goo.gl/VlRBe8 | A coluna de hoje tem uma intenção mais teórica e abstrata. Nela quero retomar um tema a mim muito caro, que diz respeito ao problema do método no âmbito da ciência do Direito[1], procurando colocar em paralelo duas propostas de autores que fizeram história no campo do Direito Privado, mas que, do ponto de vista epistemológico, lançaram luz em problemas bem mais amplos e complexos: Karl Larenz e Josef Esser. Assim, esta coluna surge também como uma questão de utilidade pública (já que considero a obra desses autores como obrigatórias em qualquer curso de Teoria do Direito ou de hermenêutica jurídica). Importante registrar que, evidentemente, não tenho aqui nenhuma pretensão de completude e esgotamento da obra desses autores. Apresento apenas um singelo guia de leitura que pode ser útil para aqueles que ainda não conhecem a obra de tais autores ou que, conhecendo, não se debruçaram a fundo em suas propostas teóricas.
Começo com o mais conhecido e divulgado dos dois: Karl Larenz.
Pelo menos dois traços característicos marcaram o pensamento de Larenz: filosoficamente, seu trabalho se alinha ao neo-hegelianismo, de onde decorrem suas noções de Estado e sistema; politicamente, é preciso observar que, em um primeiro momento, sua obra apresenta traços marcadamente nacionais-socialistas (Larenz chegou a ser um dos principais teóricos do regime). Porém, no pós-guerra, sua obra se concentrou em elementos metodológicos do Direito. Sua obra influenciou diretamente os sistemas de Walter Wilburg e Canaris. Importante advertir, com Losano, que com essas afirmações não queremos dizer que as concepções mais recentes sobre metodologia e sistema sejam de inspiração nacional socialista[2]. Apenas entendemos ser importante advertir para esse dado absolutamente fundamental da biografia do autor.
Do ponto de vista da sua teoria produzida no segundo pós-guerra, é ponto fundamental mencionar sua proposta de distinção entre jus e lex (Direito e Lei). Essa é uma operação comum entre os teóricos do Direito na Alemanha do pós-guerra. Como afirma Lenio Streck, o equacionamento da tensão provocada pela edição da lei fundamental e sua compatibilização com o Direito vigente ao tempo de sua promulgação reivindicava “a invocação de argumentos que permitissem ao tribunal recorrer a critérios decisórios que se encontravam fora da estrutura rígida da legalidade. A referência a valores aparece, assim, como mecanismo de abertura de uma legalidade extremamente fechada”[3].
Assim que, para este autor, a decisão de uma questão judicial que exige um juízo de valoração — e, ao final, todas elas exigem, porque o Direito é concebido aqui como uma ordem positiva de valores — pode até ser praeter legem, mas será, necessariamente, intra jus. Vale dizer, na decisão orientada por valores o juiz pode ir para além daquilo enunciado pelo texto da lei. Porém, sua decisão, que positiva valores, será de acordo com o Direito[4].
Esse traço decorre diretamente de seu neo-hegelianismo. Com efeito, como nos lembra Losano, essa distinção entre jus e lex não coloca Larenz nos trilhos de um jusnaturalismo. Na verdade, Larenz aposta em um sentido de justiça existente em cada individuo, a partir de algo que ele nomeia “consciência jurídica”. Assim, “a justiça não é nem a norma fundamental do ordenamento, nem o axioma do qual deduzir outras normas, mas um ideal que o direito positivo tenta realizar, conseguindo-o apenas em parte”[5].
Nessa medida, Larenz propõe um método para resolver o problema das lacunas apresentando três casos com instrumentos para preenchê-las. No primeiro, a lacuna é “patente” e pode ser colmatada por analogia; no segundo, a lacuna é “oculta” e deve ser integrada por meio de uma redução teleológica; no terceiro, que é uma extensão do segundo, a lacuna pode ser coberta por meio de uma extensão teleológica.
Nos dois últimos casos, o intérprete não deve ficar restrito ao texto da lei mas, sem desconsiderá-lo — vale dizer, de forma imanente — ele deve aperfeiçoá-lo de modo que atinja a finalidade nele contida e amparada pelo Direito. Se esse aperfeiçoamento implica restrição do conteúdo, têm-se uma redução teleológica; se implica extensão de conteúdos, têm-se uma extensão teleológica[6].
Todavia, Larenz cerca essa atividade de cautelas colocando-a na esteira de uma Rechtsfortbildung (que pode ser traduzida, imperfeitamente, como “formação do Direito”), entendida como uma atividade extra legem intra jus.
Outro ponto importante da proposta teórica de Larenz — e que se apresenta como elemento central da jurisprudência dos valores — é a aposta na chamada “ponderação de bens” como forma de solução de lacunas do Direito em virtude da "colisão de normas". Ponderação de bens, interesses, valores ou, como se passou a falar a partir de Robert Alexy, fórmula da ponderação, são expressões que se constituem e se consolidam a partir da jurisprudência dos interesses e da Abwägung de que falava Philipp Heck. Em Larenz e nos demais partidários da jurisprudência dos valores que tratam do problema da ponderação, essa questão diz respeito a uma ponderação da colisão normativa em caso orientada por uma pauta valorativa[7].
Por fim, importante transcrever a seguinte passagem de Losano: “A expressão intra ius demonstra que o direito é ainda entendido como um conjunto coerente (um sistema em sentido clássico, talvez), em cujo interior pode-se, porém, ir além do direito positivo, ou seja, além do direito estatuído segundo os procedimentos constitucionais”[8].
Josef Esser é certamente um dos juristas mais importantes da Teoria do Direito alemã do segundo pós-guerra. Embora esteja atrelado à jurisprudência dos valores, sua obra difere sensivelmente da de Larenz e de Canaris. O ponto em comum com esses autores aparece na preocupação com a questão das lacunas — ou da indeterminação do Direito — e o problema da chamada criação judicial do Direito.
Como vimos anteriormente, o problema da criação judicial do Direito se apresenta como objeto de análise dos juristas desde o movimento do Direito Livre e de sua vertente “moderada” que é a jurisprudência dos interesses. A diferença é que, no caso da jurisprudência dos valores, esse momento da “criação judicial do Direito” deve ser guiado por determinados requisitos objetivos que são os valores culturais de uma sociedade. O modo de tornar “objetivo” o conhecimento desses valores é que varia de autor para autor. Em Larenz, como vimos, há uma ênfase na “consciência jurídica” dos indivíduos; Esser, por sua vez, procura estabelecer esses valores a partir da própria sociedade e de seu contexto de vivências.
Em seus trabalhos, o autor procura desenvolver uma espécie de “jurisprudência comparativa”, colocando lado à lado as experiências interpretativas que se manifestam em países de common law e aqueles que se operam em países de civil law. No livro Princípio e norma na elaboração judicial do Direito Privado, Esser pratica esse tipo de metodologia procurando desenvolver — a partir da distinção anglo-saxã entre principle e rule — uma distinção entre princípio e norma. Com isso, o jusfilósofo se aproxima de uma abordagem que confere ênfase à figura do juiz procurando, todavia, explorar meios de contenção dessa mesma atividade. Numa passagem extremamente percuciente, Losano afirma o seguinte sobre a obra de Esser: “Visto que Esser se move num ambiente de direito continental, a ligação entre o mundo dos princípios e as normas do ordenamento jurídico deve, de qualquer maneira, passar através de um elemento legislativo, que para Esser é constituído pelas cláusulas gerais”[9].
A importância de Esser deve ser referida também em face de sua peculiar preocupação em apontar para a insuficiência de um pensamento jurídico autossuficiente apontando para a necessidade de se constituir um saber jurídico a partir de um diálogo com a filosofia, a sociologia e demais ciências sociais. Além disso, seu inegável tino comparativista, abrira o estudo do Direito para um diálogo produtivo entre as tradições que compõem o Direito ocidental[10].
[1] As repercussões mais amplas das questões tratadas neste texto podem ser encontradas no livro que escrevi em coautoria com Georges Abboud e Henrique Garbellini Carnio: Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.
[2] Cf. Mario Losano. Sistema e Estrutura no Direito. Vol. 2. São Paulo: Martins Fontes, p., 219.
[3] Lenio Luiz Streck. Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 48.
[4] Cf. Karl Larenz. Metodologia da Ciência do Direito. cit., n. 2, p. 172 e segs.
[5] Mario Losano. Sistema e Estrutura no Direito. n. 4, p., 255.
[6] Cf. Karl Larenz. Metodologia da Ciência do Direito. cit., Parte V, letra “c”, pp. 555 e segs.
[7] Cf. Karl Larenz. Metodologia da Ciência do Direito. cit., Parte V, n3, pp. 574 e segs.
[8] Mario Losano. Sistema e Estrutura no Direito. n. 4, p., 256.
[9] Mario Losano. Sistema e estrutura no Direito. cit., n. VI.5., p. 260.
[10] Cf. Josef Esser. Principio y Norma en la Elaboración Jurisprudencial del Derecho Privado. Barcelona: Bosch, 1961, passim; Josef Esser. Precomprensione e scelta del metodo nel processo di individuazione del diritto. Camerino: Edizione Scientifiche Italiane, 1983, passim.
Por Rafael Tomaz de Oliveira
Fonte: Conjur
Começo com o mais conhecido e divulgado dos dois: Karl Larenz.
Pelo menos dois traços característicos marcaram o pensamento de Larenz: filosoficamente, seu trabalho se alinha ao neo-hegelianismo, de onde decorrem suas noções de Estado e sistema; politicamente, é preciso observar que, em um primeiro momento, sua obra apresenta traços marcadamente nacionais-socialistas (Larenz chegou a ser um dos principais teóricos do regime). Porém, no pós-guerra, sua obra se concentrou em elementos metodológicos do Direito. Sua obra influenciou diretamente os sistemas de Walter Wilburg e Canaris. Importante advertir, com Losano, que com essas afirmações não queremos dizer que as concepções mais recentes sobre metodologia e sistema sejam de inspiração nacional socialista[2]. Apenas entendemos ser importante advertir para esse dado absolutamente fundamental da biografia do autor.
Do ponto de vista da sua teoria produzida no segundo pós-guerra, é ponto fundamental mencionar sua proposta de distinção entre jus e lex (Direito e Lei). Essa é uma operação comum entre os teóricos do Direito na Alemanha do pós-guerra. Como afirma Lenio Streck, o equacionamento da tensão provocada pela edição da lei fundamental e sua compatibilização com o Direito vigente ao tempo de sua promulgação reivindicava “a invocação de argumentos que permitissem ao tribunal recorrer a critérios decisórios que se encontravam fora da estrutura rígida da legalidade. A referência a valores aparece, assim, como mecanismo de abertura de uma legalidade extremamente fechada”[3].
Assim que, para este autor, a decisão de uma questão judicial que exige um juízo de valoração — e, ao final, todas elas exigem, porque o Direito é concebido aqui como uma ordem positiva de valores — pode até ser praeter legem, mas será, necessariamente, intra jus. Vale dizer, na decisão orientada por valores o juiz pode ir para além daquilo enunciado pelo texto da lei. Porém, sua decisão, que positiva valores, será de acordo com o Direito[4].
Esse traço decorre diretamente de seu neo-hegelianismo. Com efeito, como nos lembra Losano, essa distinção entre jus e lex não coloca Larenz nos trilhos de um jusnaturalismo. Na verdade, Larenz aposta em um sentido de justiça existente em cada individuo, a partir de algo que ele nomeia “consciência jurídica”. Assim, “a justiça não é nem a norma fundamental do ordenamento, nem o axioma do qual deduzir outras normas, mas um ideal que o direito positivo tenta realizar, conseguindo-o apenas em parte”[5].
Nessa medida, Larenz propõe um método para resolver o problema das lacunas apresentando três casos com instrumentos para preenchê-las. No primeiro, a lacuna é “patente” e pode ser colmatada por analogia; no segundo, a lacuna é “oculta” e deve ser integrada por meio de uma redução teleológica; no terceiro, que é uma extensão do segundo, a lacuna pode ser coberta por meio de uma extensão teleológica.
Nos dois últimos casos, o intérprete não deve ficar restrito ao texto da lei mas, sem desconsiderá-lo — vale dizer, de forma imanente — ele deve aperfeiçoá-lo de modo que atinja a finalidade nele contida e amparada pelo Direito. Se esse aperfeiçoamento implica restrição do conteúdo, têm-se uma redução teleológica; se implica extensão de conteúdos, têm-se uma extensão teleológica[6].
Todavia, Larenz cerca essa atividade de cautelas colocando-a na esteira de uma Rechtsfortbildung (que pode ser traduzida, imperfeitamente, como “formação do Direito”), entendida como uma atividade extra legem intra jus.
Outro ponto importante da proposta teórica de Larenz — e que se apresenta como elemento central da jurisprudência dos valores — é a aposta na chamada “ponderação de bens” como forma de solução de lacunas do Direito em virtude da "colisão de normas". Ponderação de bens, interesses, valores ou, como se passou a falar a partir de Robert Alexy, fórmula da ponderação, são expressões que se constituem e se consolidam a partir da jurisprudência dos interesses e da Abwägung de que falava Philipp Heck. Em Larenz e nos demais partidários da jurisprudência dos valores que tratam do problema da ponderação, essa questão diz respeito a uma ponderação da colisão normativa em caso orientada por uma pauta valorativa[7].
Por fim, importante transcrever a seguinte passagem de Losano: “A expressão intra ius demonstra que o direito é ainda entendido como um conjunto coerente (um sistema em sentido clássico, talvez), em cujo interior pode-se, porém, ir além do direito positivo, ou seja, além do direito estatuído segundo os procedimentos constitucionais”[8].
Josef Esser é certamente um dos juristas mais importantes da Teoria do Direito alemã do segundo pós-guerra. Embora esteja atrelado à jurisprudência dos valores, sua obra difere sensivelmente da de Larenz e de Canaris. O ponto em comum com esses autores aparece na preocupação com a questão das lacunas — ou da indeterminação do Direito — e o problema da chamada criação judicial do Direito.
Como vimos anteriormente, o problema da criação judicial do Direito se apresenta como objeto de análise dos juristas desde o movimento do Direito Livre e de sua vertente “moderada” que é a jurisprudência dos interesses. A diferença é que, no caso da jurisprudência dos valores, esse momento da “criação judicial do Direito” deve ser guiado por determinados requisitos objetivos que são os valores culturais de uma sociedade. O modo de tornar “objetivo” o conhecimento desses valores é que varia de autor para autor. Em Larenz, como vimos, há uma ênfase na “consciência jurídica” dos indivíduos; Esser, por sua vez, procura estabelecer esses valores a partir da própria sociedade e de seu contexto de vivências.
Em seus trabalhos, o autor procura desenvolver uma espécie de “jurisprudência comparativa”, colocando lado à lado as experiências interpretativas que se manifestam em países de common law e aqueles que se operam em países de civil law. No livro Princípio e norma na elaboração judicial do Direito Privado, Esser pratica esse tipo de metodologia procurando desenvolver — a partir da distinção anglo-saxã entre principle e rule — uma distinção entre princípio e norma. Com isso, o jusfilósofo se aproxima de uma abordagem que confere ênfase à figura do juiz procurando, todavia, explorar meios de contenção dessa mesma atividade. Numa passagem extremamente percuciente, Losano afirma o seguinte sobre a obra de Esser: “Visto que Esser se move num ambiente de direito continental, a ligação entre o mundo dos princípios e as normas do ordenamento jurídico deve, de qualquer maneira, passar através de um elemento legislativo, que para Esser é constituído pelas cláusulas gerais”[9].
A importância de Esser deve ser referida também em face de sua peculiar preocupação em apontar para a insuficiência de um pensamento jurídico autossuficiente apontando para a necessidade de se constituir um saber jurídico a partir de um diálogo com a filosofia, a sociologia e demais ciências sociais. Além disso, seu inegável tino comparativista, abrira o estudo do Direito para um diálogo produtivo entre as tradições que compõem o Direito ocidental[10].
[1] As repercussões mais amplas das questões tratadas neste texto podem ser encontradas no livro que escrevi em coautoria com Georges Abboud e Henrique Garbellini Carnio: Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.
[2] Cf. Mario Losano. Sistema e Estrutura no Direito. Vol. 2. São Paulo: Martins Fontes, p., 219.
[3] Lenio Luiz Streck. Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 48.
[4] Cf. Karl Larenz. Metodologia da Ciência do Direito. cit., n. 2, p. 172 e segs.
[5] Mario Losano. Sistema e Estrutura no Direito. n. 4, p., 255.
[6] Cf. Karl Larenz. Metodologia da Ciência do Direito. cit., Parte V, letra “c”, pp. 555 e segs.
[7] Cf. Karl Larenz. Metodologia da Ciência do Direito. cit., Parte V, n3, pp. 574 e segs.
[8] Mario Losano. Sistema e Estrutura no Direito. n. 4, p., 256.
[9] Mario Losano. Sistema e estrutura no Direito. cit., n. VI.5., p. 260.
[10] Cf. Josef Esser. Principio y Norma en la Elaboración Jurisprudencial del Derecho Privado. Barcelona: Bosch, 1961, passim; Josef Esser. Precomprensione e scelta del metodo nel processo di individuazione del diritto. Camerino: Edizione Scientifiche Italiane, 1983, passim.
Por Rafael Tomaz de Oliveira
Fonte: Conjur