goo.gl/GulKOb | Com certa frequência, parcela da doutrina processual tem salientado que o Código de Processo Civil instituiu em um sistema-de-precedentes. Há até assertivas de que o próprio paradigma teórico do direito processual brasileiro teria alterado a partir do tal “sistema” de precedentes, ao menos, para um sistema misto/híbrido entre a Commom Law e a Civil Law.
Nesse ponto, já podemos colocar a primeira pergunta da coluna: o que a doutrina processual entende por sistema? Trata-se de equiparação de sistema a ordenamento jurídico? Mario Losano pode ajudar a entender esse conceito.[1] Daremos de barato que, ao falarmos de “sistema de precedentes”, por sistema devemos compreender a ideia de um todo coerente e harmônico de normas. Ou seja, uma teoria do ordenamento que necessita da ideia de sistema para lhe possibilitar adequado tratamento para a relação entre as normas jurídicas. Isto é, não são sinônimos. Logo, o que o CPC de 2015 tem a ver com um novo “sistema”? Nada.
No entanto, embora a dureza de nossa argumentação, a finalidade não é antagonizar com quem defenda o contrário. Nosso papel é apontar os acertos e as incongruências ou inconstitucionalidades das leituras do CPC-2015. E tentar trazer os adversários epistêmicos para o nosso lado. Desse modo, interessa-nos conferir uma aplicação conforme a Constituição do artigo 927 do CPC e evitar que a afirmação o-ncpc-criou-um-sistema-de-precedentes seja transformado em um enunciado performativo e encubra sérios problemas judiciais contemporâneos.
Alguns questionamentos mínimos: O “sistema de precedentes” passa a ser o paradigma de aplicação do processo civil? O processo penal também sofre essa revolução paradigmática? Processo do trabalho? Administrativo? Tributário? Esses questionamentos se impõem porque: qual seria a justificativa de se imaginar que apenas para o direito processual civil teria havido uma mudança paradigmática? Um “sistema” regionalizado? Afinal, se estamos falando de um sistema de precedentes, este não pode se limitar a apenas um segmento do ordenamento jurídico. Outra coisa: que “sistema” é esse em que a aplicação do CPC (artigo 15) é subsidiário e complementar para alguns (nem todos) os ramos do direito? Que “novo sistema” é esse em que o próprio CPC elenca, ao lado dos precedentes, coisas como súmulas vinculantes, súmulas do STJ, etc?
Nossa principal objeção ao uso performático do sistema-de-precedentes é que no Brasil, diversas vezes, sua utilização esconde o ovo da serpente. Parcela do pensamento processual civil entende que é possível resolver o problema de insegurança jurídica — que é, frise-se, um problema essencialmente qualitativo na prestação jurisdicional, conforme explicamos nos nossos Comentários ao CPC (Saraiva, 2016)[2] — mediante a criação de instrumentos de vinculação decisória, o que faz parecer que essa doutrina ignora que a própria Constituição e a legislação que lhe é conforme vinculam efetivamente a atuação do Judiciário antes de tudo. E não o contrário.
Para citar apenas alguns desses instrumentos de vinculação decisória, mencionamos: súmula vinculante, atribuição de efeito vinculante para jurisprudência dos tribunais superiores, objetivação do controle difuso de constitucionalidade e até mesmo objetivação do julgamento da lide pelo STJ e pelo STF. Há até quem defenda que o CPC-2015 teria proporcionado a mutação constitucional do termo causa previsto nos artigos 102 e 105 da CF. Seria uma interpretação-da-Constituição-a-luz-do-novo-CPC?
No Brasil, o apego ao efeito vinculante virou um fetiche. Atualmente, já se atribuiu à súmula vinculante status superior ao da legislação e, com o CPC, estende-se essa “supremacia” à grande parcela das decisões dos tribunais superiores, ainda que historicamente haja uma confirmação de atuação, voluntarista, ativista e discricionária em boa (ou má) parte das manifestações dos tribunais superiores. Ou seja: a doutrina sofre, vê, mas se nega a enxergar o busílis da questão.
No common law, o precedente não se sobrepõe à legislação. De acordo com Hart, “no nosso sistema, o costume e o precedente estão subordinados à legislação, dado que as regras consuetudinárias e de common law podem ser privadas do seu estatuto jurídico por uma lei parlamentar [statute]”.[3]
O grande esteio dessas reformas, para essa parcela doutrinária, estaria assentada na justificativa de um stare decisis brasileiro. Ocorre que não é um Código ou qualquer outra lei que criará ou modificará nosso sistema, fazendo surgir o sistema-de-precedentes ou o próprio common law a partir da mera promulgação da lei. Ademais, no Brasil a introdução do sistema-de-precedentes é consectária do pensamento de que o stare decisis seria a solução ideal para remediar o problema do grande número de litígios do Brasil, ignorando a própria complexidade que é inerente ao stare decisis e seu respectivo sistema genuíno de precedentes.
No afã de implantar o tal “sistema”, suprimimos direitos. E aumentamos o poder do Judiciário. Simples assim. A raiz disso tudo talvez esteja no que se entende por precedente. Ao que estamos lendo por aí, estão fazendo uma simplista equiparação do genuíno precedente do common law à jurisprudência vinculante pindoramense. Ora, o fato de o artigo 927 do CPC elencar diversos provimentos que passaram a ser vinculantes, não pode nos induzir a leitura equivocada de imaginar que a súmula, o acórdão que julga o IRDR ou oriundo de recurso (especial ou extraordinário repetitivo) são equiparáveis à categoria do genuíno precedente do common law.
Para tal desiderato, cremos ser fundamental a correta noção sobre o que é efetivamente um precedente genuíno do common law e a necessária compreensão do que é um provimento vinculante por disposição legal, por exemplo, súmula vinculante, acórdão paradigma etc. O sistema genuíno de precedentes inglês é criador de complexidade. O que o CPC-2015 faz é criar provimentos judiciais vinculantes cuja função é reduzir a complexidade judicial para enfrentar o fenômeno brasileiro da litigiosidade repetitiva. Respostas antes das perguntas. Mas, não podemos equiparar o artigo 927 a um sistema de precedentes, sob pena de termos uma aplicação desvirtuada do CPC.
Os provimentos colocados no artigo 927 devem ser lidos como provimentos judiciais legalmente vinculantes, ou seja, textos normativos redutores de complexidade para o enfrentamento das nossas lides repetitivas. Só isso. Nada de common law aí. Não avançaremos se trocarmos o mito da completude da lei por decisões de tribunais superiores. Todo poder emana do povo e não do Judiciário. No passado, acreditava-se que a lei conteria a infinidade de solução dos casos. Atualmente, essa mística foi transportada e depositada nas decisões dos tribunais superiores. Isto é, há uma ingênua aposta de que o STJ e o STF pode(ria)m criar super decisões que, por si só, trariam a solução pronta (norma) para deslindar uma multiplicidade de casos.
O antigo juiz boca-fria-da-lei parece substituído por um juiz-boca-da-súmula ou ainda juiz-boca-de-qualquer-provimento-vinculante-dos-tribunais-superiores. É incrível como a comunidade jurídica caiu nessa armadilha. Ora, temos a certeza de que nós, juristas, podemos mais do que isto. Qualquer desses modelos de juízes é uma volta ao passado. Aliás, esse é outro risco do sistema-de-precedentes ao modo brasileiro, que parece ignorar ou antipatizar com o caso concreto em benefício do julgamento em abstrato de teses. A própria afirmativa de que tribunais superiores julgam teses (tão bem criticada por Alexandre Bahia) merece maior reflexão e seus defensores deveriam, no mínimo, dizer em que democracias os tribunais superiores se apresentam como julgadores de teses independentemente do caso concreto.
Imaginar uma lei, um precedente ou uma decisão vinculante contendo a norma pronta em si para resolver diversos casos consiste em crença intolerável por uma boa teoria do direito (por todos, Fr. Müller). A norma decisória não existe por si só porque precisa ser produzida em cada processo individual de decisão jurídica. Não há norma em abstrato, ou seja, ela nunca é ante casum.
O mecanismo de decisão por precedentes é natural e funcionalmente de caráter hermenêutico em razão de dois aspectos principais. O primeiro é porque a decisão por precedentes não se articula com textos pré-definidos, vale salientar: o precedente, e mais especificamente a ratio decidendi, não pode ser capturado e limitado por um texto, súmula etc, sob risco de deixar de ser ratio decidendi. Comuniquemos a boa nova: O direito não cabe no precedente. O segundo aspecto é a necessária individualização do caso a ser decidida por um precedente que não abarca previamente uma questão fática, o que torna necessária a demonstração da singularidade de cada caso, para que se evidencie a possibilidade ou não de submetê-lo à solução por precedentes. Ou isso ou paremos de dizer “o direito é uma questão de caso”.
Portanto, não há aplicação mecânica ou subsuntiva na solução dos casos mediante a utilização do precedente judicial. Esse é a vã esperança dos defensores do “sistema”. Engraçado: a lei é interpretável... mas parece que o precedente (sic) já contém todas as interpretações.
Ora, o precedente genuíno no common law nunca nasce desde-sempre precedente. E nem é feito em workshop ou jornadas (caso dos enunciados). Se ele tiver coerência, integridade e racionalidade suficientes para torná-lo ponto de partida para discussão de teses jurídicas propostas pelas partes, e, ao mesmo tempo, ele se tornar padrão decisório para os tribunais e demais instâncias do Judiciário, então é que ele poderá com o tempo vir a se tornar precedente.
Ou seja, no common law, o que confere essa dimensão de precedente à decisão do tribunal superior é sua aceitação primeiro pelas partes e, em seguida, pelas instâncias inferiores do Judiciário. Daí ele ser dotado de uma aura democrática que o precedente à brasileira não possui, uma vez que os provimentos vinculantes do CPC já nascem — e isso é uma jaboticaba — dotados de efeito vinculante, independentemente da qualidade e da consistência da conclusão de suas decisões. Essa realidade é encoberta e escamoteada quando partimos nossas reflexões a partir da premissa o CPC-2015 criou um sistema-de-precedentes. Falta só alguém sugerir que o legislativo elabore precedentes...!
O CPC-2015 elenca determinados provimentos judiciais, que independentemente da sua qualidade, consistência e integridade, passarão a ser vinculantes para o enfrentamento de nossa litigiosidade repetitiva. Mas não se trata de sistema-precedentes. O que não significa que o artigo 927 não possa contribuir para resolução de diversas mazelas judiciais contemporâneas. Contudo, para que essa contribuição não seja feita às custas das garantias constitucionais do jurisdicionado, o CPC-2105 deve ser lido conforme à Constituição — não o contrário! — e para tanto, precisamos parar de iniciar sua leitura como se fosse um dado a instituição do sistema de precedentes no Brasil.
Argumentar com precedentes é mais complexo do que a utilização de provimentos judiciais vinculantes tal qual estabelece o artigo 927. Dentre diversas razões, podemos destacar o fato de que a ratio decidendi, ou seja, aquilo que efetivamente vincula em um precedente, é determinado pelos tribunais inferiores e não pelo próprio Tribunal que decidiu a questão. Na realidade, “é importante perceber que são os juízes em casos posteriores que de fato determinam a ratio decidendi em casos pretéritos”.[4]
Nesse contexto, quando estabelecemos um paradigma judicial em que os provimentos judiciais passam a ser o ponto de partida e de chegada para a solução das questões jurídicas, afastamos a centralidade legislativa do horizonte decisório. E quanto mais decresce nosso apreço pela legislação — constitucionalmente produzida — o mesmo desapreço se estende à Constituição Federal. O texto constitucional é deslocado do horizonte decisório e substituído por provimentos judiciais do próprio Poder Judiciário. Provimentos judiciais muitas vezes advindos de uma forma discricionária de produção de decisões. Quando argumentamos que o CPC criou o sistema-de-precedentes fica parecendo que o andar de cima do Judiciário brasileiro sempre decide bem e que o problema é como vincular/amarrar o andar de baixo.
Ocorre que não é raro nos depararmos com decisões judiciais, produzidas por tribunais superiores, que desconsideram o texto legal (sem realizar controle de constitucionalidade) e o próprio texto constitucional. Exemplo mais recente é a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 126.292/SP[5] — que – não obstante o texto constitucional afirmar trânsito em julgado — o STF permitiu o início do cumprimento da pena mesmo na pendência do julgamento de recursos excepcionais. Aliás, como demonstrado na coluna Senso Incomum da semana passada, o caso que gerou o HC 126292 é um caso frágil, “bichado” como alertou um leitor da ConJur. Se, como disse o ministro Barroso, temos que levar em conta a origem do caso usado como “precedente”, como fazer futuras aplicações? Fazer isso com um caso como o de Itapecerica da Serra em que sequer houve recurso do MP? E no qual o próprio relator ministro Teori disse que o Tribunal de Justiça de São Paulo errara em não conceder a liberdade para recorrer? É assim? É esse o “sistema de precedentes” brasileiro?
Nosso efeito vinculante não tem precedentes no mundo (sem trocadilho). Estamos inquietos com a propalada fundação (ou revelação) do sistema-de-precedentes. Conferimos poderes para Tribunais Superiores sem que antes eles tenham adquirido uma legitimidade para tanto, estruturando uma jurisprudência minimamente íntegra, estável e coerente, para utilizarmos a nomenclatura do artigo 926 do CPC. Neste ponto, há um risco de caminharmos para estabelecimento de juízes legisladores e, por consequência, para uma Juristocracia.
Portanto, os provimentos judiciais vinculantes devem ser fortemente fiscalizados pela doutrina e sua aplicação judicial deve lançar mão das modalidades de controle de constitucionalidade. O risco da subsunção é grande. O “precedente” (não pode) virar plenipotenciário.
Diante da fragmentação em que se encontra nosso direito, com a fragilização dia a dia da legislação, estranhamos que setores do processo tenham aderido ao caminho mais fácil: deixar que o Judiciário nos dê as respostas antes mesmo de fazermos as perguntas por intermédio de nossos casos concretos. O custo disso? Já estamos vendo. Judiciário parece querer cumprir do CPC só aquilo que lhe interessa. Por acaso, a parte que mais agrada não é a da fundamentação, da coerência e integridade, do fim do livre convencimento. Não. A parte mais aprazível é uma coisa que não existe: o sistema de precedentes. Mas nós podemos mais do que isso. Podemos comunicar que estamos diante tão-somente de um pragmático conjunto de provimentos. Se os aplicarmos como “respostas antecipadas”, voltaremos à jurisprudência dos conceitos. E estaremos dando um tiro no pé. Judiciário não faz lei. Cumpre. Todo poder emana do povo e não da jurisprudência.
Por isso, preocupamo-nos quando lemos que o ministro Barroso disse que “A tese jurídica vai ser a grande arte da nova advocacia”. Teses feitas por quem? Pelo judiciário, é claro. Interessante: O ministro Barroso se comporta como o ministro Eros Grau — na advocacia e na sala de aula, eram críticos do intervencionismo judicial. No judiciário, realistas jurídicos (o direito é aquilo que o judiciário diz que é). Nada como um dia após o outro. Aliás, já lemos também na doutrina que, por ter a lei vaguezas e ambiguidades, justifica-se a formação de precedentes e, uma vez estes postos, nenhum juiz abaixo do STJ e STF pode não os aplicar. Incrível, não? Uma mistura de common law à brasileira com subsunção. Pergunta-se: mas, esses “precedentes” não são formados por palavras? E palavras não são interpretáveis? “Precedentes” (afinal, o que é isto”) são imunes à interpretação? Seria verdadeiro dizer que a força do precedente à brasileira independe de seu conteúdo? De novo: o legislador morreu? Vamos alterar a CF: “Todo poder emana do precedente”.
Aliás, não precisamos de um sistema de precedentes, ainda que seja numa versão abrasileirada. Do mesmo modo, não precisamos da muleta teórica do sistema-de-precedentes para concluir que o CPC-2015 concedeu maior importância à jurisprudência, ou ainda, que é possível aplicar analogicamente regras processuais do RE/REsp repetitivos para IRDR e vice-versa. Não é preciso o álibi teórico do sistema-de-precedentes ou uma teoria-geral-dos-litígios-repetitivos para tornar possível a aplicação sistemática das regras do processo. Essa aplicação sistemática sempre foi possível, para não falarmos da hermenêutica: além disso, a boa e velha analogia desde sempre já nos possibilitava esse caminho.
Temos a certeza de que a doutrina pode mais do que ser caudatária de conceitos-sem-coisas ou de teses jurídicas construídas pelo judiciário, colocando a lei e a própria Constituição em segundo plano.
[1] Sistema e Estrutura no Direito, v. I e II, SP: Martins Fontes, 2010.
[2] Organizado por Streck, L.L., Nunes, D., Cunha, L. e Freire, A. O comentário ao 927 é de Abboud e Streck.
[3] Cf. Hart, Herbert. O conceito de direito, 5.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 112.
[4] Cf. Gary Slapper e David Kelly. O Sistema Jurídico Inglês, RJ: Forense, 2011, n. 3.6.5, p. 112.
[5] Ver Lenio Streck e Bruno Torrano. Juízos morais do STJ e STF fazem retroagir data do trânsito em julgado.
Por Lenio Luiz Streck e Georges Abboud
Fonte: Conjur
Nesse ponto, já podemos colocar a primeira pergunta da coluna: o que a doutrina processual entende por sistema? Trata-se de equiparação de sistema a ordenamento jurídico? Mario Losano pode ajudar a entender esse conceito.[1] Daremos de barato que, ao falarmos de “sistema de precedentes”, por sistema devemos compreender a ideia de um todo coerente e harmônico de normas. Ou seja, uma teoria do ordenamento que necessita da ideia de sistema para lhe possibilitar adequado tratamento para a relação entre as normas jurídicas. Isto é, não são sinônimos. Logo, o que o CPC de 2015 tem a ver com um novo “sistema”? Nada.
No entanto, embora a dureza de nossa argumentação, a finalidade não é antagonizar com quem defenda o contrário. Nosso papel é apontar os acertos e as incongruências ou inconstitucionalidades das leituras do CPC-2015. E tentar trazer os adversários epistêmicos para o nosso lado. Desse modo, interessa-nos conferir uma aplicação conforme a Constituição do artigo 927 do CPC e evitar que a afirmação o-ncpc-criou-um-sistema-de-precedentes seja transformado em um enunciado performativo e encubra sérios problemas judiciais contemporâneos.
Alguns questionamentos mínimos: O “sistema de precedentes” passa a ser o paradigma de aplicação do processo civil? O processo penal também sofre essa revolução paradigmática? Processo do trabalho? Administrativo? Tributário? Esses questionamentos se impõem porque: qual seria a justificativa de se imaginar que apenas para o direito processual civil teria havido uma mudança paradigmática? Um “sistema” regionalizado? Afinal, se estamos falando de um sistema de precedentes, este não pode se limitar a apenas um segmento do ordenamento jurídico. Outra coisa: que “sistema” é esse em que a aplicação do CPC (artigo 15) é subsidiário e complementar para alguns (nem todos) os ramos do direito? Que “novo sistema” é esse em que o próprio CPC elenca, ao lado dos precedentes, coisas como súmulas vinculantes, súmulas do STJ, etc?
Nossa principal objeção ao uso performático do sistema-de-precedentes é que no Brasil, diversas vezes, sua utilização esconde o ovo da serpente. Parcela do pensamento processual civil entende que é possível resolver o problema de insegurança jurídica — que é, frise-se, um problema essencialmente qualitativo na prestação jurisdicional, conforme explicamos nos nossos Comentários ao CPC (Saraiva, 2016)[2] — mediante a criação de instrumentos de vinculação decisória, o que faz parecer que essa doutrina ignora que a própria Constituição e a legislação que lhe é conforme vinculam efetivamente a atuação do Judiciário antes de tudo. E não o contrário.
Para citar apenas alguns desses instrumentos de vinculação decisória, mencionamos: súmula vinculante, atribuição de efeito vinculante para jurisprudência dos tribunais superiores, objetivação do controle difuso de constitucionalidade e até mesmo objetivação do julgamento da lide pelo STJ e pelo STF. Há até quem defenda que o CPC-2015 teria proporcionado a mutação constitucional do termo causa previsto nos artigos 102 e 105 da CF. Seria uma interpretação-da-Constituição-a-luz-do-novo-CPC?
No Brasil, o apego ao efeito vinculante virou um fetiche. Atualmente, já se atribuiu à súmula vinculante status superior ao da legislação e, com o CPC, estende-se essa “supremacia” à grande parcela das decisões dos tribunais superiores, ainda que historicamente haja uma confirmação de atuação, voluntarista, ativista e discricionária em boa (ou má) parte das manifestações dos tribunais superiores. Ou seja: a doutrina sofre, vê, mas se nega a enxergar o busílis da questão.
No common law, o precedente não se sobrepõe à legislação. De acordo com Hart, “no nosso sistema, o costume e o precedente estão subordinados à legislação, dado que as regras consuetudinárias e de common law podem ser privadas do seu estatuto jurídico por uma lei parlamentar [statute]”.[3]
O grande esteio dessas reformas, para essa parcela doutrinária, estaria assentada na justificativa de um stare decisis brasileiro. Ocorre que não é um Código ou qualquer outra lei que criará ou modificará nosso sistema, fazendo surgir o sistema-de-precedentes ou o próprio common law a partir da mera promulgação da lei. Ademais, no Brasil a introdução do sistema-de-precedentes é consectária do pensamento de que o stare decisis seria a solução ideal para remediar o problema do grande número de litígios do Brasil, ignorando a própria complexidade que é inerente ao stare decisis e seu respectivo sistema genuíno de precedentes.
No afã de implantar o tal “sistema”, suprimimos direitos. E aumentamos o poder do Judiciário. Simples assim. A raiz disso tudo talvez esteja no que se entende por precedente. Ao que estamos lendo por aí, estão fazendo uma simplista equiparação do genuíno precedente do common law à jurisprudência vinculante pindoramense. Ora, o fato de o artigo 927 do CPC elencar diversos provimentos que passaram a ser vinculantes, não pode nos induzir a leitura equivocada de imaginar que a súmula, o acórdão que julga o IRDR ou oriundo de recurso (especial ou extraordinário repetitivo) são equiparáveis à categoria do genuíno precedente do common law.
Para tal desiderato, cremos ser fundamental a correta noção sobre o que é efetivamente um precedente genuíno do common law e a necessária compreensão do que é um provimento vinculante por disposição legal, por exemplo, súmula vinculante, acórdão paradigma etc. O sistema genuíno de precedentes inglês é criador de complexidade. O que o CPC-2015 faz é criar provimentos judiciais vinculantes cuja função é reduzir a complexidade judicial para enfrentar o fenômeno brasileiro da litigiosidade repetitiva. Respostas antes das perguntas. Mas, não podemos equiparar o artigo 927 a um sistema de precedentes, sob pena de termos uma aplicação desvirtuada do CPC.
Os provimentos colocados no artigo 927 devem ser lidos como provimentos judiciais legalmente vinculantes, ou seja, textos normativos redutores de complexidade para o enfrentamento das nossas lides repetitivas. Só isso. Nada de common law aí. Não avançaremos se trocarmos o mito da completude da lei por decisões de tribunais superiores. Todo poder emana do povo e não do Judiciário. No passado, acreditava-se que a lei conteria a infinidade de solução dos casos. Atualmente, essa mística foi transportada e depositada nas decisões dos tribunais superiores. Isto é, há uma ingênua aposta de que o STJ e o STF pode(ria)m criar super decisões que, por si só, trariam a solução pronta (norma) para deslindar uma multiplicidade de casos.
O antigo juiz boca-fria-da-lei parece substituído por um juiz-boca-da-súmula ou ainda juiz-boca-de-qualquer-provimento-vinculante-dos-tribunais-superiores. É incrível como a comunidade jurídica caiu nessa armadilha. Ora, temos a certeza de que nós, juristas, podemos mais do que isto. Qualquer desses modelos de juízes é uma volta ao passado. Aliás, esse é outro risco do sistema-de-precedentes ao modo brasileiro, que parece ignorar ou antipatizar com o caso concreto em benefício do julgamento em abstrato de teses. A própria afirmativa de que tribunais superiores julgam teses (tão bem criticada por Alexandre Bahia) merece maior reflexão e seus defensores deveriam, no mínimo, dizer em que democracias os tribunais superiores se apresentam como julgadores de teses independentemente do caso concreto.
Imaginar uma lei, um precedente ou uma decisão vinculante contendo a norma pronta em si para resolver diversos casos consiste em crença intolerável por uma boa teoria do direito (por todos, Fr. Müller). A norma decisória não existe por si só porque precisa ser produzida em cada processo individual de decisão jurídica. Não há norma em abstrato, ou seja, ela nunca é ante casum.
O mecanismo de decisão por precedentes é natural e funcionalmente de caráter hermenêutico em razão de dois aspectos principais. O primeiro é porque a decisão por precedentes não se articula com textos pré-definidos, vale salientar: o precedente, e mais especificamente a ratio decidendi, não pode ser capturado e limitado por um texto, súmula etc, sob risco de deixar de ser ratio decidendi. Comuniquemos a boa nova: O direito não cabe no precedente. O segundo aspecto é a necessária individualização do caso a ser decidida por um precedente que não abarca previamente uma questão fática, o que torna necessária a demonstração da singularidade de cada caso, para que se evidencie a possibilidade ou não de submetê-lo à solução por precedentes. Ou isso ou paremos de dizer “o direito é uma questão de caso”.
Portanto, não há aplicação mecânica ou subsuntiva na solução dos casos mediante a utilização do precedente judicial. Esse é a vã esperança dos defensores do “sistema”. Engraçado: a lei é interpretável... mas parece que o precedente (sic) já contém todas as interpretações.
Ora, o precedente genuíno no common law nunca nasce desde-sempre precedente. E nem é feito em workshop ou jornadas (caso dos enunciados). Se ele tiver coerência, integridade e racionalidade suficientes para torná-lo ponto de partida para discussão de teses jurídicas propostas pelas partes, e, ao mesmo tempo, ele se tornar padrão decisório para os tribunais e demais instâncias do Judiciário, então é que ele poderá com o tempo vir a se tornar precedente.
Ou seja, no common law, o que confere essa dimensão de precedente à decisão do tribunal superior é sua aceitação primeiro pelas partes e, em seguida, pelas instâncias inferiores do Judiciário. Daí ele ser dotado de uma aura democrática que o precedente à brasileira não possui, uma vez que os provimentos vinculantes do CPC já nascem — e isso é uma jaboticaba — dotados de efeito vinculante, independentemente da qualidade e da consistência da conclusão de suas decisões. Essa realidade é encoberta e escamoteada quando partimos nossas reflexões a partir da premissa o CPC-2015 criou um sistema-de-precedentes. Falta só alguém sugerir que o legislativo elabore precedentes...!
O CPC-2015 elenca determinados provimentos judiciais, que independentemente da sua qualidade, consistência e integridade, passarão a ser vinculantes para o enfrentamento de nossa litigiosidade repetitiva. Mas não se trata de sistema-precedentes. O que não significa que o artigo 927 não possa contribuir para resolução de diversas mazelas judiciais contemporâneas. Contudo, para que essa contribuição não seja feita às custas das garantias constitucionais do jurisdicionado, o CPC-2105 deve ser lido conforme à Constituição — não o contrário! — e para tanto, precisamos parar de iniciar sua leitura como se fosse um dado a instituição do sistema de precedentes no Brasil.
Argumentar com precedentes é mais complexo do que a utilização de provimentos judiciais vinculantes tal qual estabelece o artigo 927. Dentre diversas razões, podemos destacar o fato de que a ratio decidendi, ou seja, aquilo que efetivamente vincula em um precedente, é determinado pelos tribunais inferiores e não pelo próprio Tribunal que decidiu a questão. Na realidade, “é importante perceber que são os juízes em casos posteriores que de fato determinam a ratio decidendi em casos pretéritos”.[4]
Nesse contexto, quando estabelecemos um paradigma judicial em que os provimentos judiciais passam a ser o ponto de partida e de chegada para a solução das questões jurídicas, afastamos a centralidade legislativa do horizonte decisório. E quanto mais decresce nosso apreço pela legislação — constitucionalmente produzida — o mesmo desapreço se estende à Constituição Federal. O texto constitucional é deslocado do horizonte decisório e substituído por provimentos judiciais do próprio Poder Judiciário. Provimentos judiciais muitas vezes advindos de uma forma discricionária de produção de decisões. Quando argumentamos que o CPC criou o sistema-de-precedentes fica parecendo que o andar de cima do Judiciário brasileiro sempre decide bem e que o problema é como vincular/amarrar o andar de baixo.
Ocorre que não é raro nos depararmos com decisões judiciais, produzidas por tribunais superiores, que desconsideram o texto legal (sem realizar controle de constitucionalidade) e o próprio texto constitucional. Exemplo mais recente é a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 126.292/SP[5] — que – não obstante o texto constitucional afirmar trânsito em julgado — o STF permitiu o início do cumprimento da pena mesmo na pendência do julgamento de recursos excepcionais. Aliás, como demonstrado na coluna Senso Incomum da semana passada, o caso que gerou o HC 126292 é um caso frágil, “bichado” como alertou um leitor da ConJur. Se, como disse o ministro Barroso, temos que levar em conta a origem do caso usado como “precedente”, como fazer futuras aplicações? Fazer isso com um caso como o de Itapecerica da Serra em que sequer houve recurso do MP? E no qual o próprio relator ministro Teori disse que o Tribunal de Justiça de São Paulo errara em não conceder a liberdade para recorrer? É assim? É esse o “sistema de precedentes” brasileiro?
Nosso efeito vinculante não tem precedentes no mundo (sem trocadilho). Estamos inquietos com a propalada fundação (ou revelação) do sistema-de-precedentes. Conferimos poderes para Tribunais Superiores sem que antes eles tenham adquirido uma legitimidade para tanto, estruturando uma jurisprudência minimamente íntegra, estável e coerente, para utilizarmos a nomenclatura do artigo 926 do CPC. Neste ponto, há um risco de caminharmos para estabelecimento de juízes legisladores e, por consequência, para uma Juristocracia.
Portanto, os provimentos judiciais vinculantes devem ser fortemente fiscalizados pela doutrina e sua aplicação judicial deve lançar mão das modalidades de controle de constitucionalidade. O risco da subsunção é grande. O “precedente” (não pode) virar plenipotenciário.
Diante da fragmentação em que se encontra nosso direito, com a fragilização dia a dia da legislação, estranhamos que setores do processo tenham aderido ao caminho mais fácil: deixar que o Judiciário nos dê as respostas antes mesmo de fazermos as perguntas por intermédio de nossos casos concretos. O custo disso? Já estamos vendo. Judiciário parece querer cumprir do CPC só aquilo que lhe interessa. Por acaso, a parte que mais agrada não é a da fundamentação, da coerência e integridade, do fim do livre convencimento. Não. A parte mais aprazível é uma coisa que não existe: o sistema de precedentes. Mas nós podemos mais do que isso. Podemos comunicar que estamos diante tão-somente de um pragmático conjunto de provimentos. Se os aplicarmos como “respostas antecipadas”, voltaremos à jurisprudência dos conceitos. E estaremos dando um tiro no pé. Judiciário não faz lei. Cumpre. Todo poder emana do povo e não da jurisprudência.
Por isso, preocupamo-nos quando lemos que o ministro Barroso disse que “A tese jurídica vai ser a grande arte da nova advocacia”. Teses feitas por quem? Pelo judiciário, é claro. Interessante: O ministro Barroso se comporta como o ministro Eros Grau — na advocacia e na sala de aula, eram críticos do intervencionismo judicial. No judiciário, realistas jurídicos (o direito é aquilo que o judiciário diz que é). Nada como um dia após o outro. Aliás, já lemos também na doutrina que, por ter a lei vaguezas e ambiguidades, justifica-se a formação de precedentes e, uma vez estes postos, nenhum juiz abaixo do STJ e STF pode não os aplicar. Incrível, não? Uma mistura de common law à brasileira com subsunção. Pergunta-se: mas, esses “precedentes” não são formados por palavras? E palavras não são interpretáveis? “Precedentes” (afinal, o que é isto”) são imunes à interpretação? Seria verdadeiro dizer que a força do precedente à brasileira independe de seu conteúdo? De novo: o legislador morreu? Vamos alterar a CF: “Todo poder emana do precedente”.
Aliás, não precisamos de um sistema de precedentes, ainda que seja numa versão abrasileirada. Do mesmo modo, não precisamos da muleta teórica do sistema-de-precedentes para concluir que o CPC-2015 concedeu maior importância à jurisprudência, ou ainda, que é possível aplicar analogicamente regras processuais do RE/REsp repetitivos para IRDR e vice-versa. Não é preciso o álibi teórico do sistema-de-precedentes ou uma teoria-geral-dos-litígios-repetitivos para tornar possível a aplicação sistemática das regras do processo. Essa aplicação sistemática sempre foi possível, para não falarmos da hermenêutica: além disso, a boa e velha analogia desde sempre já nos possibilitava esse caminho.
Temos a certeza de que a doutrina pode mais do que ser caudatária de conceitos-sem-coisas ou de teses jurídicas construídas pelo judiciário, colocando a lei e a própria Constituição em segundo plano.
[1] Sistema e Estrutura no Direito, v. I e II, SP: Martins Fontes, 2010.
[2] Organizado por Streck, L.L., Nunes, D., Cunha, L. e Freire, A. O comentário ao 927 é de Abboud e Streck.
[3] Cf. Hart, Herbert. O conceito de direito, 5.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 112.
[4] Cf. Gary Slapper e David Kelly. O Sistema Jurídico Inglês, RJ: Forense, 2011, n. 3.6.5, p. 112.
[5] Ver Lenio Streck e Bruno Torrano. Juízos morais do STJ e STF fazem retroagir data do trânsito em julgado.
Por Lenio Luiz Streck e Georges Abboud
Fonte: Conjur