Desembargadora do Rio de Janeiro é processada por persuadir criança a ficar com mãe

goo.gl/MtTuwS | Um das grandes evoluções do Direito de Família foi, em processos de disputa pela guarda de filhos, passar a se preocupar com o bem estar da criança em vez de com o direito dos pais. Assim, a disputa dos adultos passou a ser analisada quanto ao exercício das funções parentais. No entanto, chegou ao Conselho Nacional de Justiça o caso de uma desembargadora do Rio de Janeiro que parece seguir o caminho inverso.

Uma oitiva informal de um menino rendeu dois procedimentos disciplinares e um pedido de suspeição contra a desembargadora Lúcia Maria Miguel da Silva Lima, da 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça. Ela é acusada de pressionar um menino, que diz ser maltratado pelo padrasto, a voltar a conviver com a mãe — que, ainda segundo a criança, acobertava os maus-tratos.

A oitiva aconteceu em setembro do ano passado, no gabinete da desembargadora e foi gravada em vídeo pelo próprio garoto, então com 11 anos. A ConJur teve acesso às filmagens com exclusividade.

Os diálogos impressionam. Por exemplo, ao ouvir o relato sobre os maus-tratos sofridos e pelos quais o jovem diz não querer visitar a mãe nem a cada 15 dias, a desembargadora responde que ele “não tem querer” e ameaça, dizendo que a negativa vai gerar consequências ruins para o pai.
O encontro não contou com a participação dos advogados dos pais, de membro do Ministério Público, nem de profissional da equipe multidisciplinar do tribunal, que normalmente acompanham esses casos. Estavam presentes apenas a criança, a desembargadora e uma assessora dela.

O processo teve início depois que o menino, então sob a guarda da mãe, decidiu morar com o pai. Ela fica no Rio de Janeiro, e ele, em São Paulo.  A mãe concordou que o jovem ficasse com o pai, mas se arrependeu. Por isso, entrou na Justiça para pedir o retorno dele no início deste ano.

A desembargadora pediu para ouvir o menino. O procedimento tem previsão no parágrafo 3º do artigo 161 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Segundo o dispositivo, nos pedidos de modificação de guarda, “será obrigatória, desde que possível e razoável, a oitiva da criança ou adolescente, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida”.

Leia os trechos do diálogo:

MeninoEu não quero vir.

DesembargadoraPois é, mas acontece o seguinte: você não tem querer.

MeninoComo assim?

DesembargadoraÉ. Quem tem querer é a sua mãe, que não pode ficar sem ver você. Você não tem saudade dela?

MeninoEu gostaria muito que ela fosse para São Paulo. Paciência, eu não vou vir pro Rio.

Desembargadora Não vai vir? Seu pai vai levar uma multa terrível. Duvido que ele não te traga.

Em outro trecho, a assistente da desembargadora questiona o menor se ele aceitaria visitar a mãe se ela se separasse do padrasto. A desembargadora, antes mesmo da resposta, afirma que ele não mudaria de ideia, porque é vítima de alienação parental.

Eis que o garoto pergunta: “O que é alienação parental?”, para ouvir a pouco didática resposta de Lúcia Maria: “Você depois vai procurar saber o que é isso, mas é uma coisa muito séria”.

A servidora insiste em um acordo. Mas o menino continua irredutível. Diz que está feliz em São Paulo e, com a voz embargada, afirma que tem medo do padrasto. Lúcia Maria diz que a queixa crime feita pelo pai contra o companheiro da mãe não provou nada e, por isso, acabou sendo arquivada. O menino insiste que não quer voltar para o Rio de Janeiro.

A desembargadora diz, novamente, que a opinião da criança é irrelevante: “Problema é seu você não querer".

Leia a conversa:

ServidoraVamos tentar chegar num acordo.

DesembargadoraVocê não tem querer. Não tem, não.Você não está entendendo o alcance do negócio. Você não tem querer. Você tem que fazer aquilo que o juiz decidiu. E o juiz decidiu...

MeninoAh, então se o juiz decidir uma coisa ruim para mim, eu tenho que...

ServidoraÉ ruim sob que ótica?

DesembargadoraMas o juiz responderá por isso, entendeu?

MeninoEu não vou vir porque é ruim para mim. Eu não quero vir.

Servidora Porque você não quer vir?

DesembargadoraAh, mas você vai ter que vir.

MeninoPorque a família da minha mãe...

ServidoraQue é a sua família também, né...

DesembargadoraÉ sua família. Ele sempre viveu junto dessa família, até o ano passado, quando o pai dele levou ele para São Paulo e reteve ele lá.

Menino Não, não me reteve. Eu que pedi.

Desembargadora Reteve sim.                        

MeninoNão me reteve.

Desembargadora Não interessa o que você fez. O problema é que seu pai descumpriu uma ordem.

A oitiva tem continuidade com a desembargadora afirmando que o pai descumpriu, por duas vezes seguidas, a ordem judicial de trazê-lo para visitar a mãe.

MeninoPor que ele desobedeceu?

Desembargadora Porque ele não te trouxe. Aí, agora o problema está até para ele. Ele só tem que trazer. Criança não tem querer mesmo. Ele só tem que trazer.

MenorEu não quero vir. Ele só está me ouvindo.

Desembargadora Problema é seu você não querer. Agora vai ser um problema que vai doer no bolso dele. E vai doer muito.

Menino Como assim?

Desembargadora Ele vai receber uma multa daquelas se ele não te trouxer. Você querendo ou não querendo. Por que o que dói é quando afeta o bolso.

MeninoMas por que ele vai ter uma multa?

Desembargadora Porque ele está desobedecendo uma ordem judicial.

Menino Se ele está me ouvindo?

DesembargadoraEle não tem que te ouvir. Não tem que te ouvir. Ele vai ter que obedecer ao juiz. Por isso coloquei aqui ó... tá vendo aquilo ali [ela aponta a sessão plenária do STF que está sendo transmitida pela TV]. Eles decidem ali. Aí de quem desobedecer. E seu pai está desobedecendo.

Antes de encerrar a oitiva, a desembargadora pergunta ao menor o nome do colégio que ele estuda em São Paulo. “E você está com boas notas?”, questiona. “Melhores que lá”, responde o menino, referindo-se à escola que frequentava no Rio de Janeiro. Lúcia Maria diz que isso se deve ao fato de a instituição de ensino anterior ser mais exigente. “É muito puxado. Se não estudar não tira nem um sete”, afirma. Contrariado, o menor devolve: “Acho que onde estou é mais puxado”.

Processo disciplinares

A defesa do pai entrou com duas reclamações disciplinares — uma no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e outra no Conselho Nacional de Justiça. Ambos foram arquivadas.

No procedimento protocolado no CNJ, a corregedora nacional de Justiça, ministra Nancy Andrighi, disse que “se a conduta do juiz, eventualmente, revelar indício de parcialidade, capaz de afastá-lo do julgamento do processo, a questão também deve ser tratada na esfera judicial”.

Segundo Nancy, a competência fixada para o Conselho é restrita ao âmbito administrativo do Poder Judiciário, “não podendo ocorrer intervenção em conteúdo de decisão judicial, seja para corrigir eventual vício de ilegalidade ou nulidade”.

O pai também entrou com um pedido de suspeição contra a desembargadora, ainda não julgado pelo Órgão Especial do TJ-RJ. Os processos tramitam em segredo de Justiça.

Procurada pela ConJur, a desembargadora informou, por meio da assessoria de imprensa do TJ-RJ, que não vai comentar o caso. O vídeo não será disponibilizado para preservar a identidade do menor.

Por Giselle Souza
Fonte: Conjur
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