goo.gl/UF2N6I | Uma das questões mais delicadas em matéria de jurisdição constitucional diz respeito à estabilidade de sua jurisprudência, à capacidade do Tribunal firmar entendimento sobre determinada questão e sustentar essa posição.
A preocupação com a estabilidade da linha jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal se liga com a clareza com que se passa à população orientações interpretativas sobre as mais delicadas situações práticas. Entretanto, a dimensão de divulgação de seus entendimentos jurisdicionais é apenas um aspecto que marca a boa relação que deve existir entre Tribunal e jurisdicionado. Outro aspecto essencial nessa equação está na autoridade do que se decide, a noção tacitamente difundida de que a decisão tomada “é para valer”, de que ela representa genuinamente a posição pacífica do seu plenário, mesmo quando é o resultado de maioria mínima de 5 a 6.
Ao contrário, se é comum a alteração jurisprudencial daquilo que é decidido, se a interpretação de determinado dispositivo constitucional não se revela como algo sólido e estruturado, o Tribunal acaba se colocando em situação de fragilidade institucional. É que a cada decisão tomada, nasce e se desenvolve uma expectativa socialmente relevante de reversão daquela decisão.
Essa expectativa de alteração da linha de decisão recém alcançada não só retira autoridade do Tribunal como renova sua jurisdição sobre a matéria, criando assim uma espécie de espiral de instabilidade que faz com que um julgamento nunca seja o último o que, por sua vez, também incentiva o uso e abuso de nosso anacrônico sistema de recursos internos na própria jurisdição constitucional. Finalmente, juízes e tribunais se sentem menos engajados à aceitar e a obedecer os julgamentos.
Certamente, não se está diante de tema de repercussão meramente procedimental, embora a questão do número alto de processos na pauta do plenário também se explique por essa circunstância. A questão é que essa instabilidade de jurisprudência também pode revelar uma faceta sombria da imagem do Supremo Tribunal Federal. Afinal, deve o Tribunal ser precursor? Deve ser ele pioneiro? Sua missão institucional é necessariamente a construção de uma jurisprudência experimental?
Em recente artigo, o Professor Ives Gandra da Silva Martins lança aspecto importante nas discussões filosóficas em matéria de jurisdição constitucional[1]. Ao contrário da posição majoritária, o Professor Ives Gandra propõe que a função do Supremo Tribunal Federal é menos garantir justiça e mais assegurar a própria estabilidade das instituições. Consectário natural dessa visão é que o Tribunal erra ao menosprezar essa tarefa em benefício de se alcançar posições arrojadas em matéria de interpretação constitucional.
Dizer que o papel da jurisdição constitucional é garantir a estabilidade das instituições não é uma afirmação tangencial. Assumir esse compromisso, é inverter o olhar que costumamos projetar sobre o Tribunal de maneira a retirar de seu núcleo essencial temas como os direitos fundamentais e a busca pela justiça social. Não que tais princípios ou garantias institucionais não sejam relevantes e também façam parte das atribuições corriqueiras da jurisdição constitucional. Mas certamente não seriam o fim, o objetivo final a conduzir a construção da própria imagem do Tribunal. Afirmaria até, na linha do que também sustentou o Professor Ives Gandra, que a própria organização republicana da Corte, a partir do Decreto nº 848, de 11.10.1890, não teve qualquer relação com a defesa das liberdades públicas ou mesmo com a responsabilidade de defesa da Constituição que viria a ser promulgada em 1891.
Esse traço de filosofia constitucional reforça a importância com a preocupação com a estabilidade da jurisprudência da Corte, personalizada na dinâmico do plenário pela figura do decano.
A mudança de posicionamento pode também ser considerada um avanço quando é entendida como uma adaptação aos novos tempos. Assim, é natural ou mesmo recomendável que a alteração em sua composição gere variações no entendimento anteriormente defendido não só porque o Tribunal é oxigenado com novas mentalidades, mas também porque novas personalidades ingressam na Corte alterando – por assim dizer – a geopolítica decisória do plenário.
É o caso vivido pelo STF entre os anos 2002 e 2006 com a indicação de novos sete ministros[2]. Temas como prisão do depositário infiel[3], constitucionalidade da lei dos crimes hediondos[4], depósito prévio para recurso administrativo[5], dentre vários outros, passaram por alterações fundamentais de entendimento.
Tais alterações de jurisprudência representam a própria dinâmica histórica do Tribunal e, muito embora possam ser discutidos sob a perspectiva da estabilidade das decisões, sugerem uma reflexão mais voltada aos pressupostos meritórios do novo entendimento.
Há, entretanto, situações em que o STF altera radicalmente o seu entendimento em curto espaço de tempo não porque o último julgamento represente a maturidade da tese, mas porque no primeiro julgamento o tema não foi examinado com base em todos os aspectos relevantes ou mesmo quando o plenário tenha se omitido em considerar dado relevante para o deslinde da causa.
A mudança repentina do entendimento causa surpresa, gera insegurança e cria a sensação de que o Tribunal está sempre disposto a inverter as suas premissas quando analisa caso de repercussão.
Caso bastante emblemático ocorreu em matéria de competência para o julgamento de ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente do trabalho. Em um primeiro momento, quando do julgamento do RE 438.639 em 9 de março de 2005, o tribunal havia assentado o entendimento, interpretando o art. 109, I, da CF. Pouco mais de três meses depois, julgando o CC 7.204, o STF inverteu o seu posicionamento para passar a determinar a competência da Justiça do Trabalho nesse tipo de ação. Aparentemente, não se conhecia o nível de capilaridade da Justiça do Trabalho, o que levou alguns Ministros a entenderem, em um primeiro momento, que a justiça comum daria mais condições de respeito ao princípio do acesso à Justiça.
Outro caso curioso ocorreu no julgamento da ADI 4.029, em 7 de março de 2012, quando o Tribunal, examinando a constitucionalidade da Lei 11.516/2007, originada da MP 366/2007 (criação do Instituto Chico Mendes), destacou que era condição de regularidade formal da aprovação da MP a emissão de parecer pela comissão mista no Congresso (art. 62, § 9º, da CF). No dia seguinte, o mesmo STF acolheu questão de ordem do Advogado-Geral da União para alterar o dispositivo do acórdão de maneira a modular a declaração de inconstitucionalidade do artigo 5º, caput, e artigo 6º, parágrafos 1º e 2º, da Resolução 1/2002. Havia risco de se criar um caos institucional diante da possibilidade de declaração em massa da inconstitucionalidade de todas as MPs aprovados com base naquelas regras.
É de se destacar também o julgamento das ADIs 4.425 e 4.357, ocorrido em 24 de outubro de 2013, por meio do qual se declarara a inconstitucionalidade de dispositivos da Emenda Constitucional 62/2009 que criava novo regime de pagamento dos precatórios. Em exame de questão de ordem concluída em 25 de março de 2015, o plenário do Tribunal adotou o voto do ministro Luiz Fux no sentido de dar uma “sobrevida” à emenda declarada inconstitucional por cinco exercício financeiros, a partir de janeiro de 2016. Embora não tivesse havido alteração formal de entendimento nesses últimos dois casos, não há dúvida que o fundamento da inconstitucionalidade acabou por se enfraquecer, trazendo dúvidas em relação à real opinião do Tribunal.
Está-se agora em plena discussão acerca do posicionamento da Corte acerca da interpretação do princípio da presunção de inocência e a possibilidade de encarceramento após condenação em segunda instância. O HC 126.292 (relator ministro Teori Zavascki, julgado em 17 de fevereiro de 2016) já representou alteração da posição do Tribunal em relação ao julgamento do HC 84.078 (relator ministro Eros Grau, julgado em 5 de fevereiro de 2009), que, por sua vez, também era acórdão que inovava em relação a precedentes anteriores. Hoje, em virtude da repercussão social, o Tribunal se vê novamente na contingência de novamente analisar a questão nos autos das ADCs 43 e 44, com o indicativo de posicionamento divergentes de alguns de seus membros.
É certo que, em vários casos, existem razões práticas que indicam variações abruptas de posicionamento ou preocupações institucionais que levam o Tribunal a soluções heterodoxas. Por outro lado, é verdade também que, mesmo diante de arsenal de instrumentos que foram criados para dar o maior nível de informações e dados aos ministros (dentre os quais, o amicus curiae e a audiência pública), há julgamentos que ainda se desenvolvem sem considerar pontos fundamentais, de maneira que, posteriormente, quando tais questões novamente são submetidas ao crivo do Tribunal, seus ministros demonstram hesitação em manter o primeiro julgamento. A tese do experimentalismo no Judiciário pode sugerir a abertura necessária para boas decisões em casos complexos. Entretanto, a experiência tem demonstrado que trabalhar com essa perspectiva como premissa de atuação da jurisdição constitucional pode ser uma das causas da perigosa instabilidade da jurisprudência do STF.
[1] MARTINS, Ives Gandra da Silva. Repensando o Supremo. In: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI242584,71043-Repensando+o+Supremo
[2] A saber, o Ministro Gilmar Mendes nomeado por meio do Decreto de 27.05.2002 e posse em 20.06.2002; o Ministro Cezar Peluso nomeado por meio do Decreto de 05.06.2003 e posse em 25.06.2003; o Ministro Ayres Britto nomeado por meio do Decreto de 05.06.2003 e posse em 25.06.2003; o Ministro Joaquim Barbosa nomeado por meio do Decreto de 05.06.2003 e posse em 25.06.2003; o Ministro Eros Grau nomeado em 15.06.2004 e posse em 30.06.2004; o Ministro Ricardo Lewandowski nomeado por meio do Decreto de 16.02.2006 e posse em 16.03.2006; e a Ministra Cármen Lúcia por meio do Decreto de 25.05.2006 e posse em 21.06.2006 (com a aposentadoria, respectivamente, dos Ministros Néri da Silveira, Sydney Sanches, Ilmar Galvão, Moreira Alves, Maurício Corrêa, Carlos Velloso e Nelson Jobim).
[3] A evolução do julgamento do HC nº 72.131 (rel. para o acórdão Min. Moreira Alves, julgado em 23.11.1995) para o RE nº 349.703 (rel. para o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 03.12.2008);
[4] A evolução do julgamento do HC nº 69.657 (relator para o acórdão Min. Francisco Rezek, julgado em 18.02.1992) para o HC nº 82.959 (relator Min. Gilmar Mendes, julgado em 23.02.2006);
[5] A evolução do julgamento do RE nº 210.246 (relator Min. Nelson Jobim, julgado em 12.11.1997) para o RE nº 388.359 (relator Min. Marco Aurélio, julgado em 28.03.2007) e para a Súmula Vinculante nº 21;
Por Rodrigo de Oliveira Kaufmann
Fonte: Conjur