goo.gl/SRZhKf | Os professores de Processo Penal cada vez mais são demandados a explicar aos acadêmicos da graduação o que se passa com o Processo Penal. Mais um semestre começa e os desafios se renovam. Isso porque o ensino do Processo Penal era restrito ao ambiente dos Cursos de Direito e, agora, em cada encontro social, desde festas infantis, até churrasco pós futebol, viramos comentadores do melhor modelo de Processo Penal.
O obstáculo inicial é conseguir estabelecer um fio condutor, adequar a comunicação para um auditório que entre em aula, muitas vezes, como uma imagem pré-concebida de que processo penal serve para gerar impunidade. Falar em direitos fundamentais nas primeiras aulas pode ser um pecado mortal, pois o aluno-no-mundo é um aluno com medo, que também sofre com a violência urbana e que confunde direitos fundamentais com tutela da impunidade. Obviamente, até pela imaturidade característica, ele somente se identifica com a vítima e nega completamente o seu eu-selvagem. Ele repete, sem qualquer consciência, o chavão popular da “tolerância zero”, ainda que pratique a tolerância zero com outro, e exija tolerância dez para ele e os seus.
Uma boa tática para iniciar as aulas de graduação é colocar no quadro uma premissa: punir é necessário; punir é civilizatório. Não faremos campanha de coitadismo ou “adote um corrupto e leve pra casa”. Sim, podemos punir. Agora observe a reação e verá olhares de espanto e de surpresa tomando conta do ambiente. Alguns finalmente olham para o professor e até ensaiam um aceno “positivo” com a cabeça. Quebrou-se o gelo e a barreira invisível que existia entre o acadêmico-idealista-alienado e o aluno-na-vida-como-ela-é. Isso é uma estratégia para facilitar o alinhamento grupal e a comunicação. Parafraseando Einstein, uma cabeça que se abre para o conhecimento, não se fecha mais. O problema é abrir essas cabeças. É claro que outros alunos, mais maduros e críticos, podem até desconfiar de que isso é mais um discurso punitivista-datenizado, mas eles verão a continuação que não é disso que se trata e, como já tem "cabeça aberta", não terão dificuldade de compreender onde se quer chegar.
Compreendido que “punir é civilizatório”, passemos para o que é mais relevante e complexo, que são as três perguntas (também feitas por Ferrajoli, que é melhor nem mencionar, porque é um `herege’...): quem punir? O quê punir? Como punir?
Pronto, está aberta a janela da complexidade do Direito Penal, da criminologia e do processo penal. Estão criadas as condições de possibilidade da comunicação. A partir daqui é mais fácil o aluno compreender que podemos e devemos punir, mas dentro das regras do jogo, dentro do devido processo. Que o processo é um caminho necessário (principio da necessidade — Gomez Orbaneja) para chegar na pena ou na não pena e que, para legitimar isso, é crucial respeitar as regras do devido processo, do due process of law, as regras do jogo. Que essas garantias são para ‘eles’, os maus, mas também para o “cidadão de bem”.
Temos insistido de que o Processo Penal como garantia do sujeito (nós, você e os acusados do momento) em face do Estado sofre o ataque de modelos autoritários que pensam o processo penal na junção do que há de conveniente. De um lado a mentalidade autoritária[1] acoplada ao modelo pragmático de adjudicação de sentido, importando da filosofia pragmática anglo-saxã. O mix teórico em que vivemos atualmente impede o ensino de um modelo de Processo Penal[2]. São tantas as perspectivas e abordagens que sequer temos coragem de afirmar a autonomia do campo antes ocupado pelo regime do Processo Penal.
Mais do que isso, estamos assistindo — parafraseando Morin e Prigogine — um “processo penal em busca de valores”, em profunda crise identitária. Parece que cada juiz/tribunal tem o “seu” Código de Processo Penal; que a cada operação policial em que o processo penal é “lavado a jato”, surgem novos limites na elasticidade conceitual e na (extrema) flexibilização de direitos e garantias fundamentais.
Por isso reafirmamos que a escolha democrática da punição merece um Processo Penal de qualidade. O nosso desafio é refinar a abordagem, apontar os paradoxos e demonstrar que do jeito que a coisa está sendo decidida nos tribunais, talvez seja vintage o nosso modo de ensinar, ou seja, de pensar o Processo Penal como limitação do Poder Punitivo[3].
Quem sabe seja necessário adentrar ao campo do processo penal negociado, de seus pressupostos diferenciados para que, então, possamos nos aperceber que o modo de produção de verdades anteriormente existente, a saber: (a) apuração preliminar; (b) acusação; (c) produção probatória; (d) argumentação das partes/jogadores; e (e) decisão fundamentada, tenha se transformado em acordo de vontades sobre o objeto da conduta e a pena aplicada. É o império do pacta sunt servanda, sem sequer adaptar-se aos limites democráticos do contrato.
O perigo de não nos darmos conta do que se passa e das perplexidades decorrentes é o de assumirmos o novo modelo no piloto automático, “como se” as novidades não fossem, no fundo, o nascedouro de um novo/velho modo de pensar. A ideia da coluna Limite Penal nos últimos anos foi a de apontar a responsabilidade de assumir o por quê e desafiar você a refletir.
Dentre os diversos desafios do semestre é o de demonstrar que não podemos compreender o novo Código de Processo Civil como sendo o novo Processo Penal. Por mais que tenhamos impactos do novo CPC no Processo Penal, alguns têm feito uma confusão assustadora. Claro que o novo CPC pode ser aplicado analogicamente, nos termos do artigo 3o, do CPP, mas somente quando houver omissão. Pensar o contrário é confundir os registros — Civil e Penal — com os riscos daí inerentes.
Por isso sublinhamos a importância do reconhecimento de distinções marcantes, especialmente sobre o objeto do Processo Penal, para que tudo não vire negociação irrestrita de Direitos Disponíveis. Marcamos, assim, ampla necessidade de revisão das açodadas práticas que começam a aparecer na lógica processual civil. E bons estudos.
[1]MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[2]MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[3]LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016.
Por Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa
Fonte: Conjur
O obstáculo inicial é conseguir estabelecer um fio condutor, adequar a comunicação para um auditório que entre em aula, muitas vezes, como uma imagem pré-concebida de que processo penal serve para gerar impunidade. Falar em direitos fundamentais nas primeiras aulas pode ser um pecado mortal, pois o aluno-no-mundo é um aluno com medo, que também sofre com a violência urbana e que confunde direitos fundamentais com tutela da impunidade. Obviamente, até pela imaturidade característica, ele somente se identifica com a vítima e nega completamente o seu eu-selvagem. Ele repete, sem qualquer consciência, o chavão popular da “tolerância zero”, ainda que pratique a tolerância zero com outro, e exija tolerância dez para ele e os seus.
Uma boa tática para iniciar as aulas de graduação é colocar no quadro uma premissa: punir é necessário; punir é civilizatório. Não faremos campanha de coitadismo ou “adote um corrupto e leve pra casa”. Sim, podemos punir. Agora observe a reação e verá olhares de espanto e de surpresa tomando conta do ambiente. Alguns finalmente olham para o professor e até ensaiam um aceno “positivo” com a cabeça. Quebrou-se o gelo e a barreira invisível que existia entre o acadêmico-idealista-alienado e o aluno-na-vida-como-ela-é. Isso é uma estratégia para facilitar o alinhamento grupal e a comunicação. Parafraseando Einstein, uma cabeça que se abre para o conhecimento, não se fecha mais. O problema é abrir essas cabeças. É claro que outros alunos, mais maduros e críticos, podem até desconfiar de que isso é mais um discurso punitivista-datenizado, mas eles verão a continuação que não é disso que se trata e, como já tem "cabeça aberta", não terão dificuldade de compreender onde se quer chegar.
Compreendido que “punir é civilizatório”, passemos para o que é mais relevante e complexo, que são as três perguntas (também feitas por Ferrajoli, que é melhor nem mencionar, porque é um `herege’...): quem punir? O quê punir? Como punir?
Pronto, está aberta a janela da complexidade do Direito Penal, da criminologia e do processo penal. Estão criadas as condições de possibilidade da comunicação. A partir daqui é mais fácil o aluno compreender que podemos e devemos punir, mas dentro das regras do jogo, dentro do devido processo. Que o processo é um caminho necessário (principio da necessidade — Gomez Orbaneja) para chegar na pena ou na não pena e que, para legitimar isso, é crucial respeitar as regras do devido processo, do due process of law, as regras do jogo. Que essas garantias são para ‘eles’, os maus, mas também para o “cidadão de bem”.
Temos insistido de que o Processo Penal como garantia do sujeito (nós, você e os acusados do momento) em face do Estado sofre o ataque de modelos autoritários que pensam o processo penal na junção do que há de conveniente. De um lado a mentalidade autoritária[1] acoplada ao modelo pragmático de adjudicação de sentido, importando da filosofia pragmática anglo-saxã. O mix teórico em que vivemos atualmente impede o ensino de um modelo de Processo Penal[2]. São tantas as perspectivas e abordagens que sequer temos coragem de afirmar a autonomia do campo antes ocupado pelo regime do Processo Penal.
Mais do que isso, estamos assistindo — parafraseando Morin e Prigogine — um “processo penal em busca de valores”, em profunda crise identitária. Parece que cada juiz/tribunal tem o “seu” Código de Processo Penal; que a cada operação policial em que o processo penal é “lavado a jato”, surgem novos limites na elasticidade conceitual e na (extrema) flexibilização de direitos e garantias fundamentais.
Por isso reafirmamos que a escolha democrática da punição merece um Processo Penal de qualidade. O nosso desafio é refinar a abordagem, apontar os paradoxos e demonstrar que do jeito que a coisa está sendo decidida nos tribunais, talvez seja vintage o nosso modo de ensinar, ou seja, de pensar o Processo Penal como limitação do Poder Punitivo[3].
Quem sabe seja necessário adentrar ao campo do processo penal negociado, de seus pressupostos diferenciados para que, então, possamos nos aperceber que o modo de produção de verdades anteriormente existente, a saber: (a) apuração preliminar; (b) acusação; (c) produção probatória; (d) argumentação das partes/jogadores; e (e) decisão fundamentada, tenha se transformado em acordo de vontades sobre o objeto da conduta e a pena aplicada. É o império do pacta sunt servanda, sem sequer adaptar-se aos limites democráticos do contrato.
O perigo de não nos darmos conta do que se passa e das perplexidades decorrentes é o de assumirmos o novo modelo no piloto automático, “como se” as novidades não fossem, no fundo, o nascedouro de um novo/velho modo de pensar. A ideia da coluna Limite Penal nos últimos anos foi a de apontar a responsabilidade de assumir o por quê e desafiar você a refletir.
Dentre os diversos desafios do semestre é o de demonstrar que não podemos compreender o novo Código de Processo Civil como sendo o novo Processo Penal. Por mais que tenhamos impactos do novo CPC no Processo Penal, alguns têm feito uma confusão assustadora. Claro que o novo CPC pode ser aplicado analogicamente, nos termos do artigo 3o, do CPP, mas somente quando houver omissão. Pensar o contrário é confundir os registros — Civil e Penal — com os riscos daí inerentes.
Por isso sublinhamos a importância do reconhecimento de distinções marcantes, especialmente sobre o objeto do Processo Penal, para que tudo não vire negociação irrestrita de Direitos Disponíveis. Marcamos, assim, ampla necessidade de revisão das açodadas práticas que começam a aparecer na lógica processual civil. E bons estudos.
[1]MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[2]MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[3]LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016.
Por Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa
Fonte: Conjur