O cidadão de bem e o Paradoxo da Dona Florinda - Por Douglas Rodrigues da Silva

goo.gl/bD6wBg | Uma sociedade se mostra concretamente democrática quando mais se compreende a importância do respeito às garantias e direitos fundamentais, sobretudo aquelas estampadas no seu Código de Processo Penal.

A propósito, não é incomum que muitos se refiram ao processo penal como verdadeiro termômetro da democracia, pois um Estado somente se perfaz como democrático quanto mais o seu sistema de processo penal se apresentar como tal. Processos penais autoritários são sinônimos de países autoritários.

O grande enigma dos últimos séculos no Brasil, talvez, seja entender justamente o porquê ainda temos um povo diariamente oprimido e que, apesar disso, sente prazer em ser oprimido – ou pior, que efetivamente acredita que não faz parte da massa oprimida.

A questão se apresenta relevante ao passo que no Brasil ainda se apresenta como extremamente difícil e quase uma missão impossível fazer com as pessoas entendam a necessidade de se garantir direitos, máxime quando se está diante de processos penais de grande repercussão.

Em nosso país, infelizmente, vigora-se uma falsa noção, muitas vezes movida por discursos maleados de maneira canalha, de que “o direito só protege o vagabundo” e quem paga como isso é ele, sempre ele, justo ele: “o cidadão de bem”.

E entender o dilema do cidadão de bem quiçá seja o nosso maior problema.

A história do Brasil é repleta em tristes exemplos de que a busca incessante pelo combate ao tal inimigo da sociedade acaba por abrir “brechas” absurdas no sentido de autorizar o Estado a lançar mão de instrumentos violadores das mais caras garantias fundamentais do cidadão.

O pior disso tudo é que tais violações são, sim, fomentadas pela própria sociedade – que, hodiernamente, se apresenta como hipócrita, conservadora e absolutamente autoritária. A chancela aos atos de violência estatal, no Brasil, são fruto da concordância do autodenominado “cidadão de bem”.

O “cidadão de bem”, na sua forma mais comum, costuma apresentar-se dentro de um perfil de camadas sócio-econômicas medianas da população, não se revestindo do mesmo poder que as elites possuem, mas também não apresentando o perfil estigmatizado das camadas sociais marginalizadas.

Esse cara, digo “cara” porque em grande parte dos casos se apresenta como o homem branco, é o principal promotor da barbárie institucionalizada em que o país se encontra, pois este sujeito crê que precisamos de heróis para combater o mal que se assola na nação e está entranhado na máquina pública – e para os heróis, tudo está justificado, inclusive o sacrifício de determinados bens preciosos, visto que o mal que combatem exige tais sacrifícios.

O grande problema é que este sujeito não se vê como parte do mal, jamais, e, em sua mentalidade, todos os seus deslizes são justificados, já que ele nada tem que ver com os “vagabundos” que compõem o país, porque ele “não é bandido”.

Mas por que não?

A resposta sempre passa pelo mesmo caminho discursivo: “pois sou trabalhador e não me envolvo com esse tipo de gente bandida”. A lógica do “cidadão de bem” acaba por ser extremamente calcada numa visão preconceituosa da própria sociedade em que vive, pois ele não tem a precisa definição do que seja a tal “gente bandida”, mas sabe, categoricamente, que a ela não pertence. Mas e os deslizes que esse cara comete?

Pois então, eles não são, na ótica do “cidadão de bem”, sequer comparáveis aos cometidos pela “gente bandida”, pois ele não se enquadra nesse perfil, e ponto. O argumento acaba sempre gravitando na órbita do simplismo e do etiquetamento – não sou dessa estirpe, não me misturo com essa gentalha (sabe tesouro?).

O “cidadão de bem” convive dentro do “Paradoxo da Dona Florinda” – vive num cortiço, recebe benefício governamental (no caso dela a pensão de seu falecido marido marinheiro), mas acredita piamente que se difere dos demais, já que não está embutido na mesma classe que seus vizinhos (a gentalha) e acredita realmente que sua formação social é diferente e não lhe deixa em nada semelhante.
Mal sabe ele que não deixa de ser um oprimido igual e até em pior medida.

Grande parte desse sentimento de não pertencimento, acredito, vem de um discurso canalha promovido pelos próprios meios de comunicação de massa.

O discurso do medo e da segregação são grandes produtos de venda televisiva. Tomar proveito do sentimento de medo da sociedade é um produto e tanto, pois é facilmente vendido ao cidadão já que não está disposto a fazê-lo refletir, mas tão só o bombardeia com sequências chocantes da tragédia, não lhe permitindo refletir sobre nenhuma.

Ao se terminar uma, já se coloca outra. A aquarela do absurdo, hoje transmitida em High Definition, é uma grande propagadora da ideia de combate ao inimigo – fazendo questão de ressaltar que o telespectador não se enquadra na imagem do inimigo a ser combatido.

O segundo ponto, seguramente, decorre da visão fechada e completamente ignorante que o “cidadão de bem” faz de si mesmo, já que acredita que não é um alvo de nenhuma agência criminalizadora e que, suas ações, estão justificadas pela sua própria condição.

Não interessa que esse mesmo cidadão seja sonegador de impostos, dirija embriagado, “pirateie” o sinal da televisão por assinatura ou envenene animais – isso não é nada, dizem eles, pois são medidas de preservação, seja contra o governo sanguessuga, contra leis absurdas (já que após beber eu dirijo “devagarzinho”, sem problemas), contra as operadoras de televisão ou contra o gato da vizinha que perturba seu sono.

Mas aí eu pergunto: e se agência criminalizadora não pensar que você é esse tal “cidadão de bem”? Faz o quê?

É justamente essa a crucial importância das garantias fundamentais (direitos humanos positivados na Constituição): todos nós estamos sujeitos ao abuso do poder, absolutamente todos. Ao se defender o direito de um preso, estamos, na realidade defendendo o nosso, pois ninguém sabe quando estaremos na mesma posição que ele.

E vejam vocês que o abuso de poder tem sido uma regra observada, notadamente no âmbito do Poder Judiciário e do Ministério Público – apenas quem nos julga e nos acusa, apenas – principalmente após movimentos populares exigindo o desrespeito às regras do jogo, já que estariam, em tese, sendo favorecidos pela inobservância delas. Por que vocês acham que um dia o raio laser não reflete no espelho e volta para nos queimar?

Todo exercício de poder tende ao arbítrio e ao autoritarismo, por menor que seja. Um segurança de shopping center, ao possuir o poder ilimitado de barrar ou não a entrada de alguém, tende a fazê-lo da forma mais autoritária possível. Por isso a importância de limites a atuação.

Quando falamos de Estado, esses limites devem ser maiores ainda, já que não se pode olvidar que ele detém o monopólio do uso da violência – é somente o Estado que possui o amparo legal, em 99% das vezes, de utilizar a violência para alcançar seus fins, por essa razão deve ser completamente vigiado.

Quando se tem presente numa Constituição que todos são inocentes até a última decisão judicial é porque muito sangue literalmente foi derramado para que isso estivesse presente no capítulo dos direitos fundamentais do cidadão – seja quem ele for. Todo monumento de direitos, já foi, outrora, um monumento de barbárie.

Ao se ter uma garantia efetiva ao direito de defesa, à proibição de provas ilícitas, é porque, antes delas serem garantias de fato, muita gente (até “cidadãos de bem”) morreu ou foi violentamente atacado em sua integridade moral, física e psicológica em virtude da não observância dessas “regras do jogo” democrático.

O discurso de defesa de direitos não é um discurso vazio, tudo que estamos vendo aí: presídios tomados por facções, insegurança pública, prisões sem julgamentos, absurdas conduções coercitivas para fins de espetáculo, são efeitos de séculos de desrespeito às garantias do cidadão – e o pior é imaginar que o próprio cidadão fomentou o desrespeito e ainda o fomenta.

A conta da barbárie somente tende a voltar maior e com mais juros e não pensem vocês que não serão cobrados pelos credores – aqueles efetivamente marginalizados pelo “cidadão de bem” –, que, aliás, já estão começando a debitar algumas das inúmeras parcelas.
Então, cuidado tesouro, você também faz parte da gentalha!

Por Douglas Rodrigues da Silva
Fonte: Canal Ciências Criminais
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