goo.gl/taCIXR | Para que serve a investigação criminal e o processo penal? Qual a finalidade do sistema de justiça criminal? Os questionamentos são abertos; logo, as respostas deveriam ser as mais variadas possíveis. E, de fato, são mesmo plurais. Contudo, uma permanência é sempre possível observar na maior parte das argumentações em torno desse tema: a busca pela verdade.
Muitos ainda estão à procura de “a verdade”. Operam com o sistema jurídico de instrução – investigação e processo penal - em um cenário místico, supondo poderes sobrenaturais para a reconstrução do fato ocorrido na sua plenitude e com chancela de “absoluta certeza”. Esquecem, no entanto, que o objeto inicial é uma notícia crime; ou seja: algo que se diz a respeito de um suposto crime. Frise-se: nem da certeza de um crime se parte.
Segundo Maurício Stegemann Dieter, “destaca-se aqui a fome investigativa do estilo inquisitorial. O inquisidor, a partir de meras e infundadas suspeitas, tem o poder de desencadear uma insaciável busca pela verdade oculta, utilizando-se de um vasto repertório para a devassa da intimidade, lugar do segredo a ser desvelado”. E, assim, “seu apetite o faz trabalhar em um marco paranóide”.[1]
A jurisprudência e os manuais, em geral, insistem numa pretensa distinção entre “verdade real, material ou substancial” e “verdade processual, formal ou procedimental”. Sustentam, de maneira irresponsável, que ao processo civil bastaria uma verdade produzida nos limites do procedimento em contraditório enquanto que ao processo penal incumbiria a descoberta da verdade dos fatos. E finalizam a “explicação” - que nada explica, apenas confunde! - com a tese de que na seara criminal a gravidade da respectiva sanção, centrada na privação de liberdade, exigiria a produção da “realidade absoluta dos fatos” - seja lá o que isso signifique.
Ocorre que o sujeito não percebe ou não quer perceber que a investigação criminal, assim como o processo penal, não pode selar compromisso com “a verdade”. Não é este o seu objetivo. Mesmo porque “‘A’ verdade, no singular, será sempre incompleta, necessariamente contingente e dependente de referenciais (tempo, espaço e lugar)”.[2]
Explica o professor Jacinto Coutinho que, com “o predomínio da Filosofia da Linguagem sobre a Filosofia da Consciência”, é de se “admitir – em definitivo – a impossibilidade de, a partir de tal relação (sujeito-objeto) chegar-se em uma verdade Toda (e única) e sim tão-só em uma parte dela. A parte (daí a parcialidade que move dita relação, sempre), todavia, não é o Todo e, portanto, é de outra coisa que se trata”.[3]
De fato, o discurso de verdade real, apesar de manifestamente falacioso, foi e continua sendo utilizado na tentativa de legitimar abusos e justificar arbitrariedades. Alinha-se perfeitamente com uma lógica eficientista e cruel do tipo “os fins justificam os meios”. Não seria demais lembrar que a tortura, enquanto meio para a obtenção da confissão, sempre esteve ligada à noção de busca da verdade. Outras tantas ilegalidades – ainda hoje – são praticadas em seu nome.
Em que pese a firme resistência teórica que tem sido proposta por importantes estudiosos do sistema penal,[4] o mito da “verdade real” ainda sobrevive e informa (ou melhor: deforma!) a maioria das instruções criminais.
É necessário, contudo, superar a ambição inquisitorial de busca da verdade. Imperioso reconhecer, com Salah Hassan Khaled Junior,[5] que “a verdade será na melhor das hipóteses contingencial”. E deve ser tida como “uma verdade analogicamente produzida sob a forma narrativa, o que conforma um critério de verdade enquanto (re)produção analógica do passado e não enquanto correspondência – absoluta ou relativa – em relação a um evento que pertence a um tempo escoado.”
Com efeito, a impossibilidade de certeza na avaliação dos fatos não pode ser (nunca) desprezada! Pelo contrário, indispensável que algumas coisas ainda sejam ditas e assimiladas pelos diversos operadores do sistema...
i) o reconhecimento da óbvia parcialidade no processo de conhecimento humano deve nos conduzir à observância, cada vez maior, da cláusula do due processo of law em toda a instrução criminal (inclusive na etapa preliminar), com irrestrito zelo pelos direitos e garantias fundamentais. Se conhecer o todo é algo do impossível, as regras do jogo são mais do que indispensáveis!
ii) Nada é tão óbvio que dispense a instrução probatória. Afinal de contas, a justiça criminal não pode ser vista como uma atividade clarividente. Até mesmo aquelas “certezas”, que parecem óbvias, necessitam de apuração prévia e posterior submissão ao contraditório pleno e ampla defesa. Isso inclui o auto de prisão em flagrante. É preciso colocar as coisas em seus devidos lugares. A prisão em flagrante é apenas uma espécie de notícia crime. Logo não afasta a necessidade de investigação criminal tampouco de processo penal. Sequer detém a capacidade de inverter a presunção de inocência em culpa. Imaginar o contrário significaria atuar num marco autoritário e paranoide — aquele tipo de coisa que não combina com a noção mais singela de Estado Democrático de Direito.
[1] DIETER, Maurício Stegmann. O Sistema de Investigação Criminal Brasileiro e o Novo Código de Processo Penal que se Anuncia. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de (Org.). O Novo Processo Penal à Luz da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 48.
[2] ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas Memórias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal em Xeque. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 1.
[3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema Inquisitório e o Processo em “O Mercador de Veneza”. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.); Direito e Psicanálise: Interseções a partir de “O Mercador de Veneza”, de William Shakespeare. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 155.
[4] Poderia citar (e homenagear), dentre outros, os nomes de Alexandre Morais da Rosa, Antônio Pedro Melchior, Aury Lopes Júnior, Elmir Duclerc, Fauzi Hassan Choukr, Geraldo Prado, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Nereu Giacomolli e Rubens Casara.
[5] KHALED JR, Salah H. . A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 591.
Por Leonardo Marcondes Machado
Fonte: Conjur
Muitos ainda estão à procura de “a verdade”. Operam com o sistema jurídico de instrução – investigação e processo penal - em um cenário místico, supondo poderes sobrenaturais para a reconstrução do fato ocorrido na sua plenitude e com chancela de “absoluta certeza”. Esquecem, no entanto, que o objeto inicial é uma notícia crime; ou seja: algo que se diz a respeito de um suposto crime. Frise-se: nem da certeza de um crime se parte.
Segundo Maurício Stegemann Dieter, “destaca-se aqui a fome investigativa do estilo inquisitorial. O inquisidor, a partir de meras e infundadas suspeitas, tem o poder de desencadear uma insaciável busca pela verdade oculta, utilizando-se de um vasto repertório para a devassa da intimidade, lugar do segredo a ser desvelado”. E, assim, “seu apetite o faz trabalhar em um marco paranóide”.[1]
A jurisprudência e os manuais, em geral, insistem numa pretensa distinção entre “verdade real, material ou substancial” e “verdade processual, formal ou procedimental”. Sustentam, de maneira irresponsável, que ao processo civil bastaria uma verdade produzida nos limites do procedimento em contraditório enquanto que ao processo penal incumbiria a descoberta da verdade dos fatos. E finalizam a “explicação” - que nada explica, apenas confunde! - com a tese de que na seara criminal a gravidade da respectiva sanção, centrada na privação de liberdade, exigiria a produção da “realidade absoluta dos fatos” - seja lá o que isso signifique.
Ocorre que o sujeito não percebe ou não quer perceber que a investigação criminal, assim como o processo penal, não pode selar compromisso com “a verdade”. Não é este o seu objetivo. Mesmo porque “‘A’ verdade, no singular, será sempre incompleta, necessariamente contingente e dependente de referenciais (tempo, espaço e lugar)”.[2]
Explica o professor Jacinto Coutinho que, com “o predomínio da Filosofia da Linguagem sobre a Filosofia da Consciência”, é de se “admitir – em definitivo – a impossibilidade de, a partir de tal relação (sujeito-objeto) chegar-se em uma verdade Toda (e única) e sim tão-só em uma parte dela. A parte (daí a parcialidade que move dita relação, sempre), todavia, não é o Todo e, portanto, é de outra coisa que se trata”.[3]
De fato, o discurso de verdade real, apesar de manifestamente falacioso, foi e continua sendo utilizado na tentativa de legitimar abusos e justificar arbitrariedades. Alinha-se perfeitamente com uma lógica eficientista e cruel do tipo “os fins justificam os meios”. Não seria demais lembrar que a tortura, enquanto meio para a obtenção da confissão, sempre esteve ligada à noção de busca da verdade. Outras tantas ilegalidades – ainda hoje – são praticadas em seu nome.
Em que pese a firme resistência teórica que tem sido proposta por importantes estudiosos do sistema penal,[4] o mito da “verdade real” ainda sobrevive e informa (ou melhor: deforma!) a maioria das instruções criminais.
É necessário, contudo, superar a ambição inquisitorial de busca da verdade. Imperioso reconhecer, com Salah Hassan Khaled Junior,[5] que “a verdade será na melhor das hipóteses contingencial”. E deve ser tida como “uma verdade analogicamente produzida sob a forma narrativa, o que conforma um critério de verdade enquanto (re)produção analógica do passado e não enquanto correspondência – absoluta ou relativa – em relação a um evento que pertence a um tempo escoado.”
Com efeito, a impossibilidade de certeza na avaliação dos fatos não pode ser (nunca) desprezada! Pelo contrário, indispensável que algumas coisas ainda sejam ditas e assimiladas pelos diversos operadores do sistema...
i) o reconhecimento da óbvia parcialidade no processo de conhecimento humano deve nos conduzir à observância, cada vez maior, da cláusula do due processo of law em toda a instrução criminal (inclusive na etapa preliminar), com irrestrito zelo pelos direitos e garantias fundamentais. Se conhecer o todo é algo do impossível, as regras do jogo são mais do que indispensáveis!
ii) Nada é tão óbvio que dispense a instrução probatória. Afinal de contas, a justiça criminal não pode ser vista como uma atividade clarividente. Até mesmo aquelas “certezas”, que parecem óbvias, necessitam de apuração prévia e posterior submissão ao contraditório pleno e ampla defesa. Isso inclui o auto de prisão em flagrante. É preciso colocar as coisas em seus devidos lugares. A prisão em flagrante é apenas uma espécie de notícia crime. Logo não afasta a necessidade de investigação criminal tampouco de processo penal. Sequer detém a capacidade de inverter a presunção de inocência em culpa. Imaginar o contrário significaria atuar num marco autoritário e paranoide — aquele tipo de coisa que não combina com a noção mais singela de Estado Democrático de Direito.
[1] DIETER, Maurício Stegmann. O Sistema de Investigação Criminal Brasileiro e o Novo Código de Processo Penal que se Anuncia. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de (Org.). O Novo Processo Penal à Luz da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 48.
[2] ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas Memórias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal em Xeque. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 1.
[3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema Inquisitório e o Processo em “O Mercador de Veneza”. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.); Direito e Psicanálise: Interseções a partir de “O Mercador de Veneza”, de William Shakespeare. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 155.
[4] Poderia citar (e homenagear), dentre outros, os nomes de Alexandre Morais da Rosa, Antônio Pedro Melchior, Aury Lopes Júnior, Elmir Duclerc, Fauzi Hassan Choukr, Geraldo Prado, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Nereu Giacomolli e Rubens Casara.
[5] KHALED JR, Salah H. . A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 591.
Por Leonardo Marcondes Machado
Fonte: Conjur