‘Não consigo entender como um ser humano dá um tiro na cabeça de uma menina’ diz mãe

goo.gl/uYEoWz | A cozinheira J., de 33 anos, leu, assistiu e ouviu, atentamente, a todas as notícias sobre o estupro coletivo da adolescente de 16 anos, ocorrido no Morro da Barão, na Praça Seca, no dia 21 do mês passado. No entanto, de uma maneira diferente da percepção da maioria. A cada reportagem, ela sentia uma dor pessoal, única, que fez com que perguntasse e respondesse a si mesma: "E se a minha filha tivesse cedido? Provavelmente, ela estaria viva".

Fez um ano neste sábado que a sua menina, uma estudante do 6º ano, de 15 anos, foi baleada com um tiro de pistola na cabeça, à queima-roupa, por se recusar a fazer sexo com um traficante, justamente no mesmo local onde ocorreu o estupro de repercussão internacional. A menina, atraída pelo pancadão do funk, foi parar no baile da Barão. Ao dar um "não" como resposta ao criminoso, dizendo ainda que ele fedia, ela assinou sua sentença de morte. Onze dias depois de um coma profundo, seu coração parou de bater.

J. proibia a menina de ir a bailes funk. No dia 11 de junho do ano passado, ela deixou que a filha, pela terceira vez, passasse a noite com uma colega de escola. A jovem havia mentido para a mãe. Com mais três garotas, foi até a Rua Barão de táxi, provavelmente pago pelo tráfico, e subiu até o alto do morro, onde o baile acontecia. A partir daí, J. sabe muito pouco do que aconteceu. Ela imagina que a adolescente tenha sido assediada por bandidos e levada para um dos "abatedouros" da favela, local usado para práticas sexuais.

A única certeza da mãe é de que a filha caiu numa cilada. Como não podem ir para o "asfalto", os traficantes promovem bailes funk no morro para atrair meninas e fazer sexo com elas. Vender drogas como cheirinho da loló, maconha e cocaína também é uma das metas do bando, que costuma ostentar armas como fuzis.

Ao som do pancadão, surgem coreografias promíscuas como a dos rapazes deitados no chão e as meninas, sem calcinha, rebolando sobre eles. As letras dos funks reproduzem essa realidade, como a estrofe cantada pelo lutador Raí de Souza, um dos acusados de participação no estupro coletivo: "Mais de 30 engravidou". Na verdade, a versão original fala que "20 engravidou". O vídeo feito por ele permitiu que o caso não ficasse impune.

Professora de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autora da pesquisa "Endereço dos bailes: a construção cultural do funk carioca", Libny Freire concorda que os traficantes usam os bailes para atrair as jovens, mas não acredita que a letra do funk estimule o estupro:

- Eu não acredito que as letras influenciem no comportamento dos jovens a ponto de eles passarem a estuprar. O proibidão é uma válvula de escape. Ele fala as palavras exatamente como elas são, ásperas. É fato que ele fala do erotismo e que muitas meninas engravidam nos bailes. É a realidade. Temos que quebrar o tabu e levar a educação sexual para as salas de aula.

Defensor ferrenho do funk, o ativista social e fundador da Central Única das Favelas (Cufa), Celso Athayde, acredita que esse tipo de música reflete o cotidiano dos jovens em comunidade:

- Há vários gêneros musicais com duplo sentido: axé, samba, forró. Mas só o funk desperta essa reação contrária, supondo que sua música induz a um mau comportamento. São manifestações da cultura da favela. No meu livro, "Falcão, meninos do tráfico", eu já falava das meninas que faziam sexo oral nos rapazes em troca de drogas. O funk reproduz essa realidade. As músicas são crônicas das favelas. Não é a música que induz a sexualidade.

Para Junia Vilhena, psicanalista e professora da PUC, o funk é fruto de uma produção cultural. Ele, por si só, não estimularia o sexo. E, sobre a questão do estupro, ela diz que não há situação que justifique a violência:

- O corpo é dela, da mulher. Mesmo que ela esteja sem calcinha. O estupro não é coisa só da favela, mas também da universidade e até de dentro de casa. Esse crime é estimulado por uma cultura machista, onde a mulher não tem o poder. Mães criam seus meninos mostrando que existem mulheres para casar e as da rua, a do estupro. Quem nunca ouviu a expressão "prendam suas cabritas, porque o meu bode está solto"?

Além da jovem que morreu, a cozinheira J. tem mais cinco filhos, sendo quatro meninas. Não há um dia sequer que ela não se lembre da garota:

- Minha filha só tinha 1,53m. Foi muita covardia. Não consigo entender como um ser humano pega uma arma e dá um tiro na cabeça de uma menina. Não posso deixar meus filhos sozinhos. Não aguentaria perder mais um.

Mesmo grávida, X., de 27 anos, é fascinada pelo batidão do funk. O resultado da diversão foram dois filhos, de 2 e 4 anos, gerados em bailes de uma favela da Zona Sul. Ela não sabe quem são os pais, nem fez teste de DNA, pois só os viu uma única vez:

- Eu não sei quem são - diz a jovem, que cria os filhos com os R$ 150 recebidos por cada faxina, e não desiste: - Vou continuar indo aos meus bailes.

Para titular da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (Dcav), Cristiana Bento, que investiga o estupro coletivo, o funk proibidão influencia na formação dos jovens:

- A adolescente que sofreu o estupro coletivo era uma menina estudiosa, tranquila. A vida dela mudou quando ela começou a frequentar bailes em comunidades. Foi quando descobriu o cheirinho da loló e os pais perderam o controle sobre ela.

Referência no atendimento aos jovens que sofrem abuso sexual, o Núcleo de Atendimento a Crianças e Adolescentes (Naca) do Grajaú está prestes a fechar as portas, devido à crise no estado.

- Os salários estão atrasados desde janeiro. Se não houver repasses por parte da Fundação para a Infância e Adolescência até o fim do mês, encerraremos as atividades - diz a presidente da ONG Centro de Pesquisas e de Ações Sociais e Culturais, Maria Silvia Ferreira, responsável pelo Naca.

Por Vera Araújo
Fonte: extra globo
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