goo.gl/fC73jd | A antecipação da idade prevista para que as crianças brasileiras estejam plenamente alfabetizadas em todas as escolas brasileiras, anunciada junto com a terceira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) pelo Ministério da Educação nesta quinta-feira (6), levantou um debate sobre como o Brasil deve formar seus estudantes na primeira infância. Até a segunda versão da Base, a idade considerada "certa" para a alfabetização plena era por volta dos oito anos, durante o 3º ano do ensino fundamental. Na terceira versão, esse cronograma foi antecipado para os sete anos, quando as crianças estão matriculadas no 2º ano do fundamental.
A mudança vai exigir mudanças em pelo menos 146 mil escolas públicas, onde estudam 7,5 milhões de alunos de 6 a 8 anos, além das pré-escolas, para alunos de 4 e 5 anos. Veja os principais pontos sobre o assunto:
A partir de 2009, com a obrigatoriedade do ensino universal se estendendo para as crianças a partir de quatro anos, a expectativa é de que o processo de alfabetização não comece diretamente no primeiro ano escolar do aluno, e que haja um período de adaptação antes dele. Especialistas em educação infantil, porém, ressaltam que adequar as escolas públicas à tendência das escolas particulares pode afetar negativamente o desenvolvimento e o amadurecimento das crianças. Segundo a pesquisadora e professora Maria Carmen Silveira Barbosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a antecipação em um ano da alfabetização plena não muda apenas os objetivos de aprendizagem do ensino fundamental, mas também alterou os objetivos do ensino infantil.
"Ora, a oralidade está presente em todos os campos, pois é uma das grandes pautas do desenvolvimento infantil entre zero e cinco anos. Quanto à escrita, quando a retiramos do contexto cultural, ela acaba virando código, letra, som. Acho que, nesse caso, podemos falar de empobrecimento do campo de experiência", disse a professora. "Gostaria também de comentar que a imaginação não é algo inato nos seres humanos. Nós aprendemos a imaginar, assim como a brincar. E somente imaginamos se convivemos com pessoas que imaginam ou em ambientes onde a imaginação é aceita."
De acordo com Carmen, muitos adultos tendem a acreditar que "a inteligência de uma criança pode ser medida pela sua capacidade de ler e escrever cada vez mais cedo, e que esta precocidade pode levá-la, em linha direta, ao êxito profissional". Porém, diz a pesquisadora, isso não vale para todas as pessoas.
"Podemos oferecer um ambiente onde a cultura e a linguagem escrita estejam presentes, na mesma medida em que outras linguagens, como a musical, que também lemos e escrevemos, ou a do desenho, ou a das construções, e deixar que as crianças possam fazer suas interlocuções, experiências, escolhas, cada uma no seu próprio tempo. Segundo alguns pesquisadores, em torno dos seis ou sete anos, elas certamente serão mais capazes de ler e escrever sem serem obrigadas a tal atividades."
A professora ressalta que as duas últimas versões da Base oferecem, de certa forma, duas perspectivas distintas de como educar os pequenos. Por um lado, está a ideia de privilegia a "dupla tarefa" das crianças de até cinco anos: "conhecer o mundo e, ao mesmo tempo, constituir-se como pessoa". De outro, está a perspectiva "da educação como, principalmente, a instrumentalização das crianças em conteúdos científicos fragmentados, com direção única, com respostas fechadas".
O Brasil tem 183.507 escolas de ensino fundamental, segundo o Censo Escolar de 2015. Dessas, 80% são públicas (Foto: Editoria de Arte/G1)
"As crianças só estão 'neuropsicologicamente' formadas para a alfabetização aos sete anos", explica ela. Já a criança de seis anos "ainda precisa da educação infantil nessa fase para desenvolver a coordenação motora e as habilidades sociais", afirma Cynthia. "Sendo assim, ela não consegue se alfabetizar, justamente por não ter condições de aprender a ler e a escrever."
Cynthia diz que entre as consequências registradas pela antecipação da alfabetização está o aumento de crianças de seis anos encaminhadas aos consultórios de psicopedagogia, porque não conseguiam acompanhar a mudança. A questão demanda, das escolas, atenção redobrada para reconhecer as dificuldades de aprendizagem e corrigi-las antes que atrapalhem o resto do percurso escolar. "Se isso [a alfabetização aos sete anos] não ocorrer, é preciso reter o aluno e buscar solucionar a situação", diz a psicopedagoga.
Luciana Barros de Almeida, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp), reitera que, embora a fase de alfabetização infantil seja um ciclo que começa aos seis anos e termina aos oito, seu "ápice" ocorre nos seis e sete anos de idade. Porém, ela diz que "condições motoras e emocionais têm um desenvolvimento gradual", e que as crianças podem apresentar diferenças neste processo, o que exige o envolvimento de perto da equipe escolar e dos pais.
"Apesar da proposição de que a alfabetização ocorra até o 2º ano do ensino fundamental (7 anos), se uma criança não consegue inicialmente, isso não é um problema apenas dela. Pelo contrário requer mais a dedicação dos adultos envolvidos (família, professor, demais profissionais). Todo desenvolvimento requer envolvimento de todos", disse Luciana.
A professora Carmen Barbosa, da UFRGS, lembra que, durante o processo de universalização do ensino na década de 90, "com a ampliação da presença das crianças de classe popular na escola, apenas 60% delas saíam alfabetizadas aos sete anos, as demais repetiam uma ou duas vezes a primeira série". Com a mudança, ela afirma que a Base privilegia "uma educação fácil de reproduzir, barata e possível de se avaliar em larga escala". Ter todas as crianças aprendendo no mesmo ritmo, "fazendo provas e centrada, muitas vezes, apenas na língua escrita", pode parecer um bom padrão, porém, segundo ela, acaba sendo excludente.
Na Base do ensino fundamental, a terceira versão trouxe diversos novos elementos e textos reescritos. Alguns objetivos que eram do 3º ano na segunda versão foram transportados para o 2º ano, como, por exemplo, "ler textos literários de forma autônoma" e "formular hipóteses sobre o conteúdo de textos, com base em títulos, legendas, imagens e pistas gráficas".
Veja abaixo alguns dos elementos da versão da Base apresentada pelo MEC, do ensino infantil e do 2º ano do fundamental, que se referem à alfabetização:
Por Ana Carolina Moreno
Fonte: g1 globo
A mudança vai exigir mudanças em pelo menos 146 mil escolas públicas, onde estudam 7,5 milhões de alunos de 6 a 8 anos, além das pré-escolas, para alunos de 4 e 5 anos. Veja os principais pontos sobre o assunto:
- A tendência de antecipar a alfabetização começou nas escolas particulares depois de 2010, quando o ensino fundamental passou de oito para nove anos de duração, e o antigo "pré" se tornou o 1º ano do fundamental;
- Desde 2013, as escolas públicas brasileiras seguem o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), uma iniciativa para estimular que as crianças estejam plenamente alfabetizadas aos 8 anos, no 3º do fundamental;
- Mesmo assim, não é isso o que acontece na realidade: dados da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) de 2014 mostram que um quinto dos alunos da rede pública chegou ao 4º ano do fundamental sem aprender a ler adequadamente;
- Além disso, estudos indicam que o processo de alfabetização é longo e, para ser concluído aos sete anos, precisa começar com as crianças mais novas, que ainda não estão preparadas para isso;
- Está em jogo, segundo especialistas, o embate entre usar os anos do ensino infantil para atividades lúdicas que estimulam os pequenos a reconhecerem sua identidade e se interessarem em aprender sobre o mundo, ou para estimular o aprendizado conteudista, visto por muitos adultos como sinônimo de sucesso profissional.
Questão de equidade
Em entrevista exclusiva ao G1, na tarde de quinta-feira (6), a secretária executiva do MEC, Maria Helena Guimarães de Casto, justificou a decisão citando que isso já acontece nas escolas particulares, e afirmando que se trata de uma questão de equidade e de uma tendência mundial. "Não faz sentido esperarmos até o terceiro ano, quando a criança conclui com oito, às vezes com nove anos de idade, para que ela esteja plenamente alfabetizada. Ou seja, se as crianças da classe média, que frequentam escolas particulares, ou a criança que está em uma escola pública muito boa (...), nós precisamos fazer que isso aconteça em todas as escolas", afirmou ela (assista mais no vídeo abaixo, e confira aqui a entrevista na íntegra):A partir de 2009, com a obrigatoriedade do ensino universal se estendendo para as crianças a partir de quatro anos, a expectativa é de que o processo de alfabetização não comece diretamente no primeiro ano escolar do aluno, e que haja um período de adaptação antes dele. Especialistas em educação infantil, porém, ressaltam que adequar as escolas públicas à tendência das escolas particulares pode afetar negativamente o desenvolvimento e o amadurecimento das crianças. Segundo a pesquisadora e professora Maria Carmen Silveira Barbosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a antecipação em um ano da alfabetização plena não muda apenas os objetivos de aprendizagem do ensino fundamental, mas também alterou os objetivos do ensino infantil.
Espaço para a imaginação
Segundo ela, que participou da elaboração tanto da primeira quanto da segunda versão da Base Nacional, entre os primeiros documentos e o que foi apresentado nesta quinta-feira pelo MEC, há alterações importantes no que diz respeito aos objetivos voltados principalmente às crianças de 4 a 5 anos. "A centralidade da alfabetização está dada", explicou ela ao G1, apontando que um dos quatro "campos de experiências" (as grandes áreas da Base do ensino infantil nas quais os objetivos de aprendizagem foram divididos) inclusive mudou de nome. Na segunda versão, segundo Carmen, o campo foi chamado de 'Escuta, fala, pensamento e imaginação'. Já na terceira versão, ele mudou de nome para 'Oralidade e escrita'."Ora, a oralidade está presente em todos os campos, pois é uma das grandes pautas do desenvolvimento infantil entre zero e cinco anos. Quanto à escrita, quando a retiramos do contexto cultural, ela acaba virando código, letra, som. Acho que, nesse caso, podemos falar de empobrecimento do campo de experiência", disse a professora. "Gostaria também de comentar que a imaginação não é algo inato nos seres humanos. Nós aprendemos a imaginar, assim como a brincar. E somente imaginamos se convivemos com pessoas que imaginam ou em ambientes onde a imaginação é aceita."
De acordo com Carmen, muitos adultos tendem a acreditar que "a inteligência de uma criança pode ser medida pela sua capacidade de ler e escrever cada vez mais cedo, e que esta precocidade pode levá-la, em linha direta, ao êxito profissional". Porém, diz a pesquisadora, isso não vale para todas as pessoas.
"Podemos oferecer um ambiente onde a cultura e a linguagem escrita estejam presentes, na mesma medida em que outras linguagens, como a musical, que também lemos e escrevemos, ou a do desenho, ou a das construções, e deixar que as crianças possam fazer suas interlocuções, experiências, escolhas, cada uma no seu próprio tempo. Segundo alguns pesquisadores, em torno dos seis ou sete anos, elas certamente serão mais capazes de ler e escrever sem serem obrigadas a tal atividades."
A professora ressalta que as duas últimas versões da Base oferecem, de certa forma, duas perspectivas distintas de como educar os pequenos. Por um lado, está a ideia de privilegia a "dupla tarefa" das crianças de até cinco anos: "conhecer o mundo e, ao mesmo tempo, constituir-se como pessoa". De outro, está a perspectiva "da educação como, principalmente, a instrumentalização das crianças em conteúdos científicos fragmentados, com direção única, com respostas fechadas".
O Brasil tem 183.507 escolas de ensino fundamental, segundo o Censo Escolar de 2015. Dessas, 80% são públicas (Foto: Editoria de Arte/G1)
Possíveis consequências
A psicopedagoga Cynthia Wood, especializada em psicoterapia da criança e adolescente e em neuropsicologia, explica que é possível alfabetizar algumas crianças até os sete anos de idade, mas nem todas se encaixam nessa situação. De acordo com ela, a opção das escolas particulares em usar os dois primeiros anos do novo ensino fundamental para a alfabetização provoca um "descompasso" e não é o cenário ideal."As crianças só estão 'neuropsicologicamente' formadas para a alfabetização aos sete anos", explica ela. Já a criança de seis anos "ainda precisa da educação infantil nessa fase para desenvolver a coordenação motora e as habilidades sociais", afirma Cynthia. "Sendo assim, ela não consegue se alfabetizar, justamente por não ter condições de aprender a ler e a escrever."
Cynthia diz que entre as consequências registradas pela antecipação da alfabetização está o aumento de crianças de seis anos encaminhadas aos consultórios de psicopedagogia, porque não conseguiam acompanhar a mudança. A questão demanda, das escolas, atenção redobrada para reconhecer as dificuldades de aprendizagem e corrigi-las antes que atrapalhem o resto do percurso escolar. "Se isso [a alfabetização aos sete anos] não ocorrer, é preciso reter o aluno e buscar solucionar a situação", diz a psicopedagoga.
Luciana Barros de Almeida, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp), reitera que, embora a fase de alfabetização infantil seja um ciclo que começa aos seis anos e termina aos oito, seu "ápice" ocorre nos seis e sete anos de idade. Porém, ela diz que "condições motoras e emocionais têm um desenvolvimento gradual", e que as crianças podem apresentar diferenças neste processo, o que exige o envolvimento de perto da equipe escolar e dos pais.
"Apesar da proposição de que a alfabetização ocorra até o 2º ano do ensino fundamental (7 anos), se uma criança não consegue inicialmente, isso não é um problema apenas dela. Pelo contrário requer mais a dedicação dos adultos envolvidos (família, professor, demais profissionais). Todo desenvolvimento requer envolvimento de todos", disse Luciana.
A professora Carmen Barbosa, da UFRGS, lembra que, durante o processo de universalização do ensino na década de 90, "com a ampliação da presença das crianças de classe popular na escola, apenas 60% delas saíam alfabetizadas aos sete anos, as demais repetiam uma ou duas vezes a primeira série". Com a mudança, ela afirma que a Base privilegia "uma educação fácil de reproduzir, barata e possível de se avaliar em larga escala". Ter todas as crianças aprendendo no mesmo ritmo, "fazendo provas e centrada, muitas vezes, apenas na língua escrita", pode parecer um bom padrão, porém, segundo ela, acaba sendo excludente.
O que diz a terceira versão da BNCC
Na segunda versão da Base do ensino infantil, o campo "Escuta, fala, pensamento e linguagem" tinha cinco objetivos de aprendizagem para as crianças pequenas (de 4 a 5 anos). Na terceira versão, o novo campo, renomeado de "Oralidade e escrita", tem nove objetivos de aprendizagem, quase todos ligados diretamente a algum tipo de reconhecimento textual e escrita espontânea por parte dos alunos.Na Base do ensino fundamental, a terceira versão trouxe diversos novos elementos e textos reescritos. Alguns objetivos que eram do 3º ano na segunda versão foram transportados para o 2º ano, como, por exemplo, "ler textos literários de forma autônoma" e "formular hipóteses sobre o conteúdo de textos, com base em títulos, legendas, imagens e pistas gráficas".
Veja abaixo alguns dos elementos da versão da Base apresentada pelo MEC, do ensino infantil e do 2º ano do fundamental, que se referem à alfabetização:
ENSINO INFANTIL
Objetivos de aprendizagem do campo 'Oralidade e escrita':- 0 a 18 meses (bebês): Ter contato com diferentes gêneros textuais (poemas, fábulas, contos, receitas, quadrinhos, anúncios etc.).
- 0 a 18 meses: Ter contato com diferentes instrumentos e suportes de escrita.
- 19 meses a 3 anos (crianças bem pequenas): Ampliar o contato com diferentes gêneros textuais (parlendas, histórias de aventura, tirinhas, cartazes de sala, cardápios, notícias etc.).
- 19 meses a 3 anos: Manusear diferentes instrumentos e suportes de escrita para desenhar, traçar letras e outros sinais gráficos.
- 4 e 5 anos (crianças pequenas): Expressar ideias, desejos e sentimentos sobre suas vivências, por meio da linguagem oral e escrita (escrita espontânea), de fotos, desenhos e outras formas de expressão.
- 4 e 5 anos: Inventar brincadeiras cantadas, poemas e canções, criando rimas, aliterações e ritmos.
- 4 e 5 anos: Escolher e folhear livros, procurando orientar-se por temas e ilustrações e tentando identificar palavras conhecidas.
- 4 e 5 anos: Produzir suas próprias histórias orais e escritas (escrita espontânea), em situações com função social significativa.
- 4 e 5 anos: Levantar hipóteses sobre gêneros textuais veiculados em portadores conhecidos, recorrendo a estratégias de observação gráfica e de leitura.
- 4 e 5 anos: Identificar gêneros textuais mais frequentes, recorrendo a estratégias de configuração gráfica do portador e do texto e ilustrações nas páginas.
- 4 e 5 anos: Levantar hipóteses em relação à linguagem escrita, realizando registros de palavras e textos, por meio de escrita espontânea.
2º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL
Objetivos de aprendizagem de vários eixos de língua portuguesa:- Leitura: Localizar, em textos curtos, informações pontuais, além de inferir, em textos curtos, informações implícitas de fácil identificação.
- Escrita: Escrever mensagens pessoais (em papel ou em meios digitais), escrever pequenos relatos informativos, escrever cartazes simples com texto argumentativo.
- Escrita: Utilizar, ao produzir o texto, grafia correta de palavras conhecidas ou com estruturas silábicas já dominadas, letras maiúsculas em início de frases e em substantivos próprios, segmentação entre as palavras, ponto final, ponto de interrogação e ponto de exclamação.
- Escrita: Revisar, reescrever e editar texto.
- Conhecimentos linguísticos e gramaticais: Recitar o alfabeto na ordem das letras.
- Conhecimentos linguísticos e gramaticais: Escrever palavras, frases, textos curtos nas formas imprensa e cursiva.
- Conhecimentos linguísticos e gramaticais: Escrever as palavras corretamente, dividi-las corretamente em sílabas, conhecer sinônimos, e usar sinais de pontuação.
- Conhecimentos linguísticos e gramaticais: Ler, de forma autônoma, textos literários, e expressar preferências por gêneros, temas e autores.
Por Ana Carolina Moreno
Fonte: g1 globo