goo.gl/fa2VkG | Tramita no Congresso Nacional o projeto de Lei do Senado Federal 500/2015 de iniciativa do senador José Antônio Medeiros (PSD-MT) que determina, em ações de improbidade administrativa e ações penais por crimes contra a administração pública e o sistema financeiro, que o réu comprove a origem lícita dos recursos utilizados no pagamento de honorários advocatícios.
De início, antes de se expor os fundamentos pelos quais se entende que a proposição, da forma como está, veicula potencial e explícita violação à Constituição, externa-se preocupação com as constantes e reiteradas tentativas de violação aos direitos fundamentais do cidadão advindas, ora do Poder Executivo (Estado-administração), ora do Poder Legislativo (Estado-legislação), ora do Poder Judiciário (Estado-Justiça), sob os aplausos da própria população, muitas vezes desconhecedora de que seus direitos estão sendo retirados, não à sorrelfa, não à socapa, mas em plena luz do dia.
Sob o pretexto de se “combater o crime e a impunidade”, ao invés de se aparelhar a administração com os necessários recursos materiais, mecanismos técnicos e de gestão de pessoas, prefere-se, com uma proposição, como a que está em discussão, desvirilizar garantias constitucionais mínimas, mas essenciais, ao pleno exercício do direito de defesa transformando, assim, o advogado, em braço investigador do Estado, além de impor ao réu, nas ações cíveis e penais em referência, mais um ônus: o de provar que os recursos utilizados para pagamento dos honorários do seu defensor têm “origem lícita”.
E nem se diga que a proposição veicula inaceitável violação ao princípio constitucional da isonomia (art. 5°, caput, da CF) e preconceito descabido com a atividade advocatícia, função essencial à Justiça (art. 133 do Texto), cujos honorários ostentam natureza alimentar (Súmula Vinculante 47), e que seria a única das profissões liberais e ver pender sobre si a Espada de Dâmocles acerca do recebimento de seus haveres em decorrência de regular contrato de prestação de serviços, cuja adimplência estaria vinculada à comprovação da licitude do patrimônio do cliente.
Decerto, verifica-se que a proposição viola o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5°, LVII), pois a partir da natureza do crime, ou da infração, impõe ao réu o ônus de provar a licitude da origem dos recursos utilizados para pagamento dos honorários advocatícios de seu patrono. De uma tacada, a proposição, antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, agrava a situação do réu, fazendo-se presumir ilícitos os valores pagos ao seu defensor como se ele, o causídico, pudesse saber, de antemão, que seu cliente praticou os atos ilícitos em relação aos quais está sendo produzida a defesa. Doutro lado, estabelece que a culpa, se for o caso, deve ser formada no âmbito do devido processo legal a partir do entendimento apriorístico segundo o qual o réu deve ser considerado, e tratado, não culpado pelo (s) fato (s) que lhe (s) é (s) atribuído (s) na peça acusatória.
Uma das consequências do respeito e aplicação do referido princípio é a de dizer que, abstraindo-se das hipóteses de aplicação de medidas assecuratórias (artigos 125 a 144-A, do CPP), obviamente mitigadoras, o estado de não culpabilidade somente pode ser definitivamente debelado a partir do momento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ou cível, conforme o caso, impedindo-se, assim, à luz das mais caras garantias históricas e fundamentais do direito à liberdade, que o réu seja tratado como culpado antes deste fatídico momento. Ora, a perda de bens ou valores equivalentes ao produto ou proveito do crime, nos termos do artigo 91, §1º, do Código Penal Brasileiro, constitui-se em um dos efeitos genéricos da condenação, que devem ser já decretados pelo Juiz, presentes os requisitos legais, mas cujos efeitos demandam superveniência do trânsito em julgado da condenação. O contrário disso, como quer o projeto, é tratar o réu já como culpado no âmbito do processo penal sem que haja culpa formada, presumindo-se que todo e qualquer patrimônio que possua decorra de atividades ilícitas e que, portanto, não pode ser utilizado para promoção do exercício de defesa, salvo se ele, o réu, provar que seus recursos são lícitos.
Trata-se, pois, de capitis diminutio intolerável à luz do texto constitucional, posto que subverte a razão essencial da garantia, ora em discussão, além de retirar dos órgãos de persecução, nos âmbitos cível e criminal, a depender da natureza da infração, o tradicional e histórico dever de provar a culpa daquele a quem se aponta a prática de ilícitos. Doravante, caso o projeto seja aprovado, ao Ministério Público bastará denunciar e acusar, sem qualquer prova, fiando-se na malfadada presunção de culpabilidade imposta. A perversa inversão é evidente e, como tal, deve ser rejeitada, especialmente em razão dos efeitos supra denunciados, a menos que se admita que o processo penal brasileiro, e o cível, por extensão, nas ações de improbidade administrativa, retorne ao sistema inquisitorial medieval onde o réu não é sujeito, mas, sim, objeto da prova.
Além disso, o projeto ofende a garantia constitucional ao direito de ampla defesa (art. 5°, LV), uma vez que mitiga-lhe um dos elementos mais comezinhos verificado a partir da bipartição admitida pela doutrina segundo a qual o direito de defesa se subdivide, basicamente, em dois: a) o direito à autodefesa; e, b) o direito à defesa técnica. A autodefesa é o direito do réu se defender, por si, das imputações atribuídas, seja perante o próprio órgão acusador, seja perante a autoridade judiciária competente. É direito fundamental, humano, que remonta à origem dos povos civilizados, a faculdade de ouvir as considerações do réu, caso ele queira falar, a respeito dos fatos que lhes são imputados. Diferentemente é a vertente técnica do exercício do direito defesa, esta confiada, pela Lei, e pela Constituição, aos detentores de capacidade postulatória que nada mais fazem do que fazer a voz da cidadania chegar aos ouvidos dos tribunais, mediante conhecimento científico adquirido na universidade, e cumpridos determinados requisitos legais, conforme previsto no artigo 8º, da Lei 8.906/1994.
O Projeto de Lei, ora em discussão, ao presumir que os recursos para pagamento dos honorários advocatícios, nas ações de que fala, têm origem ilícita, evidencia, em primeiro lugar, que todo e qualquer causídico não poderá aceitar outorga mandato não sem antes esclarecer, de preferência por escrito, com o cliente a origem dos recursos, obrigando-se, assim, à violação dos direitos à intimidade e vida privada, garantidos pelo artigo 5º, inciso X, da Constituição. Em nosso entendimento, não chega a tanto o vínculo de confiança decorrente do contrato de prestação de serviços advocatícios. É dizer: a ninguém pode ser exigido quebra de seus sigilos bancário, fiscal e telefônico com vistas a comprovar, para fins de eventual contratação de advogado, a licitude dos valores. A rigor, o advogado deve confiar em seu cliente e nas informações que lhes são prestadas.
Ademais, na hipótese do cidadão concordar com tais quebras, apenas para contratar o seu defensor, não há garantia alguma de que em juízo a licitude do patrimônio será reconhecida, situação que, como já dito, faz pender a incerteza, tanto para o réu, como para seu patrono, a respeito da legalidade dos pagamentos efetuados e pendentes. Esta preocupação com a “licitude do patrimônio”, é bom que se diga, não é compartilhada pelo próprio Estado vis a vis do conhecido princípio de direito tributário pecunia non olet estabelecido no art. 118 do CTN, que permite a tributação do produto de atividades ilícitas (STF HC 77530/RS; STJ HC 88565/RR).
Por fim, a proposição, padece de vício de inconstitucionalidade material por ofensa ao art. 133 da Constituição posto que impede o livre exercício da atividade advocatícia ao criar, constrangimento na relação cliente-advogado, ao imputar ao réu o ônus de comprovar, no âmbito do processo a licitude da origem dos recursos utilizados para pagar seu defensor. Ao ter tolhido o exercício do direito de defesa técnica, através de profissional da advocacia de sua escolha, face aos obstáculos criados pela proposição, o réu, nesta situação, se veria na contingência de ter que contar com os préstimos da D. Defensoria Pública (art. 134 da CF/88) que, como se sabe, tem requisitos legais para comprovação do estado de miserabilidade jurídica que justifique sua intervenção.
É possível, então, que o réu não cumpra os requisitos para intervenção da Defensoria Pública, nem consiga profissional habilitado para lhe defender, gerando, neste caso, hipótese de perplexa situação de réu indefeso, a justificar a nomeação de um Defensor Dativo. A presunção de ilicitude dos recursos, assim, obrigaria o contribuinte a pagar pela defesa do réu, ainda que ostente condições econômicas para pagar os honorários de seu advogado. A partir do momento em que a proposição dificulta a presença do advogado no processo, submetendo o réu a socorrer-se de figuras impróprias para a situação em que se encontra (Defensoria Pública ou Defensoria Dativa – que, observe-se, compõe-se de Advogados, mas não da escolha do réu), é possível visualizar-se, de pronto, ofensa ao princípio da essencialidade da advocacia na Administração da Justiça, na forma do artigo 133 do Texto Magno.
A proposição menospreza a presença do advogado criando-lhe obstáculos e constrangimentos. Ofende ao direito de defesa técnica e inverte injustamente os papéis no processo penal, e nas ações de improbidade administrativa, ao exigir do réu a prova da sua inocência. Deste modo, a proposição, por estes fundamentos, deve ser considerada inconstitucional e, como tal, ser rejeitada nas instâncias de decisão do Poder Legislativo e Executivo, sob pena de futura e certa pronúncia de nulidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Por Ibaneis Rocha e Edvaldo Nilo de Almeida
Fonte: Conjur