goo.gl/zGpMhH | O objetivo do presente artigo é demonstrar que nunca houve mercados livres ou espontâneos, que fossem independentes de estruturação jurídica e institucional. Nem mesmo o exemplo do século XIX pode ser utilizado para comprovar o contrário, uma vez que o chamado laissez-faire é, na verdade, um mito, sem qualquer correspondência com a experiência histórica.
Com efeito, sempre se mostrou necessária a regulação jurídica dos instrumentos indispensáveis para a atividade econômica, tais como contratos, sociedades, títulos de crédito, entre outros. Não seria exagero falar, desde o século XIX, na existência de um Direito Privado Econômico, criado e destinado a propiciar o crescimento e o desenvolvimento da atividade econômica.
Não é sem razão que a obra de Max Weber[1] já alertava para o fato de que o modelo de mercado exigia um direito racional, que pudesse garantir previsibilidade e segurança à atividade econômica. Por outro lado, mesmo as posições libertárias sempre reconheceram a importância do Estado para garantir ao menos a vida, a liberdade, a propriedade e a força obrigatória dos contratos.
Ocorre que, longe de serem funções simples ou triviais, a proteção da propriedade e do contrato demanda consideravelmente do Estado e do direito. Basta lembrar, como ensina Kenneth Dam[2], que, assim como a proteção da propriedade se expande em uma miríade de questões, o enforcement dos contratos envolve questões que vão desde a venda ou uso da propriedade até os mais sofisticados instrumentos financeiros, já que as finanças se operacionalizam essencialmente por contratos.
No que se refere aos contratos, a sua regulação já era extremamente sofisticada desde o século XIX, abrangendo questões como (i) moral e bons costumes como limites; (ii) causa (para os sistemas causalistas); (iii) regras de capacidade; (iv) limitações quanto ao objeto dos contratos (requisitos de licitude, possibilidade fática e jurídica, etc.); (v) reconhecimento dos vícios de vontade e dos vícios sociais; (vi) hipóteses de nulidades e anulabilidades; (vii) regulação de diversos contratos típicos, com regras cogentes e dispositivas; (viii) reconhecimento dos contratos atípicos; (ix) regras procedimentais para a validade da contratação; (x) regras de interpretação e integração dos contratos, dentre outras.
Não obstante, a experiência do século XIX mostra que a regulação jurídica dos mercados foi muito mais intensa e sofisticada do que a mera proteção da liberdade, da propriedade e dos contratos. Na verdade, o Estado assumiu o papel de verdadeiro arquiteto dos mercados, desenhando os instrumentos necessários para o desenvolvimento da atividade econômica. Daí a acertada conclusão de David Kennedy[3] de que, pelo menos desde Weber, já se observa que a formalização de direitos ou posições jurídicas – legal entitlements – é necessária para o desenvolvimento, a transparência, a informação e a sinalização de preços, a facilitação da alienação da propriedade, a redução de custos de transação, a garantia de segurança aos direitos e aos respectivos retornos econômicos, bem como para inspirar a confiança e a segurança necessárias para o investimento.
Por todas essas razões, não é exagero afirmar que, além de o laissez-faire do século XIX ter sido planejado e de a liberação dos mercados ter requerido uma “mão ativa” da intervenção estatal, nunca houve propriamente mercados livres ou independentes da regulação jurídica. A experiência histórica confirma a tese weberiana de que a atividade econômica precisa de um direito racional que assegure previsibilidade e segurança.
Logo, o que ocorreu no século XIX não foi propriamente a inexistência da regulação jurídica sobre a atividade econômica, mas sim a existência de uma regulação jurídica “sob medida”, em favor dos interesses da classe empresarial. Riper[4]t sintetizou muito bem a simbiose entre direito e economia no século XIX, ao mostrar como o capitalismo pediu o próprio direito:
O capitalismo jacta-se de dizer que nada pede, que simplesmente lhe basta a liberdade; apraz-se em repetir: deixa fazer; nada poderia fazer se o legislador não lhe tivesse dado ou permitido lançar mão dos meios próprios à concentração e à exploração de capitais. O direito comum não lhe bastava. Criou seu próprio direito.
É precisa, portanto, a conclusão de Cass Sunstein[5] no sentido de que a noção de laissez faire é uma grotesca e distorcida visão do que os livres mercados requerem e implicam, já que estes dependem do direito para que possam existir.
A experiência histórica confirma tais afirmações. Chang[6], ao criticar o que chama de “mito do livre mercado e do livre comércio”, mostra que Grã-Bretanha e EUA não avançaram porque foram os primeiros a adotar o livre mercado e o livre comércio, mas sim porque o governo desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento inicial do capitalismo. No caso específico da Grã-Bretanha, foram inúmeras as intervenções que se intensificaram em 1721, centradas em proteções tarifárias e subsídios para incentivar a exportação em indústrias estratégicas. Apenas em 1860, quase um século depois da obra de Adam Smith, a Inglaterra passou propriamente para o livre-comércio, quando a sua supremacia industrial era inquestionável.
Outros países vivenciaram situações semelhantes. Ripert[7] mostra que, na França do século XIX, quanto mais a atividade econômica se desenvolvia e expandia, mais se ampliava e enrijecia a legislação.
Outro ponto curioso é que o laissez-faire nunca ocorreu no mercado de trabalho, campo em que sempre houve grandes intervenções, especialmente contra os trabalhadores. Com efeito, constata-se no século XIX ampla atividade legiferante para adaptar trabalhadores à indústria capitalista, o que envolveu ampliação de jornadas de trabalho, fixação de salários máximos – é isso mesmo, salários máximos! –, regularização do trabalho infantil, proibição e criminalização de constituição de sindicatos, ampla utilização do poder de polícia estatal para reprimir os movimentos coletivos das classes trabalhadoras, dentre outros. Dessa maneira, o direito e o Estado foram também úteis para a subjugação da classe “trabalhadora”.
Todas essas observações nos ajudam a verificar que, assim como ensina Natalino Irti[8], o mercado não é propriamente um locus naturalis, mas sim um locus artificialis, derivando de uma técnica de direito que, em dependência com decisões políticas, confere forma à economia. Sendo os mercados espaços artificiais, jurídicos e políticos, não há espaço para se sustentar o naturalismo e o determinismo econômico, até porque a lex mercatoria nunca foi fonte originária do direito, na medida em que sempre teve por pressuposto um ordenamento estatal que lhe deixava espaços para que ela pudesse funcionar.
Natalino Irti ainda destaca que é o direito que constrói a estrada e a disciplina do tráfico e introduz critérios de obediência e uniformidade, sem o que seria impossível a interação entre os agentes econômicos, já que o mercado não funciona sem regularidade e previsibilidade, o que requer a superação da individualidade e a busca de objetividade e controle contínuo.
Daí por que as regras jurídicas, desde o século XIX, foram utilizadas com diferentes e múltiplas funções para que os mercados pudessem existir e prosperar. Além das normas proibitivas e atributivas, Natalino Irti chama a atenção para a importância das normas conformativas que, a exemplo dos tipos contratuais, têm funcionalidade instrumental, a fim de produzir efeitos regulares e constantes.
É inequívoco que existiu, portanto, um “direito do mercado” no período do chamado laissez-faire, pensado para a viabilização do próprio modelo. Consequentemente, mercado e regulação estatal da autonomia negocial são fenômenos indissociáveis. Mesmo no Estado Liberal, os mercados não se organizaram de forma meramente espontânea, mas sim a partir de uma consistente arquitetura jurídica, que foi se tornando ainda mais extensa e complexa a partir do século XX.
Logo, a partir da experiência histórica, fica claro que a regulação jurídica dos mercados não só é compatível, como é imprescindível para o funcionamento da atividade econômica. Por essa razão, a questão que deveria orientar a nossa reflexão na atualidade não é propriamente se deve ou não existir regulação jurídica dos mercados, mas sim como, em que medida e para que esta deve existir e a que interesses e valores deve atender.
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[1] WEBER, Max. Economia e Sociedade. Tradução de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Universidade de Brasília, 2000.
[2] DAM, Kenneth. The Law-Growth Nexus. The Rule of Law and Economic Development. Washington: Brooking Institution Press, 2006.
[3] KENNEDY, David. The “Rule of Law”, Political Choices, and Development Common Sense. In: TRUBEK, David; SANTOS, Alvaro. The New Law and Economic Development. A Critical Appraisal. New York, Cambridge University Press, 2006.
[4] RIPERT, Georges. Aspectos jurídicos do capitalismo moderno. Campinas: Red Livros, 2002.
[5] SUNSTEIN, Cass. Free Markets and Social Justice. New York: Oxford University Press, 1997.
[6] CHANG, Ha-Joon. Economia: modo de usar. Um guia básico dos principais conceitos econômicos. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2015.
[7] RIPERT, Op. cit.
[8] IRTI, Natalino. L’ordine giuridico del mercato. Milano: Laterza, 1998.
Por Ana Frazão - Advogada. Professora de Direito Civil e Comercial na UnB. Ex-conselheira do Cade.
Fonte: jota
Com efeito, sempre se mostrou necessária a regulação jurídica dos instrumentos indispensáveis para a atividade econômica, tais como contratos, sociedades, títulos de crédito, entre outros. Não seria exagero falar, desde o século XIX, na existência de um Direito Privado Econômico, criado e destinado a propiciar o crescimento e o desenvolvimento da atividade econômica.
Não é sem razão que a obra de Max Weber[1] já alertava para o fato de que o modelo de mercado exigia um direito racional, que pudesse garantir previsibilidade e segurança à atividade econômica. Por outro lado, mesmo as posições libertárias sempre reconheceram a importância do Estado para garantir ao menos a vida, a liberdade, a propriedade e a força obrigatória dos contratos.
Ocorre que, longe de serem funções simples ou triviais, a proteção da propriedade e do contrato demanda consideravelmente do Estado e do direito. Basta lembrar, como ensina Kenneth Dam[2], que, assim como a proteção da propriedade se expande em uma miríade de questões, o enforcement dos contratos envolve questões que vão desde a venda ou uso da propriedade até os mais sofisticados instrumentos financeiros, já que as finanças se operacionalizam essencialmente por contratos.
No que se refere aos contratos, a sua regulação já era extremamente sofisticada desde o século XIX, abrangendo questões como (i) moral e bons costumes como limites; (ii) causa (para os sistemas causalistas); (iii) regras de capacidade; (iv) limitações quanto ao objeto dos contratos (requisitos de licitude, possibilidade fática e jurídica, etc.); (v) reconhecimento dos vícios de vontade e dos vícios sociais; (vi) hipóteses de nulidades e anulabilidades; (vii) regulação de diversos contratos típicos, com regras cogentes e dispositivas; (viii) reconhecimento dos contratos atípicos; (ix) regras procedimentais para a validade da contratação; (x) regras de interpretação e integração dos contratos, dentre outras.
Não obstante, a experiência do século XIX mostra que a regulação jurídica dos mercados foi muito mais intensa e sofisticada do que a mera proteção da liberdade, da propriedade e dos contratos. Na verdade, o Estado assumiu o papel de verdadeiro arquiteto dos mercados, desenhando os instrumentos necessários para o desenvolvimento da atividade econômica. Daí a acertada conclusão de David Kennedy[3] de que, pelo menos desde Weber, já se observa que a formalização de direitos ou posições jurídicas – legal entitlements – é necessária para o desenvolvimento, a transparência, a informação e a sinalização de preços, a facilitação da alienação da propriedade, a redução de custos de transação, a garantia de segurança aos direitos e aos respectivos retornos econômicos, bem como para inspirar a confiança e a segurança necessárias para o investimento.
Por todas essas razões, não é exagero afirmar que, além de o laissez-faire do século XIX ter sido planejado e de a liberação dos mercados ter requerido uma “mão ativa” da intervenção estatal, nunca houve propriamente mercados livres ou independentes da regulação jurídica. A experiência histórica confirma a tese weberiana de que a atividade econômica precisa de um direito racional que assegure previsibilidade e segurança.
Logo, o que ocorreu no século XIX não foi propriamente a inexistência da regulação jurídica sobre a atividade econômica, mas sim a existência de uma regulação jurídica “sob medida”, em favor dos interesses da classe empresarial. Riper[4]t sintetizou muito bem a simbiose entre direito e economia no século XIX, ao mostrar como o capitalismo pediu o próprio direito:
O capitalismo jacta-se de dizer que nada pede, que simplesmente lhe basta a liberdade; apraz-se em repetir: deixa fazer; nada poderia fazer se o legislador não lhe tivesse dado ou permitido lançar mão dos meios próprios à concentração e à exploração de capitais. O direito comum não lhe bastava. Criou seu próprio direito.
É precisa, portanto, a conclusão de Cass Sunstein[5] no sentido de que a noção de laissez faire é uma grotesca e distorcida visão do que os livres mercados requerem e implicam, já que estes dependem do direito para que possam existir.
A experiência histórica confirma tais afirmações. Chang[6], ao criticar o que chama de “mito do livre mercado e do livre comércio”, mostra que Grã-Bretanha e EUA não avançaram porque foram os primeiros a adotar o livre mercado e o livre comércio, mas sim porque o governo desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento inicial do capitalismo. No caso específico da Grã-Bretanha, foram inúmeras as intervenções que se intensificaram em 1721, centradas em proteções tarifárias e subsídios para incentivar a exportação em indústrias estratégicas. Apenas em 1860, quase um século depois da obra de Adam Smith, a Inglaterra passou propriamente para o livre-comércio, quando a sua supremacia industrial era inquestionável.
Outros países vivenciaram situações semelhantes. Ripert[7] mostra que, na França do século XIX, quanto mais a atividade econômica se desenvolvia e expandia, mais se ampliava e enrijecia a legislação.
Outro ponto curioso é que o laissez-faire nunca ocorreu no mercado de trabalho, campo em que sempre houve grandes intervenções, especialmente contra os trabalhadores. Com efeito, constata-se no século XIX ampla atividade legiferante para adaptar trabalhadores à indústria capitalista, o que envolveu ampliação de jornadas de trabalho, fixação de salários máximos – é isso mesmo, salários máximos! –, regularização do trabalho infantil, proibição e criminalização de constituição de sindicatos, ampla utilização do poder de polícia estatal para reprimir os movimentos coletivos das classes trabalhadoras, dentre outros. Dessa maneira, o direito e o Estado foram também úteis para a subjugação da classe “trabalhadora”.
Todas essas observações nos ajudam a verificar que, assim como ensina Natalino Irti[8], o mercado não é propriamente um locus naturalis, mas sim um locus artificialis, derivando de uma técnica de direito que, em dependência com decisões políticas, confere forma à economia. Sendo os mercados espaços artificiais, jurídicos e políticos, não há espaço para se sustentar o naturalismo e o determinismo econômico, até porque a lex mercatoria nunca foi fonte originária do direito, na medida em que sempre teve por pressuposto um ordenamento estatal que lhe deixava espaços para que ela pudesse funcionar.
Natalino Irti ainda destaca que é o direito que constrói a estrada e a disciplina do tráfico e introduz critérios de obediência e uniformidade, sem o que seria impossível a interação entre os agentes econômicos, já que o mercado não funciona sem regularidade e previsibilidade, o que requer a superação da individualidade e a busca de objetividade e controle contínuo.
Daí por que as regras jurídicas, desde o século XIX, foram utilizadas com diferentes e múltiplas funções para que os mercados pudessem existir e prosperar. Além das normas proibitivas e atributivas, Natalino Irti chama a atenção para a importância das normas conformativas que, a exemplo dos tipos contratuais, têm funcionalidade instrumental, a fim de produzir efeitos regulares e constantes.
É inequívoco que existiu, portanto, um “direito do mercado” no período do chamado laissez-faire, pensado para a viabilização do próprio modelo. Consequentemente, mercado e regulação estatal da autonomia negocial são fenômenos indissociáveis. Mesmo no Estado Liberal, os mercados não se organizaram de forma meramente espontânea, mas sim a partir de uma consistente arquitetura jurídica, que foi se tornando ainda mais extensa e complexa a partir do século XX.
Logo, a partir da experiência histórica, fica claro que a regulação jurídica dos mercados não só é compatível, como é imprescindível para o funcionamento da atividade econômica. Por essa razão, a questão que deveria orientar a nossa reflexão na atualidade não é propriamente se deve ou não existir regulação jurídica dos mercados, mas sim como, em que medida e para que esta deve existir e a que interesses e valores deve atender.
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[1] WEBER, Max. Economia e Sociedade. Tradução de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Universidade de Brasília, 2000.
[2] DAM, Kenneth. The Law-Growth Nexus. The Rule of Law and Economic Development. Washington: Brooking Institution Press, 2006.
[3] KENNEDY, David. The “Rule of Law”, Political Choices, and Development Common Sense. In: TRUBEK, David; SANTOS, Alvaro. The New Law and Economic Development. A Critical Appraisal. New York, Cambridge University Press, 2006.
[4] RIPERT, Georges. Aspectos jurídicos do capitalismo moderno. Campinas: Red Livros, 2002.
[5] SUNSTEIN, Cass. Free Markets and Social Justice. New York: Oxford University Press, 1997.
[6] CHANG, Ha-Joon. Economia: modo de usar. Um guia básico dos principais conceitos econômicos. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2015.
[7] RIPERT, Op. cit.
[8] IRTI, Natalino. L’ordine giuridico del mercato. Milano: Laterza, 1998.
Por Ana Frazão - Advogada. Professora de Direito Civil e Comercial na UnB. Ex-conselheira do Cade.
Fonte: jota