goo.gl/8pbtLq | Há pouco dias, a Segunda Turma do STF colocou em pauta o julgamento de uma tentativa de furto de chicletes e desodorantes no valor total de R$ 42,00 (isso mesmo, quarenta e dois reais!). Por 3 votos a 2, o habeas corpus impetrado a favor da acusada foi julgado procedente e a ação penal, trancada. Em placar apertado, considerou-se que sua conduta resultou em lesividade insignificante e, portanto, não configuraria crime. Depois de tantos recursos e muito constrangimento, a mais alta corte brasileira desperdiçou parte de seu tempo para analisar o caso de uma pessoa que enfiara dois frascos de desodorante e cinco chicletes em sua bolsa e fora descoberta pelo segurança do estabelecimento comercial, com a respectiva recuperação dos objetos. Votaram pelo não reconhecimento da ordem de habeas corpus os ministros Lewandowisk e Fachin, respectivamente, relator e revisor. Os três votos vencedores, que reconheceram a atipicidade do fato, vieram dos ministros Toffoli, Celso de Mello e Gilmar Mendes.
O que mais surpreende, nesse caso, é o desperdício de tempo para analisar um caso banal, que sequer trouxe prejuízo ao estabelecimento comercial. Há casos mais importantes e que poderão gerar maiores repercussões, como a criminalização do porte de drogas para uso próprio, que estão parados há tempos ou sequer chegam a ser julgados. Não é certo furtar, porém, também não é certo travar a pauta de julgamentos da mais alta corte com casos que não merecem tratamento penal. E aí reside outro problema, quase um tabu, que é a aplicação da justiça restaurativa na esfera penal para crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça. A cultura do punitivismo e a falsa ideia de que os problemas se resolvem com aparato repressivo impedem o sistema penal de dar um passo adiante e acatar as diretrizes para um direito penal mínimo que se ocupe apenas de lesões significativas.
Não é necessário expor mais dados, pois já foram divulgados à exaustão, mas vale sempre lembrar que, segundo dados do Infopen, quase dois terços dos condenados no Brasil praticaram furto, roubo ou tráfico (normalmente, pequenos traficantes). Enquanto isso, a fatia de quem praticou crimes contra a Administração Pública não atinge 1% das condenações. Quer dizer, perde-se muita energia para perseguir crimes menores e fecham-se os olhos para a corrupção que devasta o país de forma imensurável. Poucas são as condenações por peculato ou fraude em licitações, por exemplo, o que demonstra certa complacência com os criminosos de maior poder aquisitivo. Ao deixar de lado os crimes inofensivos, cuja lesão pode ser reparada por composição entre as partes, sobrará mais tempo e maior efetivo para combater as infrações mais graves, mas, para isso, deve haver vontade política.
Quando um Ministro do STF afirma, em voto condenatório, que “em épocas de crise, seria esperado que índices de furto aumentassem e o Poder Judiciário teria que dar uma resposta satisfatória para não ser conivente com isso”, percebe-se claramente o uso do direito penal para tentar resolver problemas sociais. Essa cultura do uso do aparato repressivo para solucionar questões de todas as ordens faz parte da população em geral – o que é explicável, devido à baixa consciência de cidadania – no entanto, é inaceitável que aqueles que possuem formação jurídica pensem assim. Um Ministro do STF não é um leigo, muito menos iletrado. Quando a paixão toma conta de um magistrado no caso concreto, o melhor a fazer é declarar-se suspeito e não julgar. Deixar a decisão a quem preserva o mínimo de razão e técnica jurídica é demonstração de humildade e zelo pela ordem jurídica.
Humildade, porém, não pode faltar aos julgadores, que sempre precisam estudar e estar cientes de sua função na sociedade. O primeiro requisito para um fato ser crime é o juízo de tipicidade. Acontece que o conceito meramente formal de tipicidade está há muito superado pela tipicidade material, que está diretamente ligada à ofensividade da conduta. Quer dizer, se o comportamento praticado pelo agente estiver descrito pelo tipo penal, porém, se não representar perigo ao bem jurídico tutelado, não há tipicidade. A danosidade social é indissociável do delito e deve ser interpretada como uma lesão merecedora da repressão penal, devido à sua relevância para a estabilidade de determinada comunidade. O furto de pequeno valor, especificamente, não possui “dignidade penal” para ser objeto de um processo que tem início na primeira instância e chega à corte mais alta.
O próprio STF vem se manifestando sobre delitos insignificantes, mesmo que de forma deficitária. Predomina o entendimento de que o fato será atípico pela existência cumulativa dos seguintes requisitos: “a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada” (RHC nº 122.464/BA-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 12/8/14). Há alguns problemas interpretativos na posição do STF, pois não há critérios suficientes para distinguir os requisitos entre si. Além disso, o grau de reprovabilidade da conduta é problema de culpabilidade, enquanto a lesividade do comportamento diz respeito à tipicidade. Não raro, a reincidência do agente é óbice à aplicação da insignificância do delito, numa clara demonstração de confusão dogmática, pois ser reincidente afeta a aplicação da pena, num momento posterior à confirmação do crime.
A aplicação da insignificância como critério de interpretação da tipicidade ainda gera problemas na jurisprudência. Os critérios de avaliação do juízo de tipicidade não se confundem com a reprovabilidade da conduta, que incide no juízo de culpabilidade. Não se deve levar em consideração a repercussão social do fato porque, nesse caminho, o bem jurídico no caso concreto corre o risco de ser desprezado. Há um desvirtuamento do próprio direito penal, pois sua função é delimitar o poder punitivo do Estado na proteção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora. Se a jurisprudência insiste em recorrer a critérios da culpabilidade para aferir a tipicidade do fato e confirmar a condenação, também deveria fazer o mesmo para eximir o agente de pena, reconhecendo-se, por exemplo, a culpabilidade por vulnerabilidade.
Já passou da hora de o Estado resolver pequenos furtos – especialmente os tentados, quando o bem é recuperado – na esfera administrativa. Não há razão para provocar o Poder Judiciário, nem em primeira instância, muito menos nos tribunais, quando houver uma pequena lesão patrimonial, sem violência ou grave ameaça. Deve-se buscar a solução pela composição civil, seja qual for a modalidade. Não se pode permitir o uso do aparato penal para ofensas insignificantes, pois isso significa colocar alguém na posição de réu no processo criminal, trazendo-lhe prejuízos muito superiores ao dano provocado, e desperdiçar verba pública com trabalho de investigação e persecução criminal. O Estado tem que racionalizar a justiça penal, restringindo-a a casos realmente perigosos, para a proteção de bens jurídicos essenciais para a comunidade. Em tempos de crise econômica, política e moral, cabe ao Poder Judiciário e ao Ministério Público prezar pelos princípio do Estado democrático de direito, dentre os quais o da lesividade, da fragmentariedade e da subsidiariedade do direito penal.
Por João Paulo Orsini Martinelli é Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre e Doutor em Direito Penal (Universidade de São Paulo), Pós-Doutor em Direitos Humanos (Universidade de Coimbra), Advogado Criminalista, Coordenador-adjunto no IBCCRIM no Rio de Janeiro.
Fonte: emporiododireito
O que mais surpreende, nesse caso, é o desperdício de tempo para analisar um caso banal, que sequer trouxe prejuízo ao estabelecimento comercial. Há casos mais importantes e que poderão gerar maiores repercussões, como a criminalização do porte de drogas para uso próprio, que estão parados há tempos ou sequer chegam a ser julgados. Não é certo furtar, porém, também não é certo travar a pauta de julgamentos da mais alta corte com casos que não merecem tratamento penal. E aí reside outro problema, quase um tabu, que é a aplicação da justiça restaurativa na esfera penal para crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça. A cultura do punitivismo e a falsa ideia de que os problemas se resolvem com aparato repressivo impedem o sistema penal de dar um passo adiante e acatar as diretrizes para um direito penal mínimo que se ocupe apenas de lesões significativas.
Não é necessário expor mais dados, pois já foram divulgados à exaustão, mas vale sempre lembrar que, segundo dados do Infopen, quase dois terços dos condenados no Brasil praticaram furto, roubo ou tráfico (normalmente, pequenos traficantes). Enquanto isso, a fatia de quem praticou crimes contra a Administração Pública não atinge 1% das condenações. Quer dizer, perde-se muita energia para perseguir crimes menores e fecham-se os olhos para a corrupção que devasta o país de forma imensurável. Poucas são as condenações por peculato ou fraude em licitações, por exemplo, o que demonstra certa complacência com os criminosos de maior poder aquisitivo. Ao deixar de lado os crimes inofensivos, cuja lesão pode ser reparada por composição entre as partes, sobrará mais tempo e maior efetivo para combater as infrações mais graves, mas, para isso, deve haver vontade política.
Quando um Ministro do STF afirma, em voto condenatório, que “em épocas de crise, seria esperado que índices de furto aumentassem e o Poder Judiciário teria que dar uma resposta satisfatória para não ser conivente com isso”, percebe-se claramente o uso do direito penal para tentar resolver problemas sociais. Essa cultura do uso do aparato repressivo para solucionar questões de todas as ordens faz parte da população em geral – o que é explicável, devido à baixa consciência de cidadania – no entanto, é inaceitável que aqueles que possuem formação jurídica pensem assim. Um Ministro do STF não é um leigo, muito menos iletrado. Quando a paixão toma conta de um magistrado no caso concreto, o melhor a fazer é declarar-se suspeito e não julgar. Deixar a decisão a quem preserva o mínimo de razão e técnica jurídica é demonstração de humildade e zelo pela ordem jurídica.
Humildade, porém, não pode faltar aos julgadores, que sempre precisam estudar e estar cientes de sua função na sociedade. O primeiro requisito para um fato ser crime é o juízo de tipicidade. Acontece que o conceito meramente formal de tipicidade está há muito superado pela tipicidade material, que está diretamente ligada à ofensividade da conduta. Quer dizer, se o comportamento praticado pelo agente estiver descrito pelo tipo penal, porém, se não representar perigo ao bem jurídico tutelado, não há tipicidade. A danosidade social é indissociável do delito e deve ser interpretada como uma lesão merecedora da repressão penal, devido à sua relevância para a estabilidade de determinada comunidade. O furto de pequeno valor, especificamente, não possui “dignidade penal” para ser objeto de um processo que tem início na primeira instância e chega à corte mais alta.
O próprio STF vem se manifestando sobre delitos insignificantes, mesmo que de forma deficitária. Predomina o entendimento de que o fato será atípico pela existência cumulativa dos seguintes requisitos: “a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada” (RHC nº 122.464/BA-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 12/8/14). Há alguns problemas interpretativos na posição do STF, pois não há critérios suficientes para distinguir os requisitos entre si. Além disso, o grau de reprovabilidade da conduta é problema de culpabilidade, enquanto a lesividade do comportamento diz respeito à tipicidade. Não raro, a reincidência do agente é óbice à aplicação da insignificância do delito, numa clara demonstração de confusão dogmática, pois ser reincidente afeta a aplicação da pena, num momento posterior à confirmação do crime.
A aplicação da insignificância como critério de interpretação da tipicidade ainda gera problemas na jurisprudência. Os critérios de avaliação do juízo de tipicidade não se confundem com a reprovabilidade da conduta, que incide no juízo de culpabilidade. Não se deve levar em consideração a repercussão social do fato porque, nesse caminho, o bem jurídico no caso concreto corre o risco de ser desprezado. Há um desvirtuamento do próprio direito penal, pois sua função é delimitar o poder punitivo do Estado na proteção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora. Se a jurisprudência insiste em recorrer a critérios da culpabilidade para aferir a tipicidade do fato e confirmar a condenação, também deveria fazer o mesmo para eximir o agente de pena, reconhecendo-se, por exemplo, a culpabilidade por vulnerabilidade.
Já passou da hora de o Estado resolver pequenos furtos – especialmente os tentados, quando o bem é recuperado – na esfera administrativa. Não há razão para provocar o Poder Judiciário, nem em primeira instância, muito menos nos tribunais, quando houver uma pequena lesão patrimonial, sem violência ou grave ameaça. Deve-se buscar a solução pela composição civil, seja qual for a modalidade. Não se pode permitir o uso do aparato penal para ofensas insignificantes, pois isso significa colocar alguém na posição de réu no processo criminal, trazendo-lhe prejuízos muito superiores ao dano provocado, e desperdiçar verba pública com trabalho de investigação e persecução criminal. O Estado tem que racionalizar a justiça penal, restringindo-a a casos realmente perigosos, para a proteção de bens jurídicos essenciais para a comunidade. Em tempos de crise econômica, política e moral, cabe ao Poder Judiciário e ao Ministério Público prezar pelos princípio do Estado democrático de direito, dentre os quais o da lesividade, da fragmentariedade e da subsidiariedade do direito penal.
Por João Paulo Orsini Martinelli é Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre e Doutor em Direito Penal (Universidade de São Paulo), Pós-Doutor em Direitos Humanos (Universidade de Coimbra), Advogado Criminalista, Coordenador-adjunto no IBCCRIM no Rio de Janeiro.
Fonte: emporiododireito