goo.gl/86s283 | Na vigência do CPC/1973, quando o juiz percebia que os embargos de declaração haviam sido opostos contra decisão proferida por outro magistrado, exarava o famoso despacho ao “magistrado vinculado” ou outro comando de igual natureza (“ao ilustre prolator da decisão embargada”, entre outros).
Após nove meses de vigência do novo CPC, notamos que a prática continua[1]. A ideia, portanto, é analisar se tal providência ainda faz sentido à luz do novo diploma legal.
Inicialmente, vale lembrar que o artigo 132 do CPC/1973 consagrava o princípio da identidade física do juiz (“O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor”).
Tal dispositivo compreendia a noção de que, “ao presidir e concluir a audiência de instrução e julgamento, o juiz vincula-se à causa, tendo de julgar a lide”[2]. Na hipótese de embargos de declaração, sobretudo em razão da própria natureza do recurso[3], a praxe era a remessa dos autos ao “magistrado vinculado” quando a decisão embargada tivesse sido prolatada por outro juiz.
Note-se, porém, que, mesmo sob a égide do CPC/73, a jurisprudência já reconhecia a relatividade do princípio da identidade física do juiz (que não é absoluto[4]) no julgamento dos embargos de declaração, afastando a sua incidência em hipóteses específicas, como, por exemplo, em razão da inexistência de prejuízo às partes[5].
Com o novo CPC, entendemos que não faz mais qualquer sentido esse despacho automático.
Como se sabe, a nova Lei de Ritos extirpou do ordenamento processual civil[6] o princípio da identidade física do juiz (não há dispositivo correlato ao artigo 132 do CPC/73). Logo, o juiz que concluir a audiência não precisará, necessariamente, julgar a lide.
Da mesma forma, não faz sentido “convocar” aquele magistrado que prolatou a decisão embargada para examinar o respectivo recurso. Até porque a competência e o dever de cooperação não são do juiz propriamente dito, mas do órgão jurisdicional que profere a decisão embargada. Como efeito, o poder jurisdicional é uno e não se confunde com a identidade física do juiz[7].
Nesse ponto, Fredie Didier Jr. e Leonardo Ribeiro da Cunha destacam que “o CPC de 1973, que previa a regra da identidade física do juiz para julgamento quando tivesse encerrada a instrução, não estabelecia a aplicação da identidade física aos embargos declaratórios. O CPC de 2015, que não prevê a regra da identidade física do juiz, com mais razão não impõe que os embargos de declaração sejam examinados e julgados pelo mesmo juiz”[8].
É bem verdade que, em alguns casos, pode ser interessante que o próprio prolator da decisão, à luz do princípio da cooperação — em sua faceta “dever de esclarecimento” (artigo 6º) — reexamine os alegados vícios apontados no decisum, pois, via de regra, quem proferiu a decisão tem melhores condições de aquilatar a existência de eventual contradição ou obscuridade (artigo 1.022, I c/c artigo 489, parágrafo 1º). Porém, essa remessa ao “magistrado vinculado” não pode ser feita de forma automática, sem fundamentação mínima.
No caso de mero erro material e omissão (artigo 1.022, II e III), parece não haver justificativa relevante para tal vinculação, pois a retificação de erro material — que, inclusive, pode ocorrer a qualquer tempo[9] —, não envolve qualquer atividade interpretativa.
Por sua vez, o suprimento de omissão demanda apenas a análise de algo que ainda não foi apreciado. E, como se sabe, “a interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o princípio da boa-fé” (artigo 322, parágrafo 2º), devendo a decisão judicial ser interpretada “a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé” (artigo 489, parágrafo 3º).
Note-se que, de acordo com o artigo 1.022, parágrafo único, I, do novo CPC, a omissão também se materializa quando o juiz deixar de se manifestar sobre “tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento” (artigo 1.022, parágrafo único, I), situação que revela uma questão essencialmente de direito que pode, perfeitamente, ser examinada por qualquer magistrado comprometido com a causa.
Em nossa opinião, determinar automaticamente a remessa dos autos (ou a abertura de vista) ao juiz prolator da decisão embargada (que pode, por exemplo, estar de férias), ou aos grupos de sentença dos tribunais[10], viola frontalmente a duração razoável do processo (artigos 5º, LXXVIII, da CF e 4º, 6º, 139, II, do novo CPC) e a efetividade (artigo 8º do novo CPC), verdadeiros cânones do processo civil.
Em resumo, entendemos que, no contexto do novo CPC, não faz mais sentido o despacho “ao magistrado vinculado”, sobretudo de forma automática, especialmente quando o embargante aponta omissão ou erro material na decisão. Ainda que se trate de obscuridade ou contradição, cabe ao juiz examinar as alegações e decidir, à luz da boa-fé e da cooperação. Excepcionalmente, se entender que o vício apontado tem o condão de comprometer a higidez e a integridade do decisum, pode eventualmente determinar a remessa ao magistrado prolator da decisão embargada, desde que, porém, o faça de forma fundamentada (artigos 11 e 489).
[1] “Ao ilustre magistrado prolator da decisão” (Processo 0008962-24.2011, 4ª Vara Empresarial do TJ-RJ, em 21/11/16).
[2] MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2008.
[3] “Os embargos produzem o chamado efeito integrativo, objetivando integrar, complementar, aperfeiçoar a decisão embargada, com vistas a exaurir a prestação jurisdicional que se encontra inacabada, imperfeita ou incompleta.” (DIDIER JR, Fredie; DA CUNHA, Leonardo Carneiro. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 264).
[4] REsp 149.366/SC.
[5] REsp 786.150/RJ; AgRg no Ag 654.298/RS.
[6] No âmbito do processo penal, o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença (artigo 399, parágrafo 2º).
[7] COSTA NETO, José Wellington Bezerra da. Precedentes no Código de Processo Civil de 2015: somos ainda a civil law? Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 258, ago./2016, p. 394.
[8] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 265.
[9] Enunciado 360 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A não oposição de embargos de declaração em caso de erro material na decisão não impede sua correção a qualquer tempo”.
[10] Em cumprimento à Meta 2 do Conselho Nacional de Justiça, alguns tribunais de Justiça implementaram os chamados Grupos de Sentença. No TJ-RJ, o Grupo de Sentença foi instituído em 2013, com o objetivo de julgar todos os processos de conhecimento ajuizados até 31 de dezembro de 2006.
Por Marcelo Mazzola e Paula de Mello Franco
Fonte: Conjur
Após nove meses de vigência do novo CPC, notamos que a prática continua[1]. A ideia, portanto, é analisar se tal providência ainda faz sentido à luz do novo diploma legal.
Inicialmente, vale lembrar que o artigo 132 do CPC/1973 consagrava o princípio da identidade física do juiz (“O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor”).
Tal dispositivo compreendia a noção de que, “ao presidir e concluir a audiência de instrução e julgamento, o juiz vincula-se à causa, tendo de julgar a lide”[2]. Na hipótese de embargos de declaração, sobretudo em razão da própria natureza do recurso[3], a praxe era a remessa dos autos ao “magistrado vinculado” quando a decisão embargada tivesse sido prolatada por outro juiz.
Note-se, porém, que, mesmo sob a égide do CPC/73, a jurisprudência já reconhecia a relatividade do princípio da identidade física do juiz (que não é absoluto[4]) no julgamento dos embargos de declaração, afastando a sua incidência em hipóteses específicas, como, por exemplo, em razão da inexistência de prejuízo às partes[5].
Com o novo CPC, entendemos que não faz mais qualquer sentido esse despacho automático.
Como se sabe, a nova Lei de Ritos extirpou do ordenamento processual civil[6] o princípio da identidade física do juiz (não há dispositivo correlato ao artigo 132 do CPC/73). Logo, o juiz que concluir a audiência não precisará, necessariamente, julgar a lide.
Da mesma forma, não faz sentido “convocar” aquele magistrado que prolatou a decisão embargada para examinar o respectivo recurso. Até porque a competência e o dever de cooperação não são do juiz propriamente dito, mas do órgão jurisdicional que profere a decisão embargada. Como efeito, o poder jurisdicional é uno e não se confunde com a identidade física do juiz[7].
Nesse ponto, Fredie Didier Jr. e Leonardo Ribeiro da Cunha destacam que “o CPC de 1973, que previa a regra da identidade física do juiz para julgamento quando tivesse encerrada a instrução, não estabelecia a aplicação da identidade física aos embargos declaratórios. O CPC de 2015, que não prevê a regra da identidade física do juiz, com mais razão não impõe que os embargos de declaração sejam examinados e julgados pelo mesmo juiz”[8].
É bem verdade que, em alguns casos, pode ser interessante que o próprio prolator da decisão, à luz do princípio da cooperação — em sua faceta “dever de esclarecimento” (artigo 6º) — reexamine os alegados vícios apontados no decisum, pois, via de regra, quem proferiu a decisão tem melhores condições de aquilatar a existência de eventual contradição ou obscuridade (artigo 1.022, I c/c artigo 489, parágrafo 1º). Porém, essa remessa ao “magistrado vinculado” não pode ser feita de forma automática, sem fundamentação mínima.
No caso de mero erro material e omissão (artigo 1.022, II e III), parece não haver justificativa relevante para tal vinculação, pois a retificação de erro material — que, inclusive, pode ocorrer a qualquer tempo[9] —, não envolve qualquer atividade interpretativa.
Por sua vez, o suprimento de omissão demanda apenas a análise de algo que ainda não foi apreciado. E, como se sabe, “a interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o princípio da boa-fé” (artigo 322, parágrafo 2º), devendo a decisão judicial ser interpretada “a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé” (artigo 489, parágrafo 3º).
Note-se que, de acordo com o artigo 1.022, parágrafo único, I, do novo CPC, a omissão também se materializa quando o juiz deixar de se manifestar sobre “tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento” (artigo 1.022, parágrafo único, I), situação que revela uma questão essencialmente de direito que pode, perfeitamente, ser examinada por qualquer magistrado comprometido com a causa.
Em nossa opinião, determinar automaticamente a remessa dos autos (ou a abertura de vista) ao juiz prolator da decisão embargada (que pode, por exemplo, estar de férias), ou aos grupos de sentença dos tribunais[10], viola frontalmente a duração razoável do processo (artigos 5º, LXXVIII, da CF e 4º, 6º, 139, II, do novo CPC) e a efetividade (artigo 8º do novo CPC), verdadeiros cânones do processo civil.
Em resumo, entendemos que, no contexto do novo CPC, não faz mais sentido o despacho “ao magistrado vinculado”, sobretudo de forma automática, especialmente quando o embargante aponta omissão ou erro material na decisão. Ainda que se trate de obscuridade ou contradição, cabe ao juiz examinar as alegações e decidir, à luz da boa-fé e da cooperação. Excepcionalmente, se entender que o vício apontado tem o condão de comprometer a higidez e a integridade do decisum, pode eventualmente determinar a remessa ao magistrado prolator da decisão embargada, desde que, porém, o faça de forma fundamentada (artigos 11 e 489).
[1] “Ao ilustre magistrado prolator da decisão” (Processo 0008962-24.2011, 4ª Vara Empresarial do TJ-RJ, em 21/11/16).
[2] MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2008.
[3] “Os embargos produzem o chamado efeito integrativo, objetivando integrar, complementar, aperfeiçoar a decisão embargada, com vistas a exaurir a prestação jurisdicional que se encontra inacabada, imperfeita ou incompleta.” (DIDIER JR, Fredie; DA CUNHA, Leonardo Carneiro. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 264).
[4] REsp 149.366/SC.
[5] REsp 786.150/RJ; AgRg no Ag 654.298/RS.
[6] No âmbito do processo penal, o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença (artigo 399, parágrafo 2º).
[7] COSTA NETO, José Wellington Bezerra da. Precedentes no Código de Processo Civil de 2015: somos ainda a civil law? Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 258, ago./2016, p. 394.
[8] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. vol. 3. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 265.
[9] Enunciado 360 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A não oposição de embargos de declaração em caso de erro material na decisão não impede sua correção a qualquer tempo”.
[10] Em cumprimento à Meta 2 do Conselho Nacional de Justiça, alguns tribunais de Justiça implementaram os chamados Grupos de Sentença. No TJ-RJ, o Grupo de Sentença foi instituído em 2013, com o objetivo de julgar todos os processos de conhecimento ajuizados até 31 de dezembro de 2006.
Por Marcelo Mazzola e Paula de Mello Franco
Fonte: Conjur