goo.gl/AnkavY | Uma das inovações mais destacadas do Código de Defesa do Consumidor para proteção da justiça contratual foi o regime que instituiu para controle das cláusulas abusivas. Houve aí uma sensível transformação da perspectiva das invalidades, que deixaram de concentrar-se nos vícios da vontade, com consequências para a integralidade do contrato celebrado entre as partes, para um regime de invalidade parcial, apenas das cláusulas que por seu conteúdo comprometiam o equilíbrio do negócio jurídico. Mantem-se o contrato válido quanto ao restante, e quando necessário, chamando o juiz a promover a integração de eventuais lacunas que daí venha a surgir.
A utilidade deste sistema novo verificou-se desde logo pela jurisprudência nacional, ao tempo em que, ao manter o contrato de consumo válido, declarava a nulidade apenas das cláusulas que se caracterizassem como violação aos direitos do consumidor. Por outro lado, marca este sistema a sanção de nulidade da cláusula abusiva, dando exata dimensão da rejeição do direito à abusividade das disposições contratuais que sejam contrárias aos direitos do consumidor. Uma sanção de ordem pública, que ao contrário do regime geral das invalidades do Código Civil — marcado pela anulabilidade do negócio jurídico em razão dos defeitos na sua constituição válida — não depende da iniciativa da parte prejudicada, tampouco podem ser confirmadas ou convalidadas pelo tempo.
As razões de ordem prática para este sistema instituído pelo Código de Defesa do Consumidor são várias. Dentre elas, a mais importante é o próprio reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor. Porque o consumidor é vulnerável, inclusive com dependência em relação a certos contratos de consumo duradouros e/ou que digam respeito a serviços essenciais, firmou-se diretriz para sua proteção em face da pressão do fornecedor, ou mesmo por desconhecimento jurídico, o levasse a confirmar a validade de uma cláusula flagrantemente ilegal.
Daí a surpresa quando, em 2009, o Superior Tribunal de Justiça fez editar sua Súmula 381, afirmando que “nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas.” O processo de formação da súmula e sua comparação aos precedentes que a fundamentaram são de interesse, em especial para se perceber o quanto os propósitos iniciais se desvinculam do texto final. Basta ver que a proposição original, da ministra Nancy Andrighi, ao trazer o tema à discussão, era justamente permitir o reconhecimento de ofício pelo julgador da nulidade das cláusulas de eleição de foro, quando não houvesse sido alegada pelo consumidor, como pressuposto lógico para que pudesse conhecer da causa e decidi-la. Durante os debates da sessão, contudo, sob o fundamento de que os tribunais não poderiam conhecer de ofício da nulidade de cláusulas abusivas, por ofensa ao princípio devolutivo da apelação (tantum devolutum quantum apellatum), aprovou-se o texto em questão, pouco aderente aos precedentes indicados para fundamentá-lo.[1]
Da edição da súmula, sob o regime do artigo 543-C do Código de Processo Civil então vigente, ou seja, restringindo a admissibilidade de recursos em sentido contrário ao entendimento afirmado, resultou forte reação da comunidade jurídica. [2] Embora perceptível seu propósito de evitar “decisões-surpresa” no julgamento de recursos, o fato é que seu enunciado tal qual foi redigido, coloca em xeque o sentido consagrado ao artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor. Refere a lei, expressamente, que “são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços (...)”, seguida de longa exemplificação. A nulidade de pleno direito, ou absoluta, é aquela que implica a invalidade do ato nulo, sem que haja possibilidade de saneamento e convalidação do mesmo.[3] Alguma discussão houve ao comparar a opção do legislador brasileiro a outros sistemas jurídicos nos quais se distinguiam as sanções às cláusulas abusivas em diferentes graduações. No caso do CDC, contudo, o sistema de nulidades fundado na ordem pública de proteção do consumidor,[4] ao tempo em que se afastou do sistema de nulidades do Código Civil de 1916, não deixou de aproveitar da tradição do direito privado brasileiro, quanto ao exato sentido da definição de “nulidade de pleno direito”.
Trata-se de um conceito tecnicamente refinado.[5] Ponderava Clóvis Beviláqua: “O acto foi praticado contra as prescripções da lei? É nullo, quer dizer, não tem existência legal. Ea quae lege fieri prohibentuir si fuerint facta, non solo inutilia, sed pro infects, etiam habentur, ainda se diz no direito imperial. Mas este rigor de lógica jurídica pareceu excessivamente rígido, e começaram os abrandamentos do direito pretoriano a crear distincções, das quaes resultava que uns actos eram nullos de pleno direito e outros necessitavam de uma acção em justiça e de uma sentença para serem declarados nullos”.[6] A nulidade é meio de assegurar respeito à lei, podendo haver, conforme bem assinalam Ripert e Boulanger, dentre as nulidades absolutas, as que se denominam nulidades de ordem pública, consideradas como as revestidas de tal gravidade contra o interesse coletivo, que podem ser decretadas de ofício pelo juiz.[7] Na mesma linha afirma-se que “as nulidades absolutas sancionam a violação de uma regra de ordem pública, as nulidades relativas a violação de regras editadas para a proteção de interesses privados”.[8]
A noção de nulidade de pleno direito segue tradição romana (ipso iure), distinguindo basicamente as nulidades que, sendo de pleno direito não precisariam sequer ser objeto de decretação judicial, sendo as demais hipóteses dependentes da obtenção de uma fórmula do magistrado para poderem ser reconhecidas. O modo como foi desenvolvida pelo direito moderno identificou a nulidade de pleno direito tanto com a circunstância de que sua caracterização é independente da decretação pelo magistrado, quanto à identificação de um dever do juiz de pronunciá-las independente de requerimento expresso, sempre quando delas tiver conhecimento.
No direito brasileiro, explica Clóvis Beviláqua, a reação da ordem jurídica em relação à violação dos preceitos estabelecidos se dá “de modo mais ou menos violento, mais ou menos decisivo, segundo os interesses feridos pela ilegalidade do acto. Quando o acto ofende princípios básicos da ordem jurídica, princípios garantidores dos mais elevados interesses da colectividade, é bem de ver que a reacção deve ser mais enérgica, a nullidade deve ser de pleno direito, o acto é nullo. Quando os preceitos que o acto contraria são destinados mais particularmente a proteger os interesses das pessoas (...) a reacção é atenuada pela vontade individual que se interpõe. O acto neste caso, é apenas anullável.”[9] Na tradição do direito brasileiro, o Regulamento 737, de 1850, dispõe originalmente sobre a disciplina das nulidades no direito privado. Ao usar a expressão nulidade de pleno direito, distingue em absoluta e relativa, sendo a primeira passível de ser alegada por qualquer interessado e a segunda apenas por aqueles a quem favoreçam. A nulidade de pleno direito absoluta podia ser pronunciada de ofício, não podendo ser relevadas pelo juiz quando constem de documento ou de prova literal.
O reconhecimento da nulidade de pleno direito pelo juiz é comum aos sistemas de direito romano-germânico.[10] Neste sentido, “não se torna necessário intentar uma ação ou emitir uma declaração nesse sentido, nem uma sentença judicial prévia, e podem ser declaradas ex officio pelo tribunal”.[11] No direito do consumidor francês, por exemplo, a partir da Loi Chatel, de 2008, houve adesão expressa à possibilidade do juiz reconhecer de ofício a abusividade das cláusulas contratuais, de modo que o art. 141-4, acrescentado ao Code de la consommation francês passou a prever: “Le juge peut soulever d’office toutes les dispositions du présent code dans les litiges nés de son application”.
Este sentido elementar da noção de nulidade de pleno direito, que é um dos traços distintivos da autoridade e efetividade da tutela constitucional e legal dos direitos do consumidor nos contratos, agora tem a possibilidade de ser recuperado pelo Superior Tribunal de Justiça. No ano passado, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino afetou o julgamento do Recurso Especial Especial 1.465.832/RS, sugerindo, em face, especialmente do novo Código de Processo Civil a alteração do enunciado da Súmula 381, para o qual propôs a seguinte redação: "Na declaração de nulidade de cláusula abusiva, prevista no art. 51 do CDC, deverão ser respeitados o contraditório e a ampla defesa, não podendo ser reconhecida de ofício em segundo grau de jurisdição”.
Trata-se, indiscutivelmente, de uma redação que busca conciliar o entendimento da Corte, e a necessidade de segurança jurídica, com a efetividade do direito do consumidor. Afinal, sistematizando os principais argumentos contrários à redação atual da súmula: a) não há sentido em haver um entendimento especial para os contratos bancários em matéria da declaração de nulidade de cláusulas abusivas, privilegiado em relação aos demais contratos de consumo, o que inclusive viola o conteúdo da decisão do STF no julgamento da ADI 2.591 (ADI dos Bancos)[12]; b) a vedação ao conhecimento de ofício da abusividade, e consequente nulidade viola a noção consagrada às nulidades de pleno direito, contrariando e modificando norma legal expressa; c) o respeito ao contraditório e à ampla defesa não são inconciliáveis com o conhecimento de ofício de questões de ordem pública.
O mérito da iniciativa de revisão do enunciado em questão, portanto, é inegável. Por outro lado, é de sugerir à redação proposta pelo ministro Sanseverino, uma brevíssima inovação, em vista do que dispõem os artigos 9º e 10 do novo Código de Processo Civil, a saber, respectivamente: “Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida”; e “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”
Preservando-se o sentido de assegurar o contraditório e a ampla defesa, e de modo a evitar decisões que surpreendam as partes, não há razão aparente para restringir-se o conhecimento de ofício, mesmo em segundo grau de jurisdição, desde que seja dada oportunidade às partes de se manifestarem sobre o tema. Não é demais mencionar que a declaração, de ofício, da nulidade da cláusula abusiva, se dá em homenagem à própria autoridade e efetividade do Direito. O que se deve assegurar, somente, é que esteja em linha com a preservação das garantias do contraditório e da ampla defesa.
Daí nossa sugestão, a partir da inteligência do texto proposto pelo ministro Sanseverino, para que resulte do enunciado assim: “Na declaração de nulidade de cláusula abusiva, prevista no artigo 51 do CDC, deverão ser respeitados o contraditório e a ampla defesa, em qualquer grau de jurisdição”. De qualquer modo, estão lançados em bons termos a iniciativa de revisão da Súmula 381, marco da necessária reconciliação do entendimento do STJ, reconhecido como o “Tribunal da Cidadania”, com a autoridade e coerência do direito positivo.
[1] Para detalhes do julgamento, remete-se ao nosso estudo contemporâneo à edição da súmula: Bruno Miragem, Nulidade das cláusulas abusivas nos contratos de consumo: entre o passado e o futuro do direito do consumidor brasileiro. Revista de direito do consumidor, v. 72. São Paulo: RT, out.-dez./2009, p. 41-77.
[2] Registram-se, desde então, dezenas de estudos doutrinários destacando, em uníssono, o equívoco do Superior Tribunal de Justiça na edição da súmula, de autoria, dentre outros, de Claudia Lima Marques, Nelson Nery Júnior, Fábio de Souza Trajano, Flávio Caetano de Paula, Rafael Calmon Rangel, Andressa Jarletti de Oliveira, Vitor Vilela Guglinski, Oscar Ivan Prux, Améllia Soares da Rocha, Gerson Amauri Calgaro, Pablo Stolze Gagliano e Salomão Viana, Fredie Didier Júnior, Antônio Carlos Efing, Flávio Tartuce, Alexandre Torres Petry, Gustavo Brum, Leonardo Macedo Poli Sérgio Augusto Pereira Lorentino, Gerivaldo Neiva e Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat Cabral, Nayron Divino Toledo Malheiros, Ricardo Giuliani Neto e Ezequiel Morais.
[3] Conforme a lição de Francisco Cavalcante Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t. 4. Rio de Janeiro: Borsói, 1970, p. 51-52.[4] Conforme se percebe também do exame de direito comparado, a violação da ordem pública econômica de direção dá causa à nulidade de pleno direito, uma vez que esta tem a aptidão de limitar todos os aspectos da livre formação dos atos jurídicos, tais como a definição dos seus elementos essenciais, a escolha de com quem contratar, a forma e o processo de celebração do contrato. Assim, é protegida mediante a decretação da nulidade absoluta da cláusula. Estabelece, pois, espécie de restrição da liberdade de criação do direito por intermédio da vontade das partes. Assim: Marie Caroline Vincent-Legoux, L’ordre public. Étude de droit comparé interne. Paris: PUF, 2001. p. 142-144.
[5] Para aprofundamento da discussão, remete-se ao nosso: Bruno Miragem, Curso de direito do consumidor, 6ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 381-387.
[6] Clóvis Bevilaqua, Theoria geral do direito civil. São Paulo: Red, 1999. p. 334.
[7] Georges Ripert e Jean Boulanger, Tratado de derecho civil según el tratado de Planiol. Trad. Delia Garcia Dareaux. Buenos Aires: La Ley, 1963. v. 1, p. 456-457.
[8] Henri Mazeaud; Leon Mazeaud; Jean Mazeaud e François Chabas, Leçons de droit civil. Introduction à l’étude du droit. 12. ed. Paris: Montchrestien, 2000, p. 492.
[9] Clóvis Beviláqua, Theoria geral do direito civil, p. 346-347.
[10] Francesco Galgano. Diritto privato. 13. ed. Padova: Cedam, 2006. p. 286.
[11] Carlos Alberto Mota Pinto. Teoria geral do direito civil. 3. ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 1996, p. 611.
[12] “Artigo 3º, § 2º, do CDC. Artigo 5º, XXXII, da CF/88. Artigo 170, V, da CF/1988. Instituições financeiras. Sujeição delas ao Código de Defesa do Consumidor. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. 1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. 2. ‘Consumidor’, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza como destinatário final, atividade bancária, financeira, de crédito e securitária. 3. O preceito veiculado pelo artigo 3º, § 2º, do CDC deve ser interpretado em coerência com a Constituição” (EDcl na ADIn 2.591, j. 14.12.2006, rel. Min. Eros Grau, DJ 13.04.2007). Vejam-se nossos comentários à decisão em: Bruno Miragem, A ADIn 2.591 e a constitucionalidade da aplicação do CDC às instituições bancárias, de crédito e securitárias: Fundamento da ordem pública constitucional de proteção do consumidor. Revista de direito do consumidor 61/287. São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2007.
Por Bruno Miragem
Fonte: Conjur