goo.gl/Bn7IEv | A decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da inconstitucionalidade da imputação do tipo penal de aborto à interrupção de gravidez efetivada antes do primeiro trimestre de gestação marca, sem dúvida, um importante avanço paradigmático na compreensão da autonomia da mulher e na ressignificação jurídica do seu espaço de escolhas.
A matéria foi julgada pela Primeira Turma do STF, quando foi examinada a prisão preventiva decretada para crime de aborto praticado com o consentimento da gestante (art. 126, CP), passando-se a examinar a incompatibilidade entre a criminalização da referida conduta e os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, em especial a autonomia da mulher, sua integridade física e psíquica, bem como os direitos sexuais e reprodutivos femininos.
A decisão foi formulada a partir do voto-vista do ministro Barroso, fundamento acompanhado pelos ministros Edson Fachin e Rosa Weber, acarretando a concessão da ordem, de ofício, pelo ministro Luiz Fux, que se restringiu a revogar a prisão preventiva (STF, 2016).
Poderíamos dizer que estamos diante de um importante marco para o movimento feminista brasileiro, em busca da igualdade de gênero e da oposição ao histórico processo de marginalização das mulheres, em especial da mulher negra e pobre.
Muito embora pouco se fale à respeito, precisamos notar que todo país de origem escravocrata encontra na sacralização da gestação uma justificativa histórica para mercantilização do ventre feminino. Durante a colonização do Brasil, o processo de produção de mão de obra escrava se intensificou, sobretudo, com a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, que extinguiu o tráfico negreiro transatlântico, fator responsável pela elevação do preço da mulher escrava no comércio interno e, na mesma medida, a sua diminuição de seu valor.
Isto porque a forma de ampliação de mão de obra escrava passava a se dar, especialmente, pela via da reprodução interna – o estupro das mulheres negras, o que não se resolveu com a Lei do Ventre Livre, de 1871, que impediu os filhos nascidos de escravas de serem também escravos. Muito ao contrário, firmaram-se como práticas naturalizadas na cultura brasileira a estigmatização, coisificação e a invisibilização da mulher negra.
Ao explicar o impacto da abolição do tráfico internacional de escravos nos Estados Unidos, Angela Davis (2016) destaca que o Sul, marcado, predominantemente, pelo trabalho agrícola, distribuía, igualmente, as tarefas entre homens e mulheres, sendo que estas, além de sofrerem com a exploração da força de trabalho, ainda eram vítimas de abusos sexuais para reprodução “natural” como o método seguro de substituição e ampliação da população doméstica escrava.
Mesmo entre as mulheres brancas, muito embora a reprodução forçada não se fundamentasse na produção de mão de obra barata, como ocorria entre as escravas, a opressão sexual também marcava as relações interpessoais. Michel Foucault (2014), em “História da Sexualidade”, destaca que a virtude das mulheres era medida a partir de sua fertilidade, pela via de sua função procriadora, que possibilitava a permanência do nome da família, a transmissão de bens e a própria manutenção das cidades.
Portanto, a naturalização da violência sexual e a suposta sacralização da gestação são traços do paradoxo nascimento da sociedade brasileira, ainda hoje marcada pela estimativa de que, a cada ano, no mínimo, 527 mil pessoas são estupradas no Brasil (em regra, mulheres), conforme dados do IPEA (CERQUEIRA; COELHO, 2014), e, paralelamente, pela marcante resistência à legalização do aborto – destacando-se, nesse particular, o Projeto de Lei nº 5069/2013, de autoria do ex-deputado Eduardo Cunha e outros, que amplia o rol de tipos incriminadores para o aborto (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2013).
Mesmo os discursos de legalização do aborto têm sido marcados não pelo reposicionamento social da mulher e pelo respeito à sua autonomia, mas pela defesa de uma medida de controle de violência, de contenção das “fábricas de produzir marginais”, conforme critica Sueli Carneiro (2011). Significa dizer, portanto, que o fortalecimento do discurso em prol da liberdade de abortamento não passa, necessariamente, pela conscientização social acerca da igualdade de gênero e do consequente reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, como pretende o movimento feminista. Assim, mesmo ao deixar de se tratar o aborto como crime, a questão persiste em ser pensada como matéria de segurança pública, em manifesta dissonância com a reflexão crítica acerca da necessidade urgente de reconhecimento do aborto como um problema de saúde pública.
Ao tratarmos do aborto como uma questão de saúde pública, fundado na autonomia da mulher, protegemos, a um só tempo, não só o direito ao abortamento, como o próprio direito à gestação – afinal não pode ser ignorada a forma como o sistema de produção capitalista e neoliberalista tem forçado a prática do abortamento especialmente para as mulheres negras desempregadas ou sem vínculos formais de trabalho. Uma nova compreensão do aborto como tema de saúde pública, desta forma, implica não apenas o reconhecimento da faculdade de interrupção da gravidez, como também a imposição da ampliação do rol de políticas de saúde pública que viabilizem a manutenção gestacional.
Nesse particular, a fundamentação do voto-vista do ministro Roberto Barroso representou significativo avanço, uma vez que menciona, expressamente, a autonomia feminina como fundamento para a interrupção da gravidez, sem desconsiderar a proteção à vida potencial do feto, uma vez que impõe limite temporal para a realização da prática de até o terceiro trimestre da gestação. Significa dizer que, caso venha a se consolidar o referido entendimento na prática dos tribunais brasileiros, gradualmente as políticas públicas tenderão a acompanhar o novo pensamento, adequando-se aos fundamentos da decisão.
Já é possível antecipar as críticas ao julgado a se fundamentarem na descabida tese de “politização da justiça“, em que se acusa uma suposta transferência ao Poder Judiciário da possibilidade de controle da atividade legislativa. Não merecem, todavia, prosperar eventuais oposições ancoradas no temor de usurpação da vontade popular pela força da jurisdição constitucional. Como bem esclarece Daniel Sarmento (2011), a “politização da justiça” não se confunde com a “judicialização da política”, esta última caracterizada pelo cumprimento, por parte do Judiciário, de seu papel político-social. Não há que se falar, nesse caso especificamente, de uma crise contramajoritária pelo dito desrespeito da vontade dos representantes do povo. Isto porque a autorização da interrupção da gravidez reconhece e garante os direitos fundamentais de uma minoria representativa, cujos interesses e necessidades são tradicionalmente ignorados pelo Poder Legislativo (mesmo se tratando, em termos absolutos, de maioria populacional, conforme revelam os dados do IBGE, 2015).
Examinando, criticamente, os fundamentos apresentados em prol da autorização do aborto consentido, nota-se que não estaremos utilizando a bandeira da liberdade como instrumento de intolerência, coersão ou como veículo de intolerência religiosa, preocupação esta externada por Judith Butler sobre as políticas sexuais modernas (2016, p. 156). Afinal, para aqueles que se opõem à realização da prática, o aborto jamais poderá figurar imposição estatal – atentemos para o fato de que a decisão se referiu, especificamente, ao aborto com o consentimento da gestante, tipo incriminador do art. 126, CP, e não ao aborto praticado sem o consentimento da gestante, figura do art. 125, CP.
Desse modo, será o consentimento válido da gestante, em conjunto com o reconhecimento da proteção à sua integridade física e psíquica, bem como dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que permanecerá como principal critério distintivo entre a prática lícita e a criminosa do abortamento. Nesse sentido, merece destaque a previsão do parágrafo único do art. 126, CP, que equipara ao aborto não consentido aquele cuja autorização emana de gestante não maior de quatorze anos, de alienada mental, ou cujo consentimento tenha sido obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência, hipóteses em que a manifestação de vontade não será considerada válida, persistindo a imputação delitiva ao terceiro que venha a realizar a prática.
Sendo nossa velha conhecida a seletividade racial no direcionamento do aparato punitivo estatal, traduzido na uniformização cromática das celas do sistema prisional brasileiro, não podemos esquecer que, quanto ao crime de aborto, soma-se a este fator também a discriminação de gênero. É imperioso compreender que a descriminalização do aborto representa mais um passo que se soma à resistência contra a marginalização estrutural da mulher negra – esta sim verdadeiro alvo dos procedimentos criminais falsamente justificados no interesse de proteção da vida humana, e das negativas de atendimento de saúde autoritariamente fundamentadas na precedência da prática criminosa abortiva. Trata-se, pois, do reconhecimento crítico de que para algumas mulheres a prática do abortamento nunca fora tratada, de fato, como conduta ilícita, e que o direcionamento do controle para determinado setor social, ao tempo em que desincumbe o Estado de seu dever de cuidado, acentua um processo histórico de segregação racial.
Não por outra razão que Soraia da Rosa Mendes, em “Criminologia Feminista” (2014), atenta para a necessidade de interpretação do sistema de justiça criminal a partir de um viés macrossociológico, que inclua as categorias patriarcado e gênero na compreensão do fenômeno criminoso e, consequentemente, viabilize a compreensão do modelo punitivo posto como um veículo de perpetuação das relações sociais de domínio e opressão. A partir desse corte interseccional, fica claro que a criminalização do aborto e o não reconhecimento da autonomia da mulher institucionaliza a desigualdade de gênero e perpetua a tradicional compreensão desta como sujeito relativamente capaz, o que se agrava quando do direcionamento punitivo em prol da marginalização da mulher negra. Não se trata de ignorar ou mesmo de atribuir menor valor jurídico aos fundamentos religiosos ou morais que possam vir a fundamentar o impedimento da prática abortiva, uma vez que o consentimento da gestante não deixa de ser requisito essencial para cada mulher exerça, na medida de suas orientações políticas, morais e religiosas, suas escolhas pessoais.
Em meio a um cenário desolador de frequente quebra de garantias fundamentais por meio do Supremo Tribunal Federal, de violência estrutural contra avanços historicamente conquistados, esse importante acerto decisório renova o ânimo da nossa luta em prol da preservação de direitos humanos, pela busca da igualdade de gênero e pela proteção dos direitos das mulheres.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 5069/2013. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=565882. Acesso em 29 de novembro de 2016.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. consciência em debate. São Paulo: Selo Negro, 2011.
CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo de Santa Cruz [Organizadores]. Nota Técnica nº 11: Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Brasília, Março de 2014. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=21842&catid=189&Itemid=6 Acesso em: 29 de novembro de 2016.
DAVIS, Angela. Mulher, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2 – o uso dos prazeres. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz&Terra, 2014.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: síntese de indicadores. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94935.pdf. Acesso em 29 de novembro de 2016.
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista. Novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014.
SARMENTO, Daniel; NETO, Claudio Pereira de Souza. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Forum, 2012.
SÓFOCLES. Antígona. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2016.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=330769 Acesso em 29 de novembro de 2016.
“Sem amigos, maldita, parto
viva para a morada dos mortos.
Que norma divina transgredi?
Que me vale, infeliz, elevar os olhos aos
deuses? Que aliado me virá? Sendo piedosa,
sou tida como ímpia.
Ora, se isto é agradável aos deuses,
o sofrimento me ensinará que errei.
Mas, se o erro é dele, não poderá
padecer mal maior que este que me impõe.”
(Antígona, Sófocles)
Por Daniela Portugal
Fonte: emporiododireito
A matéria foi julgada pela Primeira Turma do STF, quando foi examinada a prisão preventiva decretada para crime de aborto praticado com o consentimento da gestante (art. 126, CP), passando-se a examinar a incompatibilidade entre a criminalização da referida conduta e os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, em especial a autonomia da mulher, sua integridade física e psíquica, bem como os direitos sexuais e reprodutivos femininos.
A decisão foi formulada a partir do voto-vista do ministro Barroso, fundamento acompanhado pelos ministros Edson Fachin e Rosa Weber, acarretando a concessão da ordem, de ofício, pelo ministro Luiz Fux, que se restringiu a revogar a prisão preventiva (STF, 2016).
Poderíamos dizer que estamos diante de um importante marco para o movimento feminista brasileiro, em busca da igualdade de gênero e da oposição ao histórico processo de marginalização das mulheres, em especial da mulher negra e pobre.
Muito embora pouco se fale à respeito, precisamos notar que todo país de origem escravocrata encontra na sacralização da gestação uma justificativa histórica para mercantilização do ventre feminino. Durante a colonização do Brasil, o processo de produção de mão de obra escrava se intensificou, sobretudo, com a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, que extinguiu o tráfico negreiro transatlântico, fator responsável pela elevação do preço da mulher escrava no comércio interno e, na mesma medida, a sua diminuição de seu valor.
Isto porque a forma de ampliação de mão de obra escrava passava a se dar, especialmente, pela via da reprodução interna – o estupro das mulheres negras, o que não se resolveu com a Lei do Ventre Livre, de 1871, que impediu os filhos nascidos de escravas de serem também escravos. Muito ao contrário, firmaram-se como práticas naturalizadas na cultura brasileira a estigmatização, coisificação e a invisibilização da mulher negra.
Ao explicar o impacto da abolição do tráfico internacional de escravos nos Estados Unidos, Angela Davis (2016) destaca que o Sul, marcado, predominantemente, pelo trabalho agrícola, distribuía, igualmente, as tarefas entre homens e mulheres, sendo que estas, além de sofrerem com a exploração da força de trabalho, ainda eram vítimas de abusos sexuais para reprodução “natural” como o método seguro de substituição e ampliação da população doméstica escrava.
Mesmo entre as mulheres brancas, muito embora a reprodução forçada não se fundamentasse na produção de mão de obra barata, como ocorria entre as escravas, a opressão sexual também marcava as relações interpessoais. Michel Foucault (2014), em “História da Sexualidade”, destaca que a virtude das mulheres era medida a partir de sua fertilidade, pela via de sua função procriadora, que possibilitava a permanência do nome da família, a transmissão de bens e a própria manutenção das cidades.
Portanto, a naturalização da violência sexual e a suposta sacralização da gestação são traços do paradoxo nascimento da sociedade brasileira, ainda hoje marcada pela estimativa de que, a cada ano, no mínimo, 527 mil pessoas são estupradas no Brasil (em regra, mulheres), conforme dados do IPEA (CERQUEIRA; COELHO, 2014), e, paralelamente, pela marcante resistência à legalização do aborto – destacando-se, nesse particular, o Projeto de Lei nº 5069/2013, de autoria do ex-deputado Eduardo Cunha e outros, que amplia o rol de tipos incriminadores para o aborto (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2013).
Mesmo os discursos de legalização do aborto têm sido marcados não pelo reposicionamento social da mulher e pelo respeito à sua autonomia, mas pela defesa de uma medida de controle de violência, de contenção das “fábricas de produzir marginais”, conforme critica Sueli Carneiro (2011). Significa dizer, portanto, que o fortalecimento do discurso em prol da liberdade de abortamento não passa, necessariamente, pela conscientização social acerca da igualdade de gênero e do consequente reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, como pretende o movimento feminista. Assim, mesmo ao deixar de se tratar o aborto como crime, a questão persiste em ser pensada como matéria de segurança pública, em manifesta dissonância com a reflexão crítica acerca da necessidade urgente de reconhecimento do aborto como um problema de saúde pública.
Ao tratarmos do aborto como uma questão de saúde pública, fundado na autonomia da mulher, protegemos, a um só tempo, não só o direito ao abortamento, como o próprio direito à gestação – afinal não pode ser ignorada a forma como o sistema de produção capitalista e neoliberalista tem forçado a prática do abortamento especialmente para as mulheres negras desempregadas ou sem vínculos formais de trabalho. Uma nova compreensão do aborto como tema de saúde pública, desta forma, implica não apenas o reconhecimento da faculdade de interrupção da gravidez, como também a imposição da ampliação do rol de políticas de saúde pública que viabilizem a manutenção gestacional.
Nesse particular, a fundamentação do voto-vista do ministro Roberto Barroso representou significativo avanço, uma vez que menciona, expressamente, a autonomia feminina como fundamento para a interrupção da gravidez, sem desconsiderar a proteção à vida potencial do feto, uma vez que impõe limite temporal para a realização da prática de até o terceiro trimestre da gestação. Significa dizer que, caso venha a se consolidar o referido entendimento na prática dos tribunais brasileiros, gradualmente as políticas públicas tenderão a acompanhar o novo pensamento, adequando-se aos fundamentos da decisão.
Já é possível antecipar as críticas ao julgado a se fundamentarem na descabida tese de “politização da justiça“, em que se acusa uma suposta transferência ao Poder Judiciário da possibilidade de controle da atividade legislativa. Não merecem, todavia, prosperar eventuais oposições ancoradas no temor de usurpação da vontade popular pela força da jurisdição constitucional. Como bem esclarece Daniel Sarmento (2011), a “politização da justiça” não se confunde com a “judicialização da política”, esta última caracterizada pelo cumprimento, por parte do Judiciário, de seu papel político-social. Não há que se falar, nesse caso especificamente, de uma crise contramajoritária pelo dito desrespeito da vontade dos representantes do povo. Isto porque a autorização da interrupção da gravidez reconhece e garante os direitos fundamentais de uma minoria representativa, cujos interesses e necessidades são tradicionalmente ignorados pelo Poder Legislativo (mesmo se tratando, em termos absolutos, de maioria populacional, conforme revelam os dados do IBGE, 2015).
Examinando, criticamente, os fundamentos apresentados em prol da autorização do aborto consentido, nota-se que não estaremos utilizando a bandeira da liberdade como instrumento de intolerência, coersão ou como veículo de intolerência religiosa, preocupação esta externada por Judith Butler sobre as políticas sexuais modernas (2016, p. 156). Afinal, para aqueles que se opõem à realização da prática, o aborto jamais poderá figurar imposição estatal – atentemos para o fato de que a decisão se referiu, especificamente, ao aborto com o consentimento da gestante, tipo incriminador do art. 126, CP, e não ao aborto praticado sem o consentimento da gestante, figura do art. 125, CP.
Desse modo, será o consentimento válido da gestante, em conjunto com o reconhecimento da proteção à sua integridade física e psíquica, bem como dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que permanecerá como principal critério distintivo entre a prática lícita e a criminosa do abortamento. Nesse sentido, merece destaque a previsão do parágrafo único do art. 126, CP, que equipara ao aborto não consentido aquele cuja autorização emana de gestante não maior de quatorze anos, de alienada mental, ou cujo consentimento tenha sido obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência, hipóteses em que a manifestação de vontade não será considerada válida, persistindo a imputação delitiva ao terceiro que venha a realizar a prática.
Sendo nossa velha conhecida a seletividade racial no direcionamento do aparato punitivo estatal, traduzido na uniformização cromática das celas do sistema prisional brasileiro, não podemos esquecer que, quanto ao crime de aborto, soma-se a este fator também a discriminação de gênero. É imperioso compreender que a descriminalização do aborto representa mais um passo que se soma à resistência contra a marginalização estrutural da mulher negra – esta sim verdadeiro alvo dos procedimentos criminais falsamente justificados no interesse de proteção da vida humana, e das negativas de atendimento de saúde autoritariamente fundamentadas na precedência da prática criminosa abortiva. Trata-se, pois, do reconhecimento crítico de que para algumas mulheres a prática do abortamento nunca fora tratada, de fato, como conduta ilícita, e que o direcionamento do controle para determinado setor social, ao tempo em que desincumbe o Estado de seu dever de cuidado, acentua um processo histórico de segregação racial.
Não por outra razão que Soraia da Rosa Mendes, em “Criminologia Feminista” (2014), atenta para a necessidade de interpretação do sistema de justiça criminal a partir de um viés macrossociológico, que inclua as categorias patriarcado e gênero na compreensão do fenômeno criminoso e, consequentemente, viabilize a compreensão do modelo punitivo posto como um veículo de perpetuação das relações sociais de domínio e opressão. A partir desse corte interseccional, fica claro que a criminalização do aborto e o não reconhecimento da autonomia da mulher institucionaliza a desigualdade de gênero e perpetua a tradicional compreensão desta como sujeito relativamente capaz, o que se agrava quando do direcionamento punitivo em prol da marginalização da mulher negra. Não se trata de ignorar ou mesmo de atribuir menor valor jurídico aos fundamentos religiosos ou morais que possam vir a fundamentar o impedimento da prática abortiva, uma vez que o consentimento da gestante não deixa de ser requisito essencial para cada mulher exerça, na medida de suas orientações políticas, morais e religiosas, suas escolhas pessoais.
Em meio a um cenário desolador de frequente quebra de garantias fundamentais por meio do Supremo Tribunal Federal, de violência estrutural contra avanços historicamente conquistados, esse importante acerto decisório renova o ânimo da nossa luta em prol da preservação de direitos humanos, pela busca da igualdade de gênero e pela proteção dos direitos das mulheres.
Notas e Referências:
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra. Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 5069/2013. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=565882. Acesso em 29 de novembro de 2016.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. consciência em debate. São Paulo: Selo Negro, 2011.
CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo de Santa Cruz [Organizadores]. Nota Técnica nº 11: Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Brasília, Março de 2014. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=21842&catid=189&Itemid=6 Acesso em: 29 de novembro de 2016.
DAVIS, Angela. Mulher, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2 – o uso dos prazeres. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz&Terra, 2014.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: síntese de indicadores. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94935.pdf. Acesso em 29 de novembro de 2016.
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista. Novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014.
SARMENTO, Daniel; NETO, Claudio Pereira de Souza. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Forum, 2012.
SÓFOCLES. Antígona. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2016.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=330769 Acesso em 29 de novembro de 2016.
“Sem amigos, maldita, parto
viva para a morada dos mortos.
Que norma divina transgredi?
Que me vale, infeliz, elevar os olhos aos
deuses? Que aliado me virá? Sendo piedosa,
sou tida como ímpia.
Ora, se isto é agradável aos deuses,
o sofrimento me ensinará que errei.
Mas, se o erro é dele, não poderá
padecer mal maior que este que me impõe.”
(Antígona, Sófocles)
Por Daniela Portugal
Fonte: emporiododireito