goo.gl/PtcgQL | Com os massacres ocorridos em presídios de Manaus, Boa Vista e Patos (PB), já são 93 detentos mortos nos seis primeiros dias de 2017. Conjugada com a ineficiência estatal, tudo indica que as execuções resultaram de conflitos entre as facções rivais que controlam paralelamente os presídios. Mas esses assassinatos em penitenciárias só continuam ocorrendo pela insistência na chamada guerra às drogas, que sobrecarrega o sistema carcerário, fortalece as organizações criminosas e não reduz o uso de entorpecentes.
A situação piorou com a promulgação da nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). A norma foi editada com a intenção de atenuar o excesso de punitivismo estatal. Dessa forma, a pena de detenção de seis meses a dois anos para usuários, prevista na Lei 6.368/1976, foi substituída por advertência sobre os efeitos dos entorpecentes, prestação de serviços à comunidade e obrigação de comparecer a programa ou curso educativo (artigo 28). Além disso, a norma de 2006 ampliou o uso de medidas cautelares.
A lei também endureceu a punição para o crime de tráfico de drogas (artigo 33). A pena mínima passou de três para cinco anos de prisão, e as reparações subiram de 50 a 360 dias-multa para 500 a 1.500 dias-multa. E desde 1990, com a Lei 8.072/1990, tráfico de drogas é considerado crime hediondo (embora o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido em 2016 que o tráfico privilegiado, estabelecido no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas, não tem essa natureza).
Impulsionados pela demonização das drogas e descontentes com o fato de os consumidores não serem presos, policiais, promotores e juízes passaram a enquadrar muitos deles como traficantes. Tal classificação pode ser feita devido à ausência de critérios objetivos para determinar quais quantidades de entorpecentes configuram posse para uso próprio e quais demonstram atividade comercial.
A mudança resultou em uma explosão do número de presos por tráfico de entorpecentes. Em 2005, eram 31.520 detidos por esse crime, o equivalente a 9% da população carcerária do país, que então contava com 361.402 pessoas, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça. Já em 2014, o número de presos por tráfico subiu para 174.216, e esse delito passou a ser o que mais leva gente para as penitenciárias: 28% dos 622.202 detentos do Brasil. Esse percentual é ainda maior quando a conta inclui apenas mulheres: 64% das presidiárias estão encarceradas pelo artigo 33 da Lei de Drogas.
A intensificação da guerra às drogas aumentou o poder de facções criminosas que vendem esses produtos. Isso porque quanto mais traficantes são presos, mais escassos ficam os entorpecentes, afirma o juiz em Santa Catarina Alexandre Morais da Rosa, colunista da ConJur. Segundo ele, com menor oferta, os preços das drogas sobem, aumentando o lucro das organizações criminosas.
De acordo com a Organização das Nações Unidas, o narcotráfico movimenta US$ 320 bilhões anualmente no mundo. No Brasil, o Ministério Público de São Paulo e a Polícia Federal estimam que a facção originada nos presídios de São Paulo, a maior quadrilha nacional, tenha faturamento de R$ 200 milhões por ano. Desse valor, 80% vem de drogas, avalia a Polícia Civil paulista.
Uma vez que esse mercado é ilegal, as disputas são resolvidas por meios violentos, aponta o juiz da Vara das Execuções Penais de Manaus Luís Carlos Honório de Valois. Para ilustrar seu argumento, ele – que foi chamado pelo governo estadual para participar das negociações pelo fim do conflito no Complexo Penitenciário Anísio Jobim que terminou com a morte de 56 presos – faz um paralelo com os donos de bares.
“O tráfico de drogas é um mercado descontrolado. O dono de uma boca de fumo mata quem abrir outra boca próxima à sua, porque ele não pode ir ao Procon ou ao Judiciário. Mas isso não ocorre com donos de bares. O proprietário de um não mata o seu concorrente”, analisa.
Como traficantes são os criminosos mais comuns em presídios, a disputa por mercado acaba se estendendo a esses estabelecimentos, diz a juíza aposentada Maria Lúcia Karam. “Sem dúvida, é a guerra às drogas e a busca por mercados que gera massacres como esses dessa semana”.
Esse cenário só será alterado com a regulamentação das drogas. Mas não apenas da maconha, que tem compra e uso permitidos na Holanda, Uruguai e estados norte-americanos como Colorado e Califórnia. A situação somente mudará de verdade quando a cocaína, responsável pela maior parte dos lucros dos traficantes, deixar de ser criminalizada. Há muito mais usuários dessa droga do que as pessoas pensam, afirma o jornalista italiano Roberto Saviano no livro ZeroZeroZero (Companhia das Letras).
“Quem cheira está ao seu lado. É o policial que está a ponto de te parar, que cheira faz anos, e agora todos se deram conta e escrevem cartas anônimas que mandam a seus superiores esperando que o suspendam antes que faça alguma besteira. Se não é ele, é o advogado que você vai consultar para o seu divórcio. É o juiz que se pronunciará sobre sua causa cível e não considera o pó um vício, só uma ajuda para gozar a vida”, diz trecho da obra.
Contudo, os especialistas ouvidos pela ConJur acreditam que o cenário sanguinário, tanto dentro quanto fora das prisões, só mudará de verdade com a regulamentação de todas as drogas. Com isso, os entorpecentes não seriam mais considerados uma questão de segurança, mas um assunto de saúde pública, como já ocorre com o tabaco e o álcool.
Para Maria Lúcia Karam, a violência só existe porque o mercado é ilegal. Tanto que, quando o álcool ficou proibido nos EUA, entre 1920 e 1933, aumentou a incidência crimes fatais.
Luís Carlos Valois tem visão semelhante. O juiz, que tratou do assunto em sua tese de doutorado, alega que a definição de quais substâncias seriam consideradas legais e quais seriam proibidas foi totalmente arbitrária. “Não há estudos sérios comparando os efeitos das drogas”, declara, notando que todas as civilizações faziam uso de algum tipo de entorpecente.
A legalização não necessária, mas antes disso, é preciso desmilitarizar as polícias, ressalta Alexandre Morais da Rosa (foto abaixo). A seu ver, somente com o fim da “lógica de guerra” nas ruas que a regulamentação das drogas poderia ser efetivamente encarada como assunto de saúde pública.
Sem ter que se preocupar com o tráfico, policiais combateriam de maneira mais eficaz furtos, roubos e sequestros, afirma Valois. E essa mudança liberaria recursos empregados na guerra às drogas e em presídios para saúde e educação, diz Morais da Rosa.
Já Maria Lúcia entende que outros crimes não teriam a mesma dimensão do tráfico, já que são atividades individualizadas, e não produtivas, como aquele delito. A ex-juíza ainda cita os traficantes poderiam continuar exercendo essa função dentro do mercado legal.
Governo na contramão
Entretanto, as medidas anunciadas pelo presidente Michel Temer para reduzir os massacres em presídios no país são totalmente diferentes às recomendadas por Alexandre Morais da Rosa, Luís Carlos Valois e Maria Lúcia Karam. Além disso, não resolvem os problemas da questão carcerária.
Temer prometeu repasses de R$ 800 milhões para a construção de, pelo menos, uma nova penitenciária em cada estado, além de cinco novas cadeias federais para criminosos de alta periculosidade.
Na mesma linha de seu chefe, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, afirmou em dezembro que lançará em breve um plano de redução de homicídios focado em ações policiais, sem a participação de pastas da área social. Entre as medidas estarão o aumento do tempo necessário para progressão da pena (atualmente, o condenado deve cumprir um sexto de sua punição para ir para outro regime; se cometeu crime hediondo, mas é réu primário, dois quintos; se já tivesse antecedentes, três quintos) e a intensificação do combate às drogas.
Por Sérgio Rodas
Fonte: Conjur
A situação piorou com a promulgação da nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). A norma foi editada com a intenção de atenuar o excesso de punitivismo estatal. Dessa forma, a pena de detenção de seis meses a dois anos para usuários, prevista na Lei 6.368/1976, foi substituída por advertência sobre os efeitos dos entorpecentes, prestação de serviços à comunidade e obrigação de comparecer a programa ou curso educativo (artigo 28). Além disso, a norma de 2006 ampliou o uso de medidas cautelares.
A lei também endureceu a punição para o crime de tráfico de drogas (artigo 33). A pena mínima passou de três para cinco anos de prisão, e as reparações subiram de 50 a 360 dias-multa para 500 a 1.500 dias-multa. E desde 1990, com a Lei 8.072/1990, tráfico de drogas é considerado crime hediondo (embora o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido em 2016 que o tráfico privilegiado, estabelecido no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas, não tem essa natureza).
Impulsionados pela demonização das drogas e descontentes com o fato de os consumidores não serem presos, policiais, promotores e juízes passaram a enquadrar muitos deles como traficantes. Tal classificação pode ser feita devido à ausência de critérios objetivos para determinar quais quantidades de entorpecentes configuram posse para uso próprio e quais demonstram atividade comercial.
A mudança resultou em uma explosão do número de presos por tráfico de entorpecentes. Em 2005, eram 31.520 detidos por esse crime, o equivalente a 9% da população carcerária do país, que então contava com 361.402 pessoas, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça. Já em 2014, o número de presos por tráfico subiu para 174.216, e esse delito passou a ser o que mais leva gente para as penitenciárias: 28% dos 622.202 detentos do Brasil. Esse percentual é ainda maior quando a conta inclui apenas mulheres: 64% das presidiárias estão encarceradas pelo artigo 33 da Lei de Drogas.
A intensificação da guerra às drogas aumentou o poder de facções criminosas que vendem esses produtos. Isso porque quanto mais traficantes são presos, mais escassos ficam os entorpecentes, afirma o juiz em Santa Catarina Alexandre Morais da Rosa, colunista da ConJur. Segundo ele, com menor oferta, os preços das drogas sobem, aumentando o lucro das organizações criminosas.
De acordo com a Organização das Nações Unidas, o narcotráfico movimenta US$ 320 bilhões anualmente no mundo. No Brasil, o Ministério Público de São Paulo e a Polícia Federal estimam que a facção originada nos presídios de São Paulo, a maior quadrilha nacional, tenha faturamento de R$ 200 milhões por ano. Desse valor, 80% vem de drogas, avalia a Polícia Civil paulista.
Uma vez que esse mercado é ilegal, as disputas são resolvidas por meios violentos, aponta o juiz da Vara das Execuções Penais de Manaus Luís Carlos Honório de Valois. Para ilustrar seu argumento, ele – que foi chamado pelo governo estadual para participar das negociações pelo fim do conflito no Complexo Penitenciário Anísio Jobim que terminou com a morte de 56 presos – faz um paralelo com os donos de bares.
“O tráfico de drogas é um mercado descontrolado. O dono de uma boca de fumo mata quem abrir outra boca próxima à sua, porque ele não pode ir ao Procon ou ao Judiciário. Mas isso não ocorre com donos de bares. O proprietário de um não mata o seu concorrente”, analisa.
Como traficantes são os criminosos mais comuns em presídios, a disputa por mercado acaba se estendendo a esses estabelecimentos, diz a juíza aposentada Maria Lúcia Karam. “Sem dúvida, é a guerra às drogas e a busca por mercados que gera massacres como esses dessa semana”.
Única saída
A guerra às drogas já consumiu mais de US$ 1 trilhão, conforme a London School of Economics, sendo responsável por 40% dos presos do mundo. O problema é que esse embate é como enxugar gelo, pois há uma grande procura por entorpecentes — segundo a ONU, são 243 milhões de usuários no planeta.Esse cenário só será alterado com a regulamentação das drogas. Mas não apenas da maconha, que tem compra e uso permitidos na Holanda, Uruguai e estados norte-americanos como Colorado e Califórnia. A situação somente mudará de verdade quando a cocaína, responsável pela maior parte dos lucros dos traficantes, deixar de ser criminalizada. Há muito mais usuários dessa droga do que as pessoas pensam, afirma o jornalista italiano Roberto Saviano no livro ZeroZeroZero (Companhia das Letras).
“Quem cheira está ao seu lado. É o policial que está a ponto de te parar, que cheira faz anos, e agora todos se deram conta e escrevem cartas anônimas que mandam a seus superiores esperando que o suspendam antes que faça alguma besteira. Se não é ele, é o advogado que você vai consultar para o seu divórcio. É o juiz que se pronunciará sobre sua causa cível e não considera o pó um vício, só uma ajuda para gozar a vida”, diz trecho da obra.
Descriminalização
Uma saída seria a descriminalização do uso de drogas, como defende o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. “Se a gente for olhar, uma boa desse recrudescimento das prisões está associado ao tráfico de drogas. E aí vem aquela situação do usuário que também trafica para suprir o vício. E a Justiça não consegue distingui-lo”, disse à BBC. A questão está sendo analisada pelo STF, e já conta com três votos a favor do fim da tipificação: Gilmar manifestou-se pela extensão da medida a todos entorpecentes; Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, limitaram-se à liberação da maconha.Contudo, os especialistas ouvidos pela ConJur acreditam que o cenário sanguinário, tanto dentro quanto fora das prisões, só mudará de verdade com a regulamentação de todas as drogas. Com isso, os entorpecentes não seriam mais considerados uma questão de segurança, mas um assunto de saúde pública, como já ocorre com o tabaco e o álcool.
Para Maria Lúcia Karam, a violência só existe porque o mercado é ilegal. Tanto que, quando o álcool ficou proibido nos EUA, entre 1920 e 1933, aumentou a incidência crimes fatais.
Luís Carlos Valois tem visão semelhante. O juiz, que tratou do assunto em sua tese de doutorado, alega que a definição de quais substâncias seriam consideradas legais e quais seriam proibidas foi totalmente arbitrária. “Não há estudos sérios comparando os efeitos das drogas”, declara, notando que todas as civilizações faziam uso de algum tipo de entorpecente.
A legalização não necessária, mas antes disso, é preciso desmilitarizar as polícias, ressalta Alexandre Morais da Rosa (foto abaixo). A seu ver, somente com o fim da “lógica de guerra” nas ruas que a regulamentação das drogas poderia ser efetivamente encarada como assunto de saúde pública.
Outros crimes
Um argumento usado por aqueles que são contra a legalização das drogas é que os traficantes passariam a praticar crimes mais violentos, como furtos, roubos e sequestros. Os magistrados entrevistados pela ConJur até admitem haver uma chance de isso ocorrer, mas opinam que os efeitos da regulamentação compensariam um eventual aumento inicial de outros delitos.Já Maria Lúcia entende que outros crimes não teriam a mesma dimensão do tráfico, já que são atividades individualizadas, e não produtivas, como aquele delito. A ex-juíza ainda cita os traficantes poderiam continuar exercendo essa função dentro do mercado legal.
Governo na contramão
Entretanto, as medidas anunciadas pelo presidente Michel Temer para reduzir os massacres em presídios no país são totalmente diferentes às recomendadas por Alexandre Morais da Rosa, Luís Carlos Valois e Maria Lúcia Karam. Além disso, não resolvem os problemas da questão carcerária.
Temer prometeu repasses de R$ 800 milhões para a construção de, pelo menos, uma nova penitenciária em cada estado, além de cinco novas cadeias federais para criminosos de alta periculosidade.
Na mesma linha de seu chefe, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, afirmou em dezembro que lançará em breve um plano de redução de homicídios focado em ações policiais, sem a participação de pastas da área social. Entre as medidas estarão o aumento do tempo necessário para progressão da pena (atualmente, o condenado deve cumprir um sexto de sua punição para ir para outro regime; se cometeu crime hediondo, mas é réu primário, dois quintos; se já tivesse antecedentes, três quintos) e a intensificação do combate às drogas.
Por Sérgio Rodas
Fonte: Conjur