apenas o processo eleitoral, mas também a proteção dos direitos fundamentais[6].

A esse propósito, Tocqueville sustenta que o poder atribuído aos tribunais para declarar a inconstitucionalidade de leis é uma das barreiras mais poderosas existentes contra a tirania das assembleias políticas[7]. Por seu turno, Alexandre Bickel observa que, quando a Suprema Corte declara inconstitucional uma lei aprovada pelos atuais representantes do povo, ela exerce esse controle não em benefício da maioria prevalecente, mas contra ela.[8]

É por tudo isso que sustentar a necessidade de ouvir a opinião da sociedade, notadamente em casos de patente violação a direitos fundamentais, soa bastante exótico, pois parece apenas postergar o fim do massacre da classe social inferiorizada pela maioria.

No processo-paradigma em que o ministro Luiz Fux formulou pedido de vista, está-se a discutir o tratamento social que deve ser dispensado aos transexuais — pessoas que não se identificam com o gênero culturalmente atribuído ao seu sexo biológico —, especialmente no que diz respeito à possibilidade de utilização de banheiro de acesso público destinado ao gênero com o qual se identificam.

No caso, uma transexual mulher (que nasceu com o sexo biológico masculino) foi expulsa  do banheiro feminino de um shopping center, em abordagem vexatória e humilhante feita por segurança do estabelecimento. Diante da recusa de acesso ao banheiro, bem como do estresse causado pelo ocorrido, a transexual fez necessidades fisiológicas em suas vestes, submetendo-se ainda ao constrangimento de voltar para casa de ônibus em tais condições.

Face à situação experimentada, a mulher ajuizou ação de reparação por danos morais, tendo obtido ganho de causa em primeira instância. Entretanto, em grau de recurso, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina reformou a sentença, para assentar que a autora havia sofrido “mero dissabor”. Eis por que a lide chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio de recurso extraordinário.

Na Suprema Corte, o processo foi distribuído ao Ministro Roberto Barroso, que submeteu o tema à sistemática da repercussão geral, a fim de definir tese sobre o tratamento social que deve ser dado a pessoas transexuais.[9] Os autos foram, então, remetidos à Procuradoria-Geral da República, que assim se manifestou em seu parecer: “Não é possível que uma pessoa seja tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente, pois a identidade sexual encontra proteção nos direitos da personalidade e na dignidade da pessoa humana.”[10]

Em seu belo voto, o Ministro Barroso desenvolveu raciocínio a partir da premissa segundo a qual a igualdade se expressa em três dimensões: material, formal e como reconhecimento. Com apoio nas lições de Nancy Fraser[11], defendeu que a igualdade como reconhecimento objetiva inibir violência que não tem natureza legal nem econômica, mas cultural ou simbólica. Nesse contexto, ponderou que o antídoto contra a discriminação e o preconceito envolve transformação cultural geradora de um mundo aberto à diferença, no qual o preço pago pelo mútuo respeito não seja a assimilação de padrões culturais dominantes.[12]

No que diz respeito especificamente aos transexuais, o Ministro Relator apresentou alguns dados que atestam profunda marginalização dessa classe: I) Ao passo que a expectativa de vida do brasileiro médio é de quase 75 anos, a dos transexuais é de apenas cerca de 30 anos; II) O Brasil lidera o ranking mundial de violência transfóbica, contando com quase 40% dos homicídios contra transexuais registrados no mundo entre 2008 e 2014; III) A intolerância contra transexuais os acompanha pela vida inteira e em todos os meios de convívio social; IV) Estima-se que 90% dos travestis e transexuais no país se prostituem, em razão da intensa rejeição pelo mercado de trabalho.[13]

Em seguida, o relator assentou que os transexuais não podem ser estigmatizados por sua condição social e que nenhum tipo ou grau de repressão é capaz de alterar a natureza das coisas. Assim, concluiu que o Estado deve adotar postura ativa contra a intolerância e o preconceito, protegendo as escolhas existenciais das pessoas, inclusive por meio da afirmação do direito de os transexuais serem tratados socialmente em consonância à sua identidade de gênero.[14]

Em linhas gerais, essa mesma orientação foi seguida pelo Ministro Edson Fachin, que se manifestou, ainda, pela correção da autuação do processo para fazer constar o nome social da transexual na capa dos autos, além de decidir pela majoração do valor da indenização fixada na sentença a título de de danos morais.[15]

Foi após esse segundo voto que o Ministro Luiz Fux pediu vista dos autos, a fim de refletir sobre o que ele considera ser um desacordo moral razoável instalado na sociedade. Entretanto, pelas razões já expostas anteriormente, não vislumbro razoabilidade na divergência acerca do tratamento social das pessoas transexuais.

Na realidade, permitir deliberação majoritária sobre tal tema significa fomentar uma cultura de hierarquização de seres humanos, que pode conduzir a uma tirania da maioria em relação ao grupo inferiorizado.

Tratamento igualitário não é favor da classe social que se insere nos padrões culturais dominantes em relação às pessoas diferentes da maioria; não é, pois, uma escolha acordada majoritariamente, mas um imperativo do Estado Constitucional de Direito. Por isso, espero que, quando da retomada do julgamento do feito, o STF continue a trilhar o único caminho justo sobre esse assunto.

Para concluir, envio uma mensagem ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina: ao ler o acórdão exarado por esta Corte, “mero dissabor” sinto eu, enquanto simples cidadão que não tem interesse jurídico no processo ora analisado. A transexual expulsa do banheiro feminino de forma vexatória e humilhante teve sua personalidade ultrajada, o que deve ser juridicamente reparado.

[1] Pedido de vista formulado na Sessão Plenária do Supremo Tribunal Federal de 19 de novembro de 2015.
[2] US Supreme Court. Griswold v. Connecticut. 381 U.S. 479, 1965.
[3] Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgamento em 12/4/2012, DJe de 30/4/2013.
[4] Recurso Extraordinário 635.659, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno. Julgamento suspenso em razão de pedido de vista pelo Min. Teori Zavascki.
[5] WALDRON, Jeremy. A Dignidade da Legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 190.
[6] ROUSSEAU, Dominique. Constitutionnalisme et démocratie. In: La vie des idées, 19 septembre 2008. ISSN : 2105-3030. URL : « http://www.laviedesidees.fr/Constitutionnalisme-et-democratie.html », p. 6.
[7] TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en Amérique, t. 1, partie 2, ch. 7. Paris: Éditions Flammarion, 1981, p.172.
[8] BICKEL Alexander. The least dangerous branch: the Supreme Court at the bar of politics. Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1962, 16-17.
[9]Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 845.779, Rel. Min. Roberto Barroso, Pleno, DJe 10/3/2015.
[10] Parecer da Procuradoria-Geral da República no Recurso Extraordinário  845.779, Rel. Min. Roberto Barroso.
[11] Nancy Fraser. Redistribution, Recognition and Participation: Toward an Integrated Conception of Justice. World Culture Report 2000, Cultural Diversity, Conflict and Pluralism. UNESCO Publishing, 2000. pp. 48-57.
[12] Voto do Ministro Roberto Barroso no Recurso Extraordinário 845.779.
[13] Voto do Ministro Roberto Barroso no Recurso Extraordinário 845.779.
[14] Voto do Ministro Roberto Barroso no Recurso Extraordinário 845.779.
[15] Voto do Ministro Edson Fachin no Recurso Extraordinário 845.779.

Por José dos Santos Carvalho Filho
Fonte: Conjur
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