goo.gl/DYxDD5 | “No decision by the Court is ever final if the nation remains unsettled and seriously divided over a constitutional issue.” (Fisher, Louis. Constitutional dialogues: interpretation as political process. Princeton University Press, 1988, p.233).
Nossa história constitucional é marcada por vários episódios de instabilidade institucional, arbítrio estatal e violação de direitos fundamentais. Mesmo com a redemocratização do país, ainda existem inúmeros obstáculos à consolidação de uma cultura constitucional na sociedade brasileira.
É evidente que as instituições têm enorme responsabilidade nessa tarefa. Por isso, assistimos com preocupação a práticas decisórias recentes que têm ignorado os horizontes fixados pela Constituição e as conquistas históricas nela cristalizadas. O mais novo exemplo disso é a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a garantia da presunção de inocência. Pela maioria de 6x5, a corte abandonou seu papel contramajoritário de guardião da Constituição, transformando-se em seu algoz. E pior: no dia do seu 28º aniversário.
Muito já se tem escrito sobre o desacerto da referida decisão. Aqui, aproveitamos o ensejo desse emblemático caso para ressaltar alguns pontos sobre um estilo hermenêutico amplamente difundido na prática jurídica e que, antes de resultar em práticas concretizadoras da Constituição, tem contribuído para a sua deturpação semântica e para uma hipertrofia do Poder Judiciário.
Dessa maneira, concilia-se a pretensão de permanência da constituição com a dinâmica social que lhe é subjacente. tribunais constitucionais e cortes supremas teriam não apenas a legitimidade, mas também o dever de construir “interpretações evolutivas” do texto constitucional. O paradigma da “living constitution” acaba por estimular construções judiciais sobre o sentido e alcance dos preceitos constitucionais. No direito americano, bastaria citar as decisões da Suprema Corte em Brown vs. Board Education (1954) e Roe vs. Wade (1973).
No primeiro caso, a corte, abandonando a doutrina dos “separados, mas iguais”, reconheceu a ilegitimidade das discriminações raciais nas escolas. No segundo, decidiu-se pelo direito ao aborto com fundamento no preceito constitucional que reconhece o direito à privacidade. Dessa maneira, além das reformas constitucionais realizadas pelo legislador democrático, a Constituição também passa por mutações constitucionais, verdadeiras mudanças informais no significado do texto levadas a cabo pelo tribunal.
Embora não se defenda que a constituição seja um documento estático, as transformações de sentido operadas judicialmente devem respeitar os limites semânticos impostos pelo próprio texto constitucional. Assim, as disposições constitucionais apresentam densidades normativas distintas, ou seja, algumas cláusulas possuem um grau de indeterminação e vagueza maior que outras. Por isso, é mais plausível sustentar interpretações evolutivas em relação a disposições constitucionais que falam em “liberdade de expressão”, “igualdade”, “autonomia da vontade”, “livre iniciativa”, dentre outros termos abertos.
Todavia, na decisão do STF sobre a presunção de inocência, ao contrário do que se tem afirmado, não estamos diante de um exemplo de “interpretação evolutiva” da “constituição viva” ou de mutação constitucional. Desnecessário haver maiores esforços interpretativos para perceber que o modelo adotado pela CF/88 acerca da presunção de inocência determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (artigo 5º, LVII).
Além disso, o artigo 283, do Código de Processo Penal, reproduz, como não poderia ser diferente, a regra constitucional nos seguintes termos: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Logo, o sentido manifesto tanto do texto constitucional, quanto do CPP, é de que o cumprimento da pena em processos criminais depende do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Daí que as ações declaratórias de constitucionalidade ajuizadas perante o STF tinham como pedido a confirmação da validade do artigo 283, do CPP, em face do que dispõe o próprio artigo 5º, LVII, da CF. Curiosamente, tem-se uma situação em que se pede que o tribunal diga que é constitucional um preceito legal idêntico ao da própria CF, pois ambos exigem o trânsito em julgado da decisão para o início do cumprimento da pena. Porém, ao reconhecer que a pena já deve ser cumprida a partir da decisão de 2ª instância, a corte ultrapassa os limites semânticos do texto constitucional.
Não existe vagueza, ambiguidade ou qualquer imprecisão sobre o significado de “trânsito em julgado”. Viu-se, portanto, uma mutação inconstitucional mediante a apropriação ou o assenhoramento da constituição por aquele que deveria atuar como seu defensor. Nessa perspectiva, muito pertinente a observação do constitucionalista espanhol Pablo Luscas Verdú, quando afirma: “o monopólio do conceito e da prática da Constituição pelos tribunais constitucionais, conduz, às vezes, a que estes não se limitem a defender e a interpretar, como instância máxima, a Lei Fundamental, senão a assenhorá-la. Expressando isso em termos alemães: não se reduzem a ser o Hüter da Constituição, senão o Herr da mesma.”[1].
Há quem não note qualquer diferença entre a decisão do tribunal sobre a presunção de inocência e a que reconheceu a união estável homoafetiva. Afirma-se que, nas duas situações, o STF contrariou a literalidade do texto constitucional. Não entendemos dessa maneira. Na controvérsia sobre a união estável, a CF se limita a dizer que é “reconhecida a união estável entre homem e mulher”. Não diz, portanto, que apenas tal união (entre homem e mulher) será reconhecida.
Além disso, se considerarmos que o ethos da jurisdição constitucional é a tutela dos direitos fundamentais, a corte acertou nessa decisão. Deveria igualmente ter se orientado pela proteção das garantias individuais no caso da presunção de inocência, fazendo valer a noção de que tais garantias funcionam como “trunfos” (Dworkin) contra avanços ilegítimos da maioria política ocasional, especialmente contra uma punitivismo exacerbado do Estado,
Essa decisão, infelizmente, não é um caso isolado nem no próprio STF, nem no restante do Poder Judiciário. O avanço das discussões hermenêuticas do Direito superou o exegetismo do positivismo legalista ao assumir como premissa teórica a distinção entre “texto” e “norma jurídica”. Embora essa distinção conceitual seja normalmente vinculada à metódica estruturante de Friedrich Müller, ao menos tal diferenciação já pode ser inferida de autores como Kelsen (ao falar na “moldura da norma”) e Hart (quando discute a “textura aberta do direito”).
Dessa maneira, sabe-se que o texto não contém a norma e esta não vem embutida nos enunciados linguísticos como se ao intérprete coubesse apenas uma tarefa de revelação de sentidos. Porém, também avançamos para reconhecer que, embora “enunciado” seja diferente de “norma jurídica”, isso não significa que o juiz pode atribuir qualquer sentido a texto normativo de acordo com a sua visão de mundo. Uma teoria da interpretação consistente deve apontar os limites da interpretação jurídica, a fim de viabilizar um controle hermenêutico das decisões judiciais.
Ao que tudo indica, nossa práxis judicial apenas assimilou (e muito bem) que o juiz “constrói” a norma, mas esqueceu de realçar a dimensão do limite da atividade interpretativa. Como resultado, o direito legislado não oferece minimamente segurança e previsibilidade e cada juiz se transforma em uma “constituição viva”
Um outro aspecto a ser destacado diz respeito ao uso do método da ponderação para flexibilizar a garantia da presunção de inocência. Desse modo, partindo-se da ideia de que a constituição assegura valores contrapostos (presunção de inocência vs. pretensão punitiva do Estado), faz-se necessário ponderá-los. Esse argumento foi sustentado pelo ministro Luís Roberto Barroso. De há muito tempo, a “teoria dos princípios”, sobretudo nos moldes propostos por Robert Alexy, tem sido amplamente difundida no Brasil.
Embora este não seja o espaço próprio para a discussão sobre o tema, sabe-se que tal teoria defende a utilização da ponderação para solucionar conflitos entre normas principiológicas, especialmente as que asseguram direitos fundamentais. Mas isso pressupõe que os preceitos em colisão tenham natureza de princípios, e não de regras, o que caracterizaria um hard case. Nesse debate, entende-se como princípio uma norma que determina que algo deve ser implementado na maior medida do possível respeitadas as limitações fáticas e jurídicas.
Por esse motivo, o princípio é um mandamento de otimização, que assegura um direito ou dever apenas prima facie, já que são direitos ponderáveis. As regras, ao contrário, estabelecem direitos ou deveres definitivos, e não prima facie. Sendo assim, as regras são aplicadas seguindo a lógica do “tudo ou nada”: ou se verifica, no plano dos fatos, a situação descrita na regra e ela deverá ser aplicada integralmente; ou tal situação não ocorreu e a regra não será aplicada.
No caso dos princípios, já que são preceitos sujeitos a ponderações, sua aplicação será gradual, admitindo-se níveis diferentes de concretização. Pois bem, no caso em tela, ao determinar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, a CF garantiu a presunção de inocência através de regra jurídica e não de princípio. Em outras palavras, o constituinte fez uma escolha clara em condicionar o cumprimento da pena ao trânsito em julgado da condenação, de modo que ninguém será tratado como culpado antes desse momento.
Argumentos como o da morosidade do Poder Judiciário, número elevado de recursos e sentimento de impunidade da “sociedade” não são juridicamente legítimos para relativizar uma garantia constitucional. Não estamos diante de um hard case. A rigor, tecnicamente, o caso é de fácil solução. O que se verifica aqui é mais um exemplo de como essa teoria foi recepcionada equivocadamente no país e como tem sido empregada de forma distorcida para camuflar decisionismos judiciais.
Com efeito, além da manipulação conteudística da constituição para encobrir moralismos individuais, foram abertas as portas para a identificação de um sem-número de novos princípios supostamente embutidos nos preceitos constitucionais. Sob o argumento de não se aplicar a “letra fria da lei”, contendo regras jurídicas que deveriam ser aplicadas em toda sua inteireza, saca-se um princípio como razão de decidir, arrefecendo o postulado da legalidade e da constitucionalidade em decorrência de práticas decisórias inconsistentes e reveladoras de um abuso de princípios.[2]
No fundo, por não concordarem com a constituinte e a constituição, o STF deu primazia ao populismo penal de cunho repressivo, utilizando, equivocadamente, alguns postulados teóricos no afã no conferir legitimidade à decisão. Deveriam ter ouvido a lição do ex-ministro Sepúlveda Pertence: “ é fundamental fugir à tentação de inserir no direito positivo as nossas convicções sobre o que ele deveria ser”[3].
No presente caso, a corte se transubstanciou em poder constituinte permanente, ou seja, em autoridade política soberana, capaz de reescrever cláusulas constitucionais como lhe aprouver.
Não que o ativismo judicial seja um mal em si. Entendemos que práticas ativistas, compreendidas como o alargamento dos espaços decisórios de um tribunal, podem ser legítimas. Isso vai depender do sistema constitucional de cada país. Mas é certo que na situação exposta a corte praticou um ativismo contra a Constituição ao afrontar sua própria literalidade.
Questão de relevo diz respeito à eventual reversão da decisão judicial por decisão do Congresso Nacional. Esse ponto traz à tona o importante debate em torno da supremacia judicial, que envolve um grau mais elevado de poder a favor dos tribunais. Agindo sob o paradigma da supremacia judicial, tribunais invocam a autoridade para determinar o que a constituição significa e essa construção é válida para toda a comunidade política. Os defensores da supremacia judicial sustentam que o Poder Judiciário é o responsável pela última palavra sobre o sentido do texto constitucional.
Em princípio, isso não significa que o Poder Legislativo e o Governo não participam do processo interpretativo, mas não se reconhece tanta relevância institucional no papel interpretativo das instâncias políticas. Estas até podem participar, mas, uma vez proferida a decisão pelo árbitro máximo das questões constitucionais, a interpretação judicialmente firmada não está aberta a novas discussões, nem deve ser desrespeitada por outros órgãos ou autoridades do Estado.
É inegável, portanto, que a supremacia judicial reduz o campo das deliberações políticas majoritárias, impedindo até mesmo que o Poder Legislativo, através de lei ou emenda constitucional, se manifeste de forma contrária à posição sustentada pelo tribunal. Na perspectiva da supremacia judicial, portanto, os outros poderes devem aceitar a interpretação judicial da constituição como a correta, senão a única legítima.
Por outro lado, a doutrina dos diálogos constitucionais desnuda o centralismo judicial, afastando a noção convencional de que uma corte, por mais prestígio e credibilidade social que venha a ter, deve ser considerada a fonte exclusiva do direito constitucional. Desse modo, a doutrina dos diálogos busca compreender o comportamento judicial das cortes, a partir da sua relação com os meios de comunicação e a opinião pública em geral, bem como a partir de suas relações com as instâncias político-representativas.
Isso significa que a autoridade de uma corte em proferir a “última palavra” sobre a constituição é relativizada e circunscrita ao caso concreto, pois a decisão não afasta os múltiplos processos interativos que podem ser deflagrados a partir deste momento. A tendência é que interpretação firmada pelo tribunal não será desafiada na medida em que os demais poderes e a opinião pública considerarem-na convincente, razoável e aceitável. Do contrário, o debate constitucional continuará enquanto subsistir dissenso público relevante. E parece ser este o caso da relativização da presunção de inocência.
Ademais, sabe-se no processo constitucional brasileiro o legislador não está vinculado às decisões do STF no controle abstrato. Esse lembrete é importante para se perceber que não existe empecilho ao diálogo, de modo que o legislador pode construir interpretações constitucionais distintas da realizada pela Corte. Mas poder, não é querer.
Os pontos aqui levantados são apenas algumas das várias e complexas questões presentes nas discussões sobre interpretação e metódica do direito. Essas preocupações serão objeto de rico debate por ocasião do PUBLIUS 2016, congresso de Direito Constitucional a ser realizado na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), reunindo pesquisadores de várias partes do país, os quais tratarão do estágio atual da hermenêutica jurídica e práxis decisória dos nossos tribunais.
* Artigo produzido pelo grupo Recife Estudos Constitucionais (REC / CNPq), formado pelos professores Adriana Rocha de Holanda Coutinho, Flávia Danielle Santiago Lima, Glauco Salomão Leite, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira, José Mário Wanderley Gomes Neto, Luiz Henrique Diniz, Marcelo Casseb Continentino e Marcelo Labanca Corrêa de Araujo.
1 LUCAS VERDÚ, Pablo. La Constitución en la encrucijada: palingenesia iuris politici. Madrid: Real Academia de Ciencias Morales y Políticas, 1994. p. 75-76.
2 Cf. NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
3 STF – MS n. 20.916/DF, rel. Min. Carlos Madeira, DJ, de. 11.10.1989.
Fonte: Conjur
Nossa história constitucional é marcada por vários episódios de instabilidade institucional, arbítrio estatal e violação de direitos fundamentais. Mesmo com a redemocratização do país, ainda existem inúmeros obstáculos à consolidação de uma cultura constitucional na sociedade brasileira.
É evidente que as instituições têm enorme responsabilidade nessa tarefa. Por isso, assistimos com preocupação a práticas decisórias recentes que têm ignorado os horizontes fixados pela Constituição e as conquistas históricas nela cristalizadas. O mais novo exemplo disso é a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a garantia da presunção de inocência. Pela maioria de 6x5, a corte abandonou seu papel contramajoritário de guardião da Constituição, transformando-se em seu algoz. E pior: no dia do seu 28º aniversário.
Muito já se tem escrito sobre o desacerto da referida decisão. Aqui, aproveitamos o ensejo desse emblemático caso para ressaltar alguns pontos sobre um estilo hermenêutico amplamente difundido na prática jurídica e que, antes de resultar em práticas concretizadoras da Constituição, tem contribuído para a sua deturpação semântica e para uma hipertrofia do Poder Judiciário.
I - Aspectos metodológicos
Na teoria constitucional, bastante conhecido é argumento de que as constituições escritas se apresentam como um “documento vivo”, que deve ter a capacidade de acompanhar as transformações sociais, sob pena de tornarem-se obsoletas.Dessa maneira, concilia-se a pretensão de permanência da constituição com a dinâmica social que lhe é subjacente. tribunais constitucionais e cortes supremas teriam não apenas a legitimidade, mas também o dever de construir “interpretações evolutivas” do texto constitucional. O paradigma da “living constitution” acaba por estimular construções judiciais sobre o sentido e alcance dos preceitos constitucionais. No direito americano, bastaria citar as decisões da Suprema Corte em Brown vs. Board Education (1954) e Roe vs. Wade (1973).
No primeiro caso, a corte, abandonando a doutrina dos “separados, mas iguais”, reconheceu a ilegitimidade das discriminações raciais nas escolas. No segundo, decidiu-se pelo direito ao aborto com fundamento no preceito constitucional que reconhece o direito à privacidade. Dessa maneira, além das reformas constitucionais realizadas pelo legislador democrático, a Constituição também passa por mutações constitucionais, verdadeiras mudanças informais no significado do texto levadas a cabo pelo tribunal.
Embora não se defenda que a constituição seja um documento estático, as transformações de sentido operadas judicialmente devem respeitar os limites semânticos impostos pelo próprio texto constitucional. Assim, as disposições constitucionais apresentam densidades normativas distintas, ou seja, algumas cláusulas possuem um grau de indeterminação e vagueza maior que outras. Por isso, é mais plausível sustentar interpretações evolutivas em relação a disposições constitucionais que falam em “liberdade de expressão”, “igualdade”, “autonomia da vontade”, “livre iniciativa”, dentre outros termos abertos.
Todavia, na decisão do STF sobre a presunção de inocência, ao contrário do que se tem afirmado, não estamos diante de um exemplo de “interpretação evolutiva” da “constituição viva” ou de mutação constitucional. Desnecessário haver maiores esforços interpretativos para perceber que o modelo adotado pela CF/88 acerca da presunção de inocência determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (artigo 5º, LVII).
Além disso, o artigo 283, do Código de Processo Penal, reproduz, como não poderia ser diferente, a regra constitucional nos seguintes termos: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Logo, o sentido manifesto tanto do texto constitucional, quanto do CPP, é de que o cumprimento da pena em processos criminais depende do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Daí que as ações declaratórias de constitucionalidade ajuizadas perante o STF tinham como pedido a confirmação da validade do artigo 283, do CPP, em face do que dispõe o próprio artigo 5º, LVII, da CF. Curiosamente, tem-se uma situação em que se pede que o tribunal diga que é constitucional um preceito legal idêntico ao da própria CF, pois ambos exigem o trânsito em julgado da decisão para o início do cumprimento da pena. Porém, ao reconhecer que a pena já deve ser cumprida a partir da decisão de 2ª instância, a corte ultrapassa os limites semânticos do texto constitucional.
Não existe vagueza, ambiguidade ou qualquer imprecisão sobre o significado de “trânsito em julgado”. Viu-se, portanto, uma mutação inconstitucional mediante a apropriação ou o assenhoramento da constituição por aquele que deveria atuar como seu defensor. Nessa perspectiva, muito pertinente a observação do constitucionalista espanhol Pablo Luscas Verdú, quando afirma: “o monopólio do conceito e da prática da Constituição pelos tribunais constitucionais, conduz, às vezes, a que estes não se limitem a defender e a interpretar, como instância máxima, a Lei Fundamental, senão a assenhorá-la. Expressando isso em termos alemães: não se reduzem a ser o Hüter da Constituição, senão o Herr da mesma.”[1].
Há quem não note qualquer diferença entre a decisão do tribunal sobre a presunção de inocência e a que reconheceu a união estável homoafetiva. Afirma-se que, nas duas situações, o STF contrariou a literalidade do texto constitucional. Não entendemos dessa maneira. Na controvérsia sobre a união estável, a CF se limita a dizer que é “reconhecida a união estável entre homem e mulher”. Não diz, portanto, que apenas tal união (entre homem e mulher) será reconhecida.
Além disso, se considerarmos que o ethos da jurisdição constitucional é a tutela dos direitos fundamentais, a corte acertou nessa decisão. Deveria igualmente ter se orientado pela proteção das garantias individuais no caso da presunção de inocência, fazendo valer a noção de que tais garantias funcionam como “trunfos” (Dworkin) contra avanços ilegítimos da maioria política ocasional, especialmente contra uma punitivismo exacerbado do Estado,
Essa decisão, infelizmente, não é um caso isolado nem no próprio STF, nem no restante do Poder Judiciário. O avanço das discussões hermenêuticas do Direito superou o exegetismo do positivismo legalista ao assumir como premissa teórica a distinção entre “texto” e “norma jurídica”. Embora essa distinção conceitual seja normalmente vinculada à metódica estruturante de Friedrich Müller, ao menos tal diferenciação já pode ser inferida de autores como Kelsen (ao falar na “moldura da norma”) e Hart (quando discute a “textura aberta do direito”).
Dessa maneira, sabe-se que o texto não contém a norma e esta não vem embutida nos enunciados linguísticos como se ao intérprete coubesse apenas uma tarefa de revelação de sentidos. Porém, também avançamos para reconhecer que, embora “enunciado” seja diferente de “norma jurídica”, isso não significa que o juiz pode atribuir qualquer sentido a texto normativo de acordo com a sua visão de mundo. Uma teoria da interpretação consistente deve apontar os limites da interpretação jurídica, a fim de viabilizar um controle hermenêutico das decisões judiciais.
Ao que tudo indica, nossa práxis judicial apenas assimilou (e muito bem) que o juiz “constrói” a norma, mas esqueceu de realçar a dimensão do limite da atividade interpretativa. Como resultado, o direito legislado não oferece minimamente segurança e previsibilidade e cada juiz se transforma em uma “constituição viva”
Um outro aspecto a ser destacado diz respeito ao uso do método da ponderação para flexibilizar a garantia da presunção de inocência. Desse modo, partindo-se da ideia de que a constituição assegura valores contrapostos (presunção de inocência vs. pretensão punitiva do Estado), faz-se necessário ponderá-los. Esse argumento foi sustentado pelo ministro Luís Roberto Barroso. De há muito tempo, a “teoria dos princípios”, sobretudo nos moldes propostos por Robert Alexy, tem sido amplamente difundida no Brasil.
Embora este não seja o espaço próprio para a discussão sobre o tema, sabe-se que tal teoria defende a utilização da ponderação para solucionar conflitos entre normas principiológicas, especialmente as que asseguram direitos fundamentais. Mas isso pressupõe que os preceitos em colisão tenham natureza de princípios, e não de regras, o que caracterizaria um hard case. Nesse debate, entende-se como princípio uma norma que determina que algo deve ser implementado na maior medida do possível respeitadas as limitações fáticas e jurídicas.
Por esse motivo, o princípio é um mandamento de otimização, que assegura um direito ou dever apenas prima facie, já que são direitos ponderáveis. As regras, ao contrário, estabelecem direitos ou deveres definitivos, e não prima facie. Sendo assim, as regras são aplicadas seguindo a lógica do “tudo ou nada”: ou se verifica, no plano dos fatos, a situação descrita na regra e ela deverá ser aplicada integralmente; ou tal situação não ocorreu e a regra não será aplicada.
No caso dos princípios, já que são preceitos sujeitos a ponderações, sua aplicação será gradual, admitindo-se níveis diferentes de concretização. Pois bem, no caso em tela, ao determinar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, a CF garantiu a presunção de inocência através de regra jurídica e não de princípio. Em outras palavras, o constituinte fez uma escolha clara em condicionar o cumprimento da pena ao trânsito em julgado da condenação, de modo que ninguém será tratado como culpado antes desse momento.
Argumentos como o da morosidade do Poder Judiciário, número elevado de recursos e sentimento de impunidade da “sociedade” não são juridicamente legítimos para relativizar uma garantia constitucional. Não estamos diante de um hard case. A rigor, tecnicamente, o caso é de fácil solução. O que se verifica aqui é mais um exemplo de como essa teoria foi recepcionada equivocadamente no país e como tem sido empregada de forma distorcida para camuflar decisionismos judiciais.
Com efeito, além da manipulação conteudística da constituição para encobrir moralismos individuais, foram abertas as portas para a identificação de um sem-número de novos princípios supostamente embutidos nos preceitos constitucionais. Sob o argumento de não se aplicar a “letra fria da lei”, contendo regras jurídicas que deveriam ser aplicadas em toda sua inteireza, saca-se um princípio como razão de decidir, arrefecendo o postulado da legalidade e da constitucionalidade em decorrência de práticas decisórias inconsistentes e reveladoras de um abuso de princípios.[2]
No fundo, por não concordarem com a constituinte e a constituição, o STF deu primazia ao populismo penal de cunho repressivo, utilizando, equivocadamente, alguns postulados teóricos no afã no conferir legitimidade à decisão. Deveriam ter ouvido a lição do ex-ministro Sepúlveda Pertence: “ é fundamental fugir à tentação de inserir no direito positivo as nossas convicções sobre o que ele deveria ser”[3].
II - Aspectos institucionais
O fenômeno do protagonismo judicial tem sido verificado em várias partes do mundo. Uma das justificativas a favor do ativismo tem sido a proteção dos direitos fundamentais. Não obstante, de toda a discussão em torno do ativismo judicial do STF, não se imaginava que ele se empenharia num ataque aos direitos fundamentais, justamente contra uma das maiores conquistas do Estado de Direito: a presunção de inocência.No presente caso, a corte se transubstanciou em poder constituinte permanente, ou seja, em autoridade política soberana, capaz de reescrever cláusulas constitucionais como lhe aprouver.
Não que o ativismo judicial seja um mal em si. Entendemos que práticas ativistas, compreendidas como o alargamento dos espaços decisórios de um tribunal, podem ser legítimas. Isso vai depender do sistema constitucional de cada país. Mas é certo que na situação exposta a corte praticou um ativismo contra a Constituição ao afrontar sua própria literalidade.
Questão de relevo diz respeito à eventual reversão da decisão judicial por decisão do Congresso Nacional. Esse ponto traz à tona o importante debate em torno da supremacia judicial, que envolve um grau mais elevado de poder a favor dos tribunais. Agindo sob o paradigma da supremacia judicial, tribunais invocam a autoridade para determinar o que a constituição significa e essa construção é válida para toda a comunidade política. Os defensores da supremacia judicial sustentam que o Poder Judiciário é o responsável pela última palavra sobre o sentido do texto constitucional.
Em princípio, isso não significa que o Poder Legislativo e o Governo não participam do processo interpretativo, mas não se reconhece tanta relevância institucional no papel interpretativo das instâncias políticas. Estas até podem participar, mas, uma vez proferida a decisão pelo árbitro máximo das questões constitucionais, a interpretação judicialmente firmada não está aberta a novas discussões, nem deve ser desrespeitada por outros órgãos ou autoridades do Estado.
É inegável, portanto, que a supremacia judicial reduz o campo das deliberações políticas majoritárias, impedindo até mesmo que o Poder Legislativo, através de lei ou emenda constitucional, se manifeste de forma contrária à posição sustentada pelo tribunal. Na perspectiva da supremacia judicial, portanto, os outros poderes devem aceitar a interpretação judicial da constituição como a correta, senão a única legítima.
Por outro lado, a doutrina dos diálogos constitucionais desnuda o centralismo judicial, afastando a noção convencional de que uma corte, por mais prestígio e credibilidade social que venha a ter, deve ser considerada a fonte exclusiva do direito constitucional. Desse modo, a doutrina dos diálogos busca compreender o comportamento judicial das cortes, a partir da sua relação com os meios de comunicação e a opinião pública em geral, bem como a partir de suas relações com as instâncias político-representativas.
Isso significa que a autoridade de uma corte em proferir a “última palavra” sobre a constituição é relativizada e circunscrita ao caso concreto, pois a decisão não afasta os múltiplos processos interativos que podem ser deflagrados a partir deste momento. A tendência é que interpretação firmada pelo tribunal não será desafiada na medida em que os demais poderes e a opinião pública considerarem-na convincente, razoável e aceitável. Do contrário, o debate constitucional continuará enquanto subsistir dissenso público relevante. E parece ser este o caso da relativização da presunção de inocência.
Ademais, sabe-se no processo constitucional brasileiro o legislador não está vinculado às decisões do STF no controle abstrato. Esse lembrete é importante para se perceber que não existe empecilho ao diálogo, de modo que o legislador pode construir interpretações constitucionais distintas da realizada pela Corte. Mas poder, não é querer.
Os pontos aqui levantados são apenas algumas das várias e complexas questões presentes nas discussões sobre interpretação e metódica do direito. Essas preocupações serão objeto de rico debate por ocasião do PUBLIUS 2016, congresso de Direito Constitucional a ser realizado na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), reunindo pesquisadores de várias partes do país, os quais tratarão do estágio atual da hermenêutica jurídica e práxis decisória dos nossos tribunais.
* Artigo produzido pelo grupo Recife Estudos Constitucionais (REC / CNPq), formado pelos professores Adriana Rocha de Holanda Coutinho, Flávia Danielle Santiago Lima, Glauco Salomão Leite, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira, José Mário Wanderley Gomes Neto, Luiz Henrique Diniz, Marcelo Casseb Continentino e Marcelo Labanca Corrêa de Araujo.
1 LUCAS VERDÚ, Pablo. La Constitución en la encrucijada: palingenesia iuris politici. Madrid: Real Academia de Ciencias Morales y Políticas, 1994. p. 75-76.
2 Cf. NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
3 STF – MS n. 20.916/DF, rel. Min. Carlos Madeira, DJ, de. 11.10.1989.
Fonte: Conjur