Quando o problema do consumidor poderia ser solucionado pela lei antitruste

goo.gl/kG6yvw | É para refletir. Pesquisa feita no site Consumidor.gov, do Ministério da Justiça, indica que, entre as dez empresas com maior número de reclamações respondidas, há três de telecomunicações e três integrantes do Sistema Financeiro Nacional (SFN)[1]. Já no ranking de atendimentos do Procon-SP — o maior e mais antigo órgão do gênero do país —, das dez empresas mais demandadas em 2016[2], cinco são de telecomunicações, e três são integrantes do SFN.

Em uma sociedade de consumo reconhecida pela variedade crescente de produtos e serviços oferecidos à população, a concentração de problemas nesses dois mercados chama a atenção e justifica um olhar mais apurado em direção a essas áreas. Telecomunicações e serviços bancários constituem exemplos de mercados regulados, reconhecidamente um desafio à política nacional do consumidor. Nesse sentido, especialistas reunidos no XIII Congresso Nacional de Direito do Consumidor, em Foz do Iguaçu, entre 1° e 4 de maio, sublinharam, reiteradamente, a imperiosidade de se empreenderem esforços para se alcançar, em setores disciplinados por agências reguladoras, a plena consecução dos objetivos constitucionais e legais consumeristas.

Um olhar individualizado para cada um desses setores (telecomunicações e bancos) aponta para um cenário verdadeiramente preocupante, no qual não há indícios de melhoria, ao menos no curto prazo.

O setor de telecomunicações constitui, atualmente, o foco mais agudo dos problemas de consumo. A intenção, recentemente divulgada, das empresas do setor de instituir limitação para a banda larga fixa tomou rapidamente conta da mídia e da internet, pela forte reação com que foi recebida.

Vamos aos fatos.

Em fevereiro de 2016, empresas prestadoras de serviços de telecomunicações informaram o público sobre uma nova política de fornecimento de serviços de internet fixa, que passaria a contar com limitação e franquia de uso. Imediatamente, entidades de defesa do consumidor promoveram ações judiciais e consumidores se organizaram na web em torno de petições públicas e de campanhas contra a iniciativa. O presidente da agência reguladora do setor, a Anatel, por sua vez, declarou que “a era da internet ilimitada acabou”, e alguns economistas chegaram a defender, em público, a prática, que, em tese, alcançaria maior eficiência, na medida em que cada um pagaria pelo próprio consumo (quem consome menos pagaria menos).

Poderia até ser. De fato, teoricamente, esse modelo poderia ser mais justo. Entretanto, as características estruturais do mercado brasileiro, a priori, não autorizam chegar-se a essa conclusão, dadas as características — cumuladas — do mercado, a saber: a) segundo dados da própria Anatel, apenas três grandes grupos empresariais dominam 90% do mercado nacional; b) a prática em questão passou a ser adotada quase que concomitantemente pelos três grupos; c) não houve qualquer alegação ou demonstração de justificativa técnica para a mudança de comportamento das empresas, corroborando a tese de que se trata somente de um novo modelo de negócios; d) tendo em vista ser de dificílimo ingresso, o mercado de telecomunicações possui consideráveis barreiras à entrada de novas empresas.

O mercado bancário, por outro lado, é velho conhecido dos órgãos de defesa do consumidor brasileiro. Reconhecidos pela relutância em se submeter ao Código de Defesa do Consumidor, embora haja previsão legal expressa nesse sentido (artigo 3º, parágrafo 2º, da Lei 8.078/90 — felizmente refutada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 2.591), os bancos são responsáveis por um percentual considerável de ações judiciais e reclamações administrativas em relação ao Direito do Consumidor e nos Procons de todo o país, sempre envolvendo questões sobre práticas e cláusulas abusivas, nos termos do CDC. Aspectos econômicos do setor — especialmente a estrutura do mercado em questão — igualmente merecem ser observados.

Leandro Novais e Silva, professor da Faculdade de Direito da UFMG e profícuo estudioso do SFN, apresenta o seguinte cenário: dados do Bacen, de 2014, apontam o aumento da concentração bancária no Brasil, em processo de moderada para elevada concentração[3]; os “apertos” gerais da economia recente não têm repercutido no mesmo grau no setor financeiro, evidenciando uma distorção do sistema[4]; a competição no mercado bancário é baixa, fato comprovado pelas “falhas” das políticas do governo Dilma em forçar a redução dos spreads bancários, por meio da atuação do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, uma vez que os bancos privados não acompanharam os movimentos de redução das taxas de juros e sobreviveram muito bem, obrigado[5]; os cinco maiores conglomerados bancários detêm aproximadamente 85% do SFN, apesar do grande número de instituições financeiras que dele fazem parte[6]; e a concentração parece ser favorecida pelo modelo regulatório em vigor[7].

Para concluir o quadro, observe-se que o SFN também refuta, judicialmente, a aplicação da lei antitruste ao setor, situação ainda pendente de solução no Supremo Tribunal Federal, nos autos do RE 664.189/DF. Caso exitosa a tese do SFN no referido recurso extraordinário, os atos de concentração envolvendo empresas do setor, ao contrário do que ocorre em todos os demais setores da economia, não serão apreciados e (des)autorizados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), mas submetidos exclusivamente ao crivo do Banco Central do Brasil (Bacen).

Um olhar atento para as características dos mercados em questão indica que talvez a melhor forma de enfrentamento dos conflitos de consumo a eles inerentes não esteja no CDC, embora haja no código normas aplicáveis aos fatos. As demandas instauradas e decididas com base no CDC, no entanto, poderão resolver apenas parte das dificuldades ou não serem capazes de inibir novos problemas. Uma consulta à legislação antitruste, todavia, pode nos indicar instrumentos e remédios para o enfrentamento definitivo. Porém, para isso, é preciso que haja uma agenda conjunta entre as políticas públicas nacionais de consumidor e concorrência... E esse ainda é um desafio para o Brasil.

[1] Pesquisa realizada em 29/4/2016, referente aos últimos 365 dias.
[2] Idem.
[3] NOVAIS, Leandro; SOUZA, Frederico. Bancos pequenos demais para sobreviver? Jornal Valor, p. A-14, publicado em 9 de outubro de 2014.
[4] _____. Dominância Financeira no Brasil? Jornal Valor, p. A-10, publicado em 3 de setembro de 2014.
[5] _____. Concorrência entre bancos? Jornal Valor, p. A-10, publicado de 7 a 9 de março de 2015.
[6] Idem.
[7] NOVAIS, Leandro; PRATES, Marcelo Madureira. Estabilidade, concorrência e o papel da regulação financeira. Jornal Valor, p. A-10, publicado em 16 de outubro de 2015.

Por Amanda Flávio de Oliveira
Fonte: Conjur
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