http://goo.gl/bMO4r4 | Recentemente, no AREsp 686.965/DF, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a injúria racial deve ser considerada imprescritível, o que tem gerado diversas críticas por parte da doutrina.
O fundamento foi o de que “a questão da imprescritibilidade do delito de injúria racial foi reconhecida [pelo tribunal] ao entendimento de que esse crime, por também traduzir preconceito de cor, atitude que conspira no sentido da segregação, veio a somar-se àqueles outros, definidos na Lei 7.716/89, cujo rol não é taxativo”, forte na lição de Celso Lafer, para quem “a base do crime da prática do racismo são os preconceitos e sua propagação, que discriminam grupos e pessoas (...) Promove a desigualdade, a intolerância em relação ao 'outro', e pode levar à segregação”[1].
Guilherme Nucci[2] defendeu a decisão, explicando que não se trata de “interpretação extensiva” (embora relate que a jurisprudência aceita tal interpretação para fins incriminadores), mas de consequência lógica do conceito de racismo afirmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do célebre caso Ellwanger (HC 82.424/RS). Concordamos com a conclusão de Nucci, especialmente no sentido de a decisão não acarretar interpretação extensiva incriminadora. O autor foi citado pelo STJ, quando leciona que “o artigo 5º, XLII, da Constituição Federal preceitua que a ‘prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei’.
O racismo é uma forma de pensamento que teoriza a respeito da existência de seres humanos divididos em ‘raças’, em face de suas características somáticas, bem como conforme sua ascendência comum. A partir dessa separação, apregoa a superioridade de uns sobre outros, em atitude autenticamente preconceituosa e discriminatória.
Vários estragos o racismo já causou à humanidade em diversos lugares, muitas vezes impulsionando ao extermínio de milhares de seres humanos, a pretexto de serem seres inferiores, motivo pelo qual não mereceriam viver.
Da mesma forma que a Lei 7.716/89 estabelece várias figuras típicas de crime resultantes de preconceitos de raça de cor, não quer dizer, em nossa visão, que promova um rol exaustivo. Por isso, com o advento da Lei 9.459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão” (NUCCI apud AREsp 686.965/DF).
Comecemos pela explicação do conceito constitucional de racismo, bem definido pelo STF no HC 82.424/RS. Para tanto, necessário entender o contexto do caso. O senhor Ellwanger editou uma série de obras consideradas pelo Judiciário como de cunho antissemita (discriminação contra judeus). A Lei de Racismo (Lei 7.716/89) já afirmava como crime, em seu artigo 20, qualquer conduta de praticar, induzir ou incitar o preconceito ou a discriminação por raça, cor, etnia, procedência nacional ou religião (artigo 20).
Quando o caso chegou ao STF, ele estaria prescrito se o crime de discriminação religiosa não fosse considerado imprescritível. Foi a linha do ministro Moreira Alves: por entender (por originalismo) que os debates constituintes teriam compreendido como “racismo” somente a discriminação contra negros (fato refutado pelo ministro Jobim, que foi deputado constituinte, mas essa questão não nos é relevante aqui), afirmou que o crime de discriminação religiosa não poderia ser considerado crime de racismo, donde estaria prescrito. Linha distinta dos ministros Marco Aurélio e Ayres Britto, que entendiam inexistir racismo, mas liberdade de expressão, no caso concreto. Porém, os três ficaram vencidos nesse julgamento.
A maioria do STF, corretamente, teve entendimento diverso, em vista da então recente divulgação dos resultados do Projeto Genoma, que concluiu que a humanidade é biologicamente una, por mais de 99% dos genes serem iguais entre todas as denominadas “raças”. Assim, para o racismo não se tornar crime impossível pela unicidade biológica da raça humana, o STF adotou o conceito de racismo social, enquanto qualquer discriminação que inferiorize/desumanize determinados grupos relativamente a outros (“raça”, portanto, assume um significado sociológico).
Mais ainda, nesse caso o Supremo também aplicou outro standard, qual seja, o de que a violação dos direitos fundamentais de um indivíduo não atinge (interessa) apenas a ele. Em outras palavras, quando o direito fundamental de alguém é violado, toda a comunidade é atingida. Ao passo que, cabe destacar, tal conceito de racismo social traz um fundamento racional para classificar algumas discriminações como racistas e outras como discriminações não racistas, de sorte a que ofensas a pessoas por características que não são historicamente estigmatizadas podem ser consideradas como discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais (artigo 5º, XLI), reservando-se o racismo para discriminações/desumanizações contra grupos historicamente inferiorizados socialmente.
Ora, a conduta de ofender alguém por motivos raciais é, inequivocamente, uma conduta racista. Não tem o menor cabimento afirmar que na chamada “injúria racial” não haveria “motivação racista”. Evidente que há. Não houvesse intenção de ser racista, a ofensa não teria se utilizado de termos ou estereótipos racistas. Por outro lado, não é preciso ser ideologicamente racista para ser condenado por racismo. Tendo proferido ofensas racistas, a pessoa deve ser condenada pelo crime de racismo.
O leitor familiarizado com a artificial diferenciação doutrinário-jurisprudencial entre “racismo” e “injúria racial” provavelmente protestará aqui, dizendo que proferir ofensas racistas deveria gerar a punição pelo crime de “injúria racial”, não de “racismo”. Contudo, o que estamos contestando aqui é a própria diferenciação, ao menos para o fim de se criarem regimes jurídicos distintos para a punição, com o que não concordamos.
É puramente artificial diferenciar ontologicamente “injúria racial” de “racismo”. A punição mais branda da chamada “injúria racial” relativamente ao “racismo” implica menoscabo ao repúdio constitucional ao racismo.
Ora, não deve haver diferença qualitativa entre ofender uma única pessoa por elementos racistas ou ofender uma coletividade de pessoas por elementos racistas — que é, aliás, o “critério diferenciador” em geral utilizado para defender a referida “distinção”. Por exemplo, dizer que “negros são menos inteligentes do que brancos” (sic) é considerado crime de racismo, mas chamar alguém de “preto burro” (sic) é considerado crime de injúria racial. No entanto, as condutas são igualmente odiosas e merecem o mesmo rigor penal (ainda que eventualmente diferenciadas na dosimetria da pena).
Cabe notar que não foi o legislador quem “criou” essa absurda diferenciação. Foram os tribunais que a inventaram. A Lei de Racismo não tinha um tipo penal como o de injúria, a ser considerado como “injúria racial”. A Lei 8.091/90 acrescentou a ela, em seu artigo 20, a conduta de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou o preconceito”[3] de raça, religião, etnia ou procedência nacional como crime. Posteriormente, a Lei 9.459/97 alterou a redação do artigo 20, adicionando o termo “cor”, diferenciando assim as discriminações por “raça” e “cor” (o que reforça o conceito de racismo social afirmado pelo STF).
Porém, o que os tribunais fizeram? Ilegitimamente, “legislaram” quando criaram a suposta “diferença” entre “racismo”, enquanto ofensa à coletividade de pessoas por causa de sua “raça”, e “injúria racial”, enquanto uma ofensa motivada por “elementos raciais” que deveria ser considerada não como racismo, mas como uma “injúria racial”. Isso ocasionava a desclassificação do crime, de “racismo” para “injúria simples”, ou, pior, a declaração de atipicidade da conduta.
Foi nesse contexto, de verdadeira “tentativa de homicídio” da Lei de Racismo pelos tribunais, que o legislador aprovou a Lei 9.459/97, que incluiu no artigo 142 do Código Penal um parágrafo 3º, que trouxe a qualificadora hoje conhecida como “injúria racial” ao impor a pena de 1 a 3 anos (a mesma do crime de racismo do artigo 20 da Lei 7.716/89) — “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem”.
Como se vê, demonstra profunda ignorância histórica falar como se o legislador tivesse criado a diferença entre racismo e injúria racial. Ele agiu em verdadeira política de redução de danos: como os tribunais estavam assassinando a Lei de Racismo, criou um tipo penal em conformidade com essa diferença inventada para salvar a efetividade da lei. Porém, sendo arbitrária a diferença, ela é inconstitucional por afronta aos princípios da razoabilidade e da isonomia, que respectivamente proíbem atos e diferenciações arbitrárias.
Logo, a questão é que a chamada injúria racial constitui espécie do gênero racismo. É uma das diversas formas possíveis de praticar o racismo. Portanto, é inconstitucional, por irrazoabilidade, não aplicar o regime constitucional do “racismo”, de imprescribilidade e inafiançabilidade, à chamada “injúria racial”. Daí o acerto da decisão do STJ e o descabimento das críticas.
As que se apegam a uma interpretação meramente literal (pura leitura) dos artigos para afirmar a diferença aqui criticada ignora esse contexto histórico (interpretação histórica), de assassinato da Lei de Racismo pelos tribunais e da política de redução de danos do legislador com a Lei 9.549/97. Uma verdadeira fusão de horizontes da hermenêutica filosófica mostra que o legislador não criou essa diferença, razão pela qual não se pode aplicar um verdadeiro dura lex, sed lex para justificá-la.
O próprio PL 1.240/95, que gerou a Lei 9.549/97, fala em “atualização da Lei 7.716/89” como sua justificativa, afirmando ainda que isso foi feito para punir toda “manifestação pública” do preconceito racista[4], o que mostra que o próprio legislador considerou a injúria racial como espécie de racismo.
Parece-nos que o legislador abriu os olhos para nossa gramática profunda. Finalmente, percebeu que a “democracia racial” de Gilberto Freyre é um mito. Um mito que permanece nas sombras do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. Não falamos mais na superioridade do branco, a partir da pureza/brancura do açúcar refinado em face do mascavo.
Tampouco falamos do “branqueamento” da população, tal como feito no período da imigração. Já passamos da época em que o livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, de Nina Rodrigues, propunha códigos distintos para brancos e negros, cada um próprio ao “grau de evolução de cada grupo” (sic). Não. Superado o mito da “cordialidade” em termos (sociologicamente) “raciais”, imperioso reconhecer que o atual estágio de civilização não permite mais a discriminação racial, ainda que de formas consideradas “sutis” em nosso “racismo cordial”, que se adapta ao “politicamente correto” (sic). Ele se manifesta de modo fluido, indireto, inconsciente, na fenda da razão. Nas entrelinhas da hermenêutica.
Portanto, a irracionalidade da diferenciação de regimes jurídicos entre “racismo” e “injúria racial” torna tal diferenciação violadora do princípio da razoabilidade, donde uma filtragem constitucional do parágrafo 3º do artigo 142 do CP demanda sua interpretação como espécie do gênero racismo.
O fato de a pena desse dispositivo ser a mesma do artigo 20 da Lei de Racismo reforça esse entendimento. O fato de condutas estarem criminalizadas em tipos ou leis diferentes é irrelevante: pode o legislador punir o racismo e o que quer que seja por leis diferentes, não havendo sentido dizer o contrário a menos que a lei em sua literalidade.
Eis a tarefa da academia: mais do que desvelar, devemos revelar a verdade em nossas relações sociais e jurídicas. Dar nosso testemunho contra a injustiça contra seres humanos e, para tanto (neste caso), dizer um “basta” para os devastadores efeitos colaterais de 400 anos de escravidão! Nesses termos, por irrazoabilidade, é inconstitucional uma diferenciação de efeitos de “racismo” e “injúria racial”, por esta ser uma espécie daquele, razão pela qual correta a atribuição de imprescritibilidade também a ela.
[1] Cf. http://www.conjur.com.br/2015-out-16/paulo-henrique-amorim-condenado-injuria-heraldo-pereira (acesso em 27.10.15), matéria que leva à íntegra da citada decisão.
[2] Cf. http://www.conjur.com.br/2015-out-27/guilherme-nucci-quem-nunca-sofreu-racismo-acha-isso-injuria (acesso em 27.10.15).
[3] Inicialmente, o crime incidia somente se tal prática, induzimento ou incitação se desse por meios de comunicação e publicações em geral, mas posteriormente esses qualificativos foram retirados, para qualquer prática, induzimento ou incitação de discriminação ou preconceito, por quaisquer meios, fossem crime.
[4] Cf. http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD04SET1996.pdf#page=50, p. 51 do PDF (acesso em 09.11.15).
Por Álvaro Ricardo de Souza Cruz e Paulo Roberto Iotti Vecchiatti
Fonte: Conjur
O fundamento foi o de que “a questão da imprescritibilidade do delito de injúria racial foi reconhecida [pelo tribunal] ao entendimento de que esse crime, por também traduzir preconceito de cor, atitude que conspira no sentido da segregação, veio a somar-se àqueles outros, definidos na Lei 7.716/89, cujo rol não é taxativo”, forte na lição de Celso Lafer, para quem “a base do crime da prática do racismo são os preconceitos e sua propagação, que discriminam grupos e pessoas (...) Promove a desigualdade, a intolerância em relação ao 'outro', e pode levar à segregação”[1].
Guilherme Nucci[2] defendeu a decisão, explicando que não se trata de “interpretação extensiva” (embora relate que a jurisprudência aceita tal interpretação para fins incriminadores), mas de consequência lógica do conceito de racismo afirmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do célebre caso Ellwanger (HC 82.424/RS). Concordamos com a conclusão de Nucci, especialmente no sentido de a decisão não acarretar interpretação extensiva incriminadora. O autor foi citado pelo STJ, quando leciona que “o artigo 5º, XLII, da Constituição Federal preceitua que a ‘prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei’.
O racismo é uma forma de pensamento que teoriza a respeito da existência de seres humanos divididos em ‘raças’, em face de suas características somáticas, bem como conforme sua ascendência comum. A partir dessa separação, apregoa a superioridade de uns sobre outros, em atitude autenticamente preconceituosa e discriminatória.
Vários estragos o racismo já causou à humanidade em diversos lugares, muitas vezes impulsionando ao extermínio de milhares de seres humanos, a pretexto de serem seres inferiores, motivo pelo qual não mereceriam viver.
Da mesma forma que a Lei 7.716/89 estabelece várias figuras típicas de crime resultantes de preconceitos de raça de cor, não quer dizer, em nossa visão, que promova um rol exaustivo. Por isso, com o advento da Lei 9.459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão” (NUCCI apud AREsp 686.965/DF).
Comecemos pela explicação do conceito constitucional de racismo, bem definido pelo STF no HC 82.424/RS. Para tanto, necessário entender o contexto do caso. O senhor Ellwanger editou uma série de obras consideradas pelo Judiciário como de cunho antissemita (discriminação contra judeus). A Lei de Racismo (Lei 7.716/89) já afirmava como crime, em seu artigo 20, qualquer conduta de praticar, induzir ou incitar o preconceito ou a discriminação por raça, cor, etnia, procedência nacional ou religião (artigo 20).
Quando o caso chegou ao STF, ele estaria prescrito se o crime de discriminação religiosa não fosse considerado imprescritível. Foi a linha do ministro Moreira Alves: por entender (por originalismo) que os debates constituintes teriam compreendido como “racismo” somente a discriminação contra negros (fato refutado pelo ministro Jobim, que foi deputado constituinte, mas essa questão não nos é relevante aqui), afirmou que o crime de discriminação religiosa não poderia ser considerado crime de racismo, donde estaria prescrito. Linha distinta dos ministros Marco Aurélio e Ayres Britto, que entendiam inexistir racismo, mas liberdade de expressão, no caso concreto. Porém, os três ficaram vencidos nesse julgamento.
A maioria do STF, corretamente, teve entendimento diverso, em vista da então recente divulgação dos resultados do Projeto Genoma, que concluiu que a humanidade é biologicamente una, por mais de 99% dos genes serem iguais entre todas as denominadas “raças”. Assim, para o racismo não se tornar crime impossível pela unicidade biológica da raça humana, o STF adotou o conceito de racismo social, enquanto qualquer discriminação que inferiorize/desumanize determinados grupos relativamente a outros (“raça”, portanto, assume um significado sociológico).
Mais ainda, nesse caso o Supremo também aplicou outro standard, qual seja, o de que a violação dos direitos fundamentais de um indivíduo não atinge (interessa) apenas a ele. Em outras palavras, quando o direito fundamental de alguém é violado, toda a comunidade é atingida. Ao passo que, cabe destacar, tal conceito de racismo social traz um fundamento racional para classificar algumas discriminações como racistas e outras como discriminações não racistas, de sorte a que ofensas a pessoas por características que não são historicamente estigmatizadas podem ser consideradas como discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais (artigo 5º, XLI), reservando-se o racismo para discriminações/desumanizações contra grupos historicamente inferiorizados socialmente.
Ora, a conduta de ofender alguém por motivos raciais é, inequivocamente, uma conduta racista. Não tem o menor cabimento afirmar que na chamada “injúria racial” não haveria “motivação racista”. Evidente que há. Não houvesse intenção de ser racista, a ofensa não teria se utilizado de termos ou estereótipos racistas. Por outro lado, não é preciso ser ideologicamente racista para ser condenado por racismo. Tendo proferido ofensas racistas, a pessoa deve ser condenada pelo crime de racismo.
O leitor familiarizado com a artificial diferenciação doutrinário-jurisprudencial entre “racismo” e “injúria racial” provavelmente protestará aqui, dizendo que proferir ofensas racistas deveria gerar a punição pelo crime de “injúria racial”, não de “racismo”. Contudo, o que estamos contestando aqui é a própria diferenciação, ao menos para o fim de se criarem regimes jurídicos distintos para a punição, com o que não concordamos.
É puramente artificial diferenciar ontologicamente “injúria racial” de “racismo”. A punição mais branda da chamada “injúria racial” relativamente ao “racismo” implica menoscabo ao repúdio constitucional ao racismo.
Ora, não deve haver diferença qualitativa entre ofender uma única pessoa por elementos racistas ou ofender uma coletividade de pessoas por elementos racistas — que é, aliás, o “critério diferenciador” em geral utilizado para defender a referida “distinção”. Por exemplo, dizer que “negros são menos inteligentes do que brancos” (sic) é considerado crime de racismo, mas chamar alguém de “preto burro” (sic) é considerado crime de injúria racial. No entanto, as condutas são igualmente odiosas e merecem o mesmo rigor penal (ainda que eventualmente diferenciadas na dosimetria da pena).
Cabe notar que não foi o legislador quem “criou” essa absurda diferenciação. Foram os tribunais que a inventaram. A Lei de Racismo não tinha um tipo penal como o de injúria, a ser considerado como “injúria racial”. A Lei 8.091/90 acrescentou a ela, em seu artigo 20, a conduta de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou o preconceito”[3] de raça, religião, etnia ou procedência nacional como crime. Posteriormente, a Lei 9.459/97 alterou a redação do artigo 20, adicionando o termo “cor”, diferenciando assim as discriminações por “raça” e “cor” (o que reforça o conceito de racismo social afirmado pelo STF).
Porém, o que os tribunais fizeram? Ilegitimamente, “legislaram” quando criaram a suposta “diferença” entre “racismo”, enquanto ofensa à coletividade de pessoas por causa de sua “raça”, e “injúria racial”, enquanto uma ofensa motivada por “elementos raciais” que deveria ser considerada não como racismo, mas como uma “injúria racial”. Isso ocasionava a desclassificação do crime, de “racismo” para “injúria simples”, ou, pior, a declaração de atipicidade da conduta.
Foi nesse contexto, de verdadeira “tentativa de homicídio” da Lei de Racismo pelos tribunais, que o legislador aprovou a Lei 9.459/97, que incluiu no artigo 142 do Código Penal um parágrafo 3º, que trouxe a qualificadora hoje conhecida como “injúria racial” ao impor a pena de 1 a 3 anos (a mesma do crime de racismo do artigo 20 da Lei 7.716/89) — “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem”.
Como se vê, demonstra profunda ignorância histórica falar como se o legislador tivesse criado a diferença entre racismo e injúria racial. Ele agiu em verdadeira política de redução de danos: como os tribunais estavam assassinando a Lei de Racismo, criou um tipo penal em conformidade com essa diferença inventada para salvar a efetividade da lei. Porém, sendo arbitrária a diferença, ela é inconstitucional por afronta aos princípios da razoabilidade e da isonomia, que respectivamente proíbem atos e diferenciações arbitrárias.
Logo, a questão é que a chamada injúria racial constitui espécie do gênero racismo. É uma das diversas formas possíveis de praticar o racismo. Portanto, é inconstitucional, por irrazoabilidade, não aplicar o regime constitucional do “racismo”, de imprescribilidade e inafiançabilidade, à chamada “injúria racial”. Daí o acerto da decisão do STJ e o descabimento das críticas.
As que se apegam a uma interpretação meramente literal (pura leitura) dos artigos para afirmar a diferença aqui criticada ignora esse contexto histórico (interpretação histórica), de assassinato da Lei de Racismo pelos tribunais e da política de redução de danos do legislador com a Lei 9.549/97. Uma verdadeira fusão de horizontes da hermenêutica filosófica mostra que o legislador não criou essa diferença, razão pela qual não se pode aplicar um verdadeiro dura lex, sed lex para justificá-la.
O próprio PL 1.240/95, que gerou a Lei 9.549/97, fala em “atualização da Lei 7.716/89” como sua justificativa, afirmando ainda que isso foi feito para punir toda “manifestação pública” do preconceito racista[4], o que mostra que o próprio legislador considerou a injúria racial como espécie de racismo.
Parece-nos que o legislador abriu os olhos para nossa gramática profunda. Finalmente, percebeu que a “democracia racial” de Gilberto Freyre é um mito. Um mito que permanece nas sombras do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. Não falamos mais na superioridade do branco, a partir da pureza/brancura do açúcar refinado em face do mascavo.
Tampouco falamos do “branqueamento” da população, tal como feito no período da imigração. Já passamos da época em que o livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, de Nina Rodrigues, propunha códigos distintos para brancos e negros, cada um próprio ao “grau de evolução de cada grupo” (sic). Não. Superado o mito da “cordialidade” em termos (sociologicamente) “raciais”, imperioso reconhecer que o atual estágio de civilização não permite mais a discriminação racial, ainda que de formas consideradas “sutis” em nosso “racismo cordial”, que se adapta ao “politicamente correto” (sic). Ele se manifesta de modo fluido, indireto, inconsciente, na fenda da razão. Nas entrelinhas da hermenêutica.
Portanto, a irracionalidade da diferenciação de regimes jurídicos entre “racismo” e “injúria racial” torna tal diferenciação violadora do princípio da razoabilidade, donde uma filtragem constitucional do parágrafo 3º do artigo 142 do CP demanda sua interpretação como espécie do gênero racismo.
O fato de a pena desse dispositivo ser a mesma do artigo 20 da Lei de Racismo reforça esse entendimento. O fato de condutas estarem criminalizadas em tipos ou leis diferentes é irrelevante: pode o legislador punir o racismo e o que quer que seja por leis diferentes, não havendo sentido dizer o contrário a menos que a lei em sua literalidade.
Eis a tarefa da academia: mais do que desvelar, devemos revelar a verdade em nossas relações sociais e jurídicas. Dar nosso testemunho contra a injustiça contra seres humanos e, para tanto (neste caso), dizer um “basta” para os devastadores efeitos colaterais de 400 anos de escravidão! Nesses termos, por irrazoabilidade, é inconstitucional uma diferenciação de efeitos de “racismo” e “injúria racial”, por esta ser uma espécie daquele, razão pela qual correta a atribuição de imprescritibilidade também a ela.
[1] Cf. http://www.conjur.com.br/2015-out-16/paulo-henrique-amorim-condenado-injuria-heraldo-pereira (acesso em 27.10.15), matéria que leva à íntegra da citada decisão.
[2] Cf. http://www.conjur.com.br/2015-out-27/guilherme-nucci-quem-nunca-sofreu-racismo-acha-isso-injuria (acesso em 27.10.15).
[3] Inicialmente, o crime incidia somente se tal prática, induzimento ou incitação se desse por meios de comunicação e publicações em geral, mas posteriormente esses qualificativos foram retirados, para qualquer prática, induzimento ou incitação de discriminação ou preconceito, por quaisquer meios, fossem crime.
[4] Cf. http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD04SET1996.pdf#page=50, p. 51 do PDF (acesso em 09.11.15).
Por Álvaro Ricardo de Souza Cruz e Paulo Roberto Iotti Vecchiatti
Fonte: Conjur