goo.gl/zzyU3i | Dentre os diversos leading cases julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, trazemos o caso Nadege Dorzema e outros vs. República Dominicana, para demonstrar o quanto o Judiciário e o Ministério Público brasileiro violam interpretações sobre a efetividade dos direitos humanos no Brasil de maneira sistemática e ignóbil, ignorando, no sentido etimológico da palavra, ou seja, ignorantes na hermenêutica dos julgados da Corte na qual o Brasil não somente ratificou o Pacto de San Jose de Costa Rica em 1992 por meio do Decreto 678 de 1992, como também o Congresso Nacional aprovou a solicitação de reconhecimento obrigatório da jurisdição a Corte IDH por meio do Decreto Legislativo 89 de 03 de dezembro de 1998 e o Decreto nº 4.463/2002 reconheceu como obrigatória e por prazo indeterminado a jurisdição daquela Corte, consequentemente, as suas decisões, atribui-se, obrigatoriamente um viés normativo-vinculante, o que significa dizer, em outras palavras, que as decisões da Corte IDH são fontes da norma, podendo, inclusive, prevalecer sobre a Constituição, conforme o princípio pro persona, conforme preceitua o artigo 62, item 1 da Convenção, vinculando o Brasil não somente às decisões nas quais é condenado, mas como também às interpretações dos tratados e convenções de Direitos Humanos realizadas pela Corte, de forma vinculante.
Segundo esta nova realidade hermenêutica, impulsionada pela segunda guerra mundial e consolidada no Brasil em 1998, a Convenção Americana de Direitos Humanos pode, inclusive invalidar, regras de natureza Constitucional, como ocorreu com a súmula vinculante 25 do Supremo Tribunal Federal, porquanto efetivou, por força do princípio pro homine, a interpretação sobre a prisão civil do depositário infiel, ainda que previsto na Constituição da República, como norma inválida no ordenamento jurídico brasileiro, com base no artigo 7, item 7 da Convenção Americana de Direitos Humanos e artigo 11 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos em detrimento da redação do inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Brasileira, prevalecendo as regras sobre direitos humanos.
O caso concreto citado acima e julgado pela Corte IDH, reconheceu que no dia 18 de junho de 2000, um caminhão amarelo transportando um grupo de cerca de 30 cidadãos haitianos, que estavam na República Dominicana, tendo sido avistados por militares dominicanos, que começaram uma perseguição por vários quilômetros, fazendo disparos que atingiram as pessoas que viajavam nele, resultando em quatro mortes e vários outros feridos. Uma pessoa na parte de trás do caminhão foi morta, e diante disso várias outros correram para salvar suas vidas, momento em que os militares dispararam novamente causando mortes de mais duas pessoas.
Para se investigar a ação militar as forças militares da República Dominicana local iniciaram a investigação dos militares que participaram da operação culminando em condenações pífias e absolvição de um dos militares, de um total de cinco.
A Corte estabeleceu, que a intervenção do foro militar na investigação desses fatos violou os parâmetros de excepcionalidade e restrição que devem caracterizar a competência desta jurisdição (a militar), tendo sido um dos fatores que culminou na impunidade do caso.
Qualquer caso semelhante à chacina que deixou 19 mortos ocorrida em Osasco e Bauruerí, Região de São Paulo, tendo sido noticiado interferência indevida na investigação pela polícia militar, bem como outros estados do Brasil na qual a polícia militar vem realizando investigação de crimes comuns, não é mera coincidência.
Por esta razão, o a Corte Interamericana concluiu que o Estado violou os direitos às garantias de liberdade (artigo 7.5), garantias judiciais (artigo 8.1) e à proteção judicial (artigo 25.1), todos do Pacto de San Jose da Costa Rica[1].
Entendeu que a intervenção militar em investigações de civis é medida indevida e a investigação criminal militar é excepcional aos crimes militares próprios, tendo o país violado as próprias leis internas quando permitiram que a investigação fosse militar, ao revés de uma investigação civil, conforme se depreende de trecho da sentença, ipsis literis:
O mesmo não tem sido realizado aqui no Brasil, mesmo com o Brasil já tendo sido advertido pela Comissão Interamericana e alterado o Códio Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, por força da Lei 9.299/1996, haja vista que frequentemente nos deparamos com a polícia militar ou a polícia militar "conveniada" com o Ministerio Público, criando-se verdadeiras milícias institucionalizadas, sob a batuta daquele que deveria fiscalizar a violação dos Direitos Humanos, conforme apregoa o artigo 109, V-A e §5º, da Constituição de 1988, causando estranheza que o Ministério Público Federal não direcione os holofotes midiáticos para si afim de apurar “ilegalidades advindas de investigações por crimes comuns realizadas pela polícia militar”, estas, por sua vez, transvestida de polícia do Ministério Público estadual, muitas das vezes com camisas que estampam ‘Polícia Gaeco’ ou ‘Gaeco Polícia Militar’, porém, preocupou-se em “investigar” se a Polícia Judiciária do Estado Rio de Janeiro teria usurpado função da Polícia Federal. Seria uma ministerialização da polícia militar ou uma militarização do Ministério Público?
Não bastasse o paradigma acima o Brasil foi condenado perante a Corte Interamericana, no conhecido e emblemático caso Escher vs Brasil em 6 de julho de 2009, na qual deixa claro em sua sentença, além de outras violações à Convenção Americana, notadamente no parágrafo 119[4], ao analisar a Constituição brasileira, entendeu que o artigo 144 não atribui à polícia militar a função de investigar desvios de recursos financeiros oriundos de programas do governo federal e de ligação com o assassinato de Eduardo Aghinoni.
Entendeu a Corte, por se tratar de um crime comum, conforme o artigo 144, CR/88, a Carta Magna definiria como competência da Polícia Civil a atribuição investigativa, conforme destacamos:
Ainda assim, parece que nosso sistema de justiça criminal pouco se importa com a interpretação realizada pela Corte a respeito dos tratados, vide a atabalhoada forma com que se realiza a audiência de custódia em nosso pais, bem como a reiterada e sistemática investida por parte da polícia militar de prática de interceptações abusivas, e pior de tudo, chanceladas pelo poder judiciário, como ocorreu recentemente, em matéria veiculada por jornal de canal aberto e fechado sobre o absurdo das ilegalidades de investigações criminais por crimes comuns pela polícia militar do Mato Grosso. Algumas matérias jornalísticas informando que “Para conter crise, Mato Grosso suspende máquina de grampos da PM”[5], pasmem, em maio de 2017!
Diga-se de passagem, deve ser por isso, que logo abaixo do mapa, Mato Grosso do Sul publicou edital para Concurso Público para ingresso na carreira de Delegado de Polícia com disciplina de Direitos Humanos. Esperamos que esse ato do Estado de Mato Grosso do Sul, que avizinha esses absurdos, sirva de exemplo para que todas as Polícias Judiciárias assim o estudem, com capacitações aos concursados mais antigos, bem como seja inspirador ao concurso para ingresso na Magistratura, que avaliza aberrações jurídicas como essas, e tome providências o CNJ[6], por incrível que pareça, inclua, já que não há previsão institucionalizada, esta disciplina como obrigatória em seus atos normativos. E não adianta dizer que ela está englobada pela disciplina de Direito Internacional Público, que seria uma heresia intelectual.
Não obstante tantas obviedades Constitucionais e de Convecionalidade, a questão ainda assim foi desaguar em nosso Pretório Excelso, na qual foi obrigado a se pronunciar pelo óbvio em sede de repercussão geral no RE 702.617/AM, interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Amazonas segundo ao qual teria reconhecido a inconstitucionalidade da lei estadual nº 3.514/2010, que permitia a Polícia Militar elaborasse termo circunstanciado (investigação sumaríssima de ilícito penal comum e não militar) e, neste mesmo sentido, também o STF entendeu como inconstitucional, no recurso extraordinário supra, em 28 de agosto de 2012, que teve como relator o Ministro Luiz Fux, senão vejamos:
Para ilustrarmos que não estamos sozinhos no entendimento esposado, podemos citar, uma lista exemplificativa de renomados autores, que perfilham do entendimento de que somente o Delegado de Polícia possa conduzir a lavratura do Termo Circunstanciado (não utilitariamente somente lavrar): Mirabete (2002, p. 89)[7], Nucci (2006, p. 376)[8], Bittencourt (2003, p. 59)[9], Oliveira (2001, p. 35)[10], Tourinho (2000, p. 68.)[11], além de Geraldo Prado E GRANDINETTI (2002, p.220)[12].
Assim sendo, a condução de pessoas à presença de "autoridades policiais militares" seja para lavratura de auto de prisão em flagrante, lavratura de Termo Circunstanciado, cabíveis somente para crimes comuns, ou qualquer outro procedimento investigatório de crime comum, configura evidente crime de abuso de autoridade, bem como a prática de condução da presidência do procedimento, exclusiva do Delegado de Polícia, reforçado pela lei 12.830/13, e demais atos tipicamente de polícia judiciária constitui crime de usurpação de função pública, plenamente possível por funcionário público, segundo entendimento pacífico, desde que o servidor pratique ato relacionado a uma função completamente estranha a sua.
O que se verifica é uma crescente emancipação de um órgão sobre as atribuições de outro em uma perspectiva milagrosa de se resolver problemas complexos com fórmulas mágicas e utilitaristas.
Os discursos desses órgãos “conveniados” “escapam assim a qualquer tentativa de limitação e erigindo-se em único e absoluto, eles transformam-se em ameaças: populismo, ultraliberalismo, messianismo, enfim, esses inimigos íntimos da democracia.[13], apontado por Todorov (2012, p. 18) como espécie de fenômenos que corroem a democracia, que se espalham no mundo denominado de messianismo político.
Parece que as tentativas de se alterar o sistema de investigação criminal à fórceps, como a estratégia de manutenção de poder pelo poder denominado de “ciclo completo”, sem um adequado estudo, que passa obrigatoriamente, por um processo de desmilitarização, típicos de uma justiça de transição séria, consequentemente, mudança do paradigma de ideologias de dominação pela força bélica, incluindo-se um adequado programa de valorização da Polícia, já que nenhum país de primeiro mundo se desenvolve sem o uma instituição policial digna e que funcione como órgão essencial à administração da justiça, sobra apenas a reprodução de discursos charlatões e de manutenção do poder pela vaidade, fazendo lembrar a genial assertiva de Einstein: "Duas coisas são infinitas: a estupidez humana e o universo; e não estou seguro do segundo".
[1] Corte IDH. Caso Nadege Dorzema y otros Vs. República Dominicana. Fondo Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de octubre de 2012 Serie C No. 251, informe de 24 de octubre de 2012, párr. 118 hasta 144 Disponível: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_251_esp.pdf>, acesso em 08 de agosto de 2014.
[2] No mesmo sentido, a Corte Interamericana já havia julgado casos semelhantes a este sobre a proibição de investigação criminal por militares em crimes que não sejam tipicamente militares: Caso Castillo Petruzzi y otros Vs. Perú, supra, párr. 128, y Caso Vélez Restrepo y Familiares Vs. Colombia, supra, pág. 240.
[3] Corte IDH. Caso Nadege Dorzema y otros Vs. República Dominicana. Fondo Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de octubre de 2012 Serie C No. 251, informe de 24 de octubre de 2012, párr. 138 hasta 144 Disponível: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_251_esp.pdf>, acesso em 08 de agosto de 2014.
[4] Corte IDH. Caso Escher y otros Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de julio de 2009. Serie C No. 200, párr. 199. Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_200_esp1.pdf >. Acesso em: 19/06/2017
[5] MACEDO, Fausto. Estadão. Para conter crise, Mato Grosso suspende máquina de grampos da PM. Disponível: <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/para-conter-crise-mato-grosso-suspende-maquina-de-grampos-da-pm/>. Acesso em: 19/06/2017
[6] Resolução 75/09. Disponível: <http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=2763>, acesso em: 19/06/2017
[7] MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 5ª ed. São Paulo: Atlas.
[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: RT.
[9] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais Federais. São Paulo: Saraiva.
[10] OLIVEIRA, Beatriz Abraão de. Juizados Especiais Criminais. Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Renovar.
[11] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Saraiva.
[12] CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de (coordenador),; CAMPOS, Antônio; PRADO, Geraldo; ALVIM, J.E. Carreira; SILVA, Leandro Ribeiro da; Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais Comentada e Anotada, 2ªEd. Lumen Juris, Rio de janeiro. Em nota de rodapé o coordenador menciona expressamente que Geraldo Prado, um dos co-autores do livro entende que “O termo circunstanciado constitui novo modelo de investigação criminal. Isto é, regido pela informalidade e orientado à celeridade, não deixa de ser uma espécie da investigação e como tal não pode correr o risco de ser conduzido temerária e arbitrariamente.”
[13] TZVETAN, Todorov. Os inimigos íntimos da democracia, trad. Joana Angelica d’Avila Melo, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 18
Por Ruchester Marreiros Barbosa
Fonte: Conjur
Segundo esta nova realidade hermenêutica, impulsionada pela segunda guerra mundial e consolidada no Brasil em 1998, a Convenção Americana de Direitos Humanos pode, inclusive invalidar, regras de natureza Constitucional, como ocorreu com a súmula vinculante 25 do Supremo Tribunal Federal, porquanto efetivou, por força do princípio pro homine, a interpretação sobre a prisão civil do depositário infiel, ainda que previsto na Constituição da República, como norma inválida no ordenamento jurídico brasileiro, com base no artigo 7, item 7 da Convenção Americana de Direitos Humanos e artigo 11 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos em detrimento da redação do inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Brasileira, prevalecendo as regras sobre direitos humanos.
O caso concreto citado acima e julgado pela Corte IDH, reconheceu que no dia 18 de junho de 2000, um caminhão amarelo transportando um grupo de cerca de 30 cidadãos haitianos, que estavam na República Dominicana, tendo sido avistados por militares dominicanos, que começaram uma perseguição por vários quilômetros, fazendo disparos que atingiram as pessoas que viajavam nele, resultando em quatro mortes e vários outros feridos. Uma pessoa na parte de trás do caminhão foi morta, e diante disso várias outros correram para salvar suas vidas, momento em que os militares dispararam novamente causando mortes de mais duas pessoas.
Para se investigar a ação militar as forças militares da República Dominicana local iniciaram a investigação dos militares que participaram da operação culminando em condenações pífias e absolvição de um dos militares, de um total de cinco.
A Corte estabeleceu, que a intervenção do foro militar na investigação desses fatos violou os parâmetros de excepcionalidade e restrição que devem caracterizar a competência desta jurisdição (a militar), tendo sido um dos fatores que culminou na impunidade do caso.
Qualquer caso semelhante à chacina que deixou 19 mortos ocorrida em Osasco e Bauruerí, Região de São Paulo, tendo sido noticiado interferência indevida na investigação pela polícia militar, bem como outros estados do Brasil na qual a polícia militar vem realizando investigação de crimes comuns, não é mera coincidência.
Por esta razão, o a Corte Interamericana concluiu que o Estado violou os direitos às garantias de liberdade (artigo 7.5), garantias judiciais (artigo 8.1) e à proteção judicial (artigo 25.1), todos do Pacto de San Jose da Costa Rica[1].
Entendeu que a intervenção militar em investigações de civis é medida indevida e a investigação criminal militar é excepcional aos crimes militares próprios, tendo o país violado as próprias leis internas quando permitiram que a investigação fosse militar, ao revés de uma investigação civil, conforme se depreende de trecho da sentença, ipsis literis:
Além disso, é importante notar que esta Corte já tinha estabelecido que, em razão do bem jurídico lesionado, a jurisdição militar não é o foro competente para investigar e, se for o caso, processar e punir os autores de violações dos direitos humanos, e em um Tribunal militar só pode processar militares em serviço pelo cometimento de delitos e infrações que por sua natureza atinjam bens jurídicos propiamente militares[2]. Isto posto, esta Corte conclui que tanto a investigação, quanto o processamento e julgamento perante o sistema de justiça militar, representaram uma clara violação da obrigação contida no artigo 2 Convenção americana, em conjunto com os artigos 8 e 25 da mesma. (grifo nosso)Insta salientar, que por ocasião deste julgamento a Corte chegou a mencionar a violação da própria Constituição Política da República Dominicana em seu artigo 8.2 "h" de 1994, vigente à época dos fatos, conforme destaco em seu parágrafo 138[3]:
(....) Constituição dominicana de 1994, em vigor à época em que a detenção foi analisada, dispunha em seu artigo 8.2, “d”, que: “toda pessoa privada de sua liberdade será encaminhada a autoridade judicial competente no prazo de quarenta e oito horas após sua detenção ou será posta em liberdade.Por este sentido, a Corte estabeleceu que o Estado descumpriu sua obrigação de adotar disposições de direito interno, que inibissem a jurisdição militar para crimes comuns, situação que foi remediada posteriormente pelo Estado condenado.
O mesmo não tem sido realizado aqui no Brasil, mesmo com o Brasil já tendo sido advertido pela Comissão Interamericana e alterado o Códio Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, por força da Lei 9.299/1996, haja vista que frequentemente nos deparamos com a polícia militar ou a polícia militar "conveniada" com o Ministerio Público, criando-se verdadeiras milícias institucionalizadas, sob a batuta daquele que deveria fiscalizar a violação dos Direitos Humanos, conforme apregoa o artigo 109, V-A e §5º, da Constituição de 1988, causando estranheza que o Ministério Público Federal não direcione os holofotes midiáticos para si afim de apurar “ilegalidades advindas de investigações por crimes comuns realizadas pela polícia militar”, estas, por sua vez, transvestida de polícia do Ministério Público estadual, muitas das vezes com camisas que estampam ‘Polícia Gaeco’ ou ‘Gaeco Polícia Militar’, porém, preocupou-se em “investigar” se a Polícia Judiciária do Estado Rio de Janeiro teria usurpado função da Polícia Federal. Seria uma ministerialização da polícia militar ou uma militarização do Ministério Público?
Não bastasse o paradigma acima o Brasil foi condenado perante a Corte Interamericana, no conhecido e emblemático caso Escher vs Brasil em 6 de julho de 2009, na qual deixa claro em sua sentença, além de outras violações à Convenção Americana, notadamente no parágrafo 119[4], ao analisar a Constituição brasileira, entendeu que o artigo 144 não atribui à polícia militar a função de investigar desvios de recursos financeiros oriundos de programas do governo federal e de ligação com o assassinato de Eduardo Aghinoni.
Entendeu a Corte, por se tratar de um crime comum, conforme o artigo 144, CR/88, a Carta Magna definiria como competência da Polícia Civil a atribuição investigativa, conforme destacamos:
À luz do referido artigo, como os crimes atribuídos aos diretores de COANA teriam natureza comum, sua investigação é atribuição exclusiva da Polícia Civil. Consequentemente, somente um agente deste corpo policial poderia solicitar a um juiz competente a interceptção de uma linha telefônica, por força do disposto do artigo 3º da Lei 9.296/96.Em 04 de julho de 2012 a Corte deu por encerrado o caso porque entendeu que o Brasil teria cumprido sua condenação, com a punição do Major da polícia militar responsável pela investigação e aceitou a alegação de que o crime previsto no artigo 10 da Lei 9.296/96, praticado pela juíza do caso estaria prescrito, entendendo que o abuso de autoridade, no caso em tela, não poderia ser entendido como imprescritível, mesmo diante de violações diretas à Convenção, por parte do policial militar e da magistrada.
Ainda assim, parece que nosso sistema de justiça criminal pouco se importa com a interpretação realizada pela Corte a respeito dos tratados, vide a atabalhoada forma com que se realiza a audiência de custódia em nosso pais, bem como a reiterada e sistemática investida por parte da polícia militar de prática de interceptações abusivas, e pior de tudo, chanceladas pelo poder judiciário, como ocorreu recentemente, em matéria veiculada por jornal de canal aberto e fechado sobre o absurdo das ilegalidades de investigações criminais por crimes comuns pela polícia militar do Mato Grosso. Algumas matérias jornalísticas informando que “Para conter crise, Mato Grosso suspende máquina de grampos da PM”[5], pasmem, em maio de 2017!
Diga-se de passagem, deve ser por isso, que logo abaixo do mapa, Mato Grosso do Sul publicou edital para Concurso Público para ingresso na carreira de Delegado de Polícia com disciplina de Direitos Humanos. Esperamos que esse ato do Estado de Mato Grosso do Sul, que avizinha esses absurdos, sirva de exemplo para que todas as Polícias Judiciárias assim o estudem, com capacitações aos concursados mais antigos, bem como seja inspirador ao concurso para ingresso na Magistratura, que avaliza aberrações jurídicas como essas, e tome providências o CNJ[6], por incrível que pareça, inclua, já que não há previsão institucionalizada, esta disciplina como obrigatória em seus atos normativos. E não adianta dizer que ela está englobada pela disciplina de Direito Internacional Público, que seria uma heresia intelectual.
Não obstante tantas obviedades Constitucionais e de Convecionalidade, a questão ainda assim foi desaguar em nosso Pretório Excelso, na qual foi obrigado a se pronunciar pelo óbvio em sede de repercussão geral no RE 702.617/AM, interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Amazonas segundo ao qual teria reconhecido a inconstitucionalidade da lei estadual nº 3.514/2010, que permitia a Polícia Militar elaborasse termo circunstanciado (investigação sumaríssima de ilícito penal comum e não militar) e, neste mesmo sentido, também o STF entendeu como inconstitucional, no recurso extraordinário supra, em 28 de agosto de 2012, que teve como relator o Ministro Luiz Fux, senão vejamos:
O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI nº 3.614, que teve como redatora para o acórdão a Ministra Cármen Lúcia, pacificou o entendimento segundo o qual a atribuição de polícia judiciária compete à Polícia Civil, devendo o Termo Circunstanciado ser por ela lavrado, sob pena de usurpação de função pela Polícia Militar. (....)O problema grave é que, antes da lavratura do termo circunstanciado, o policial militar tem de fazer um juízo jurídico de avaliação dos fatos que lhe são expostos. É isso o mais importante do caso, não a atividade material de lavratura (ministro Cezar Peluso). A meu sentir, o Decreto, como está posto, viola claramente o § 4º do artigo 144 da Constituição Federal, porque nós estamos autorizando que, por via regulamentar, se institua um substituto para exercer a função de polícia judiciária, mesmo que se transfira a responsabilidade final para o delegado da Comarca mais próxima. Isso, pelo contrário, a meu ver, de exceção gravíssima na própria disciplina constitucional. (Ministro Menezes Direito). Parece-me que ele está atribuindo a função de polícia judiciária aos policiais militares de forma absolutamente vedada pelos artigos 144, §§ 4º e 5º da Constituição. (Ministro Ricardo Lewandowski). Observe-se que o aresto recorrido não divergiu do entendimento desta Corte. Ex positis, NEGO SEGUIMENTO aos recursos extraordinários, com fundamento no artigo 21, § 1º, do RISTF. Publique-se. Brasília, 28 de agosto de 2012.” (grifo nosso)Ad argumetandum tantum, se ainda que levianamente, desconsiderássemos as normas constitucionais e de Direitos Humanos, e interpretássemos literalmente o disposto no artigo 69 da lei 9.099/95, doutrinariamente não há espaço em nossa sistemática para uma interpretação que não se chegue à conclusão de ser a autoridade policial o Delegado de Polícia, cargo da Polícia Judiciária e função apuratória de crimes comuns.
Para ilustrarmos que não estamos sozinhos no entendimento esposado, podemos citar, uma lista exemplificativa de renomados autores, que perfilham do entendimento de que somente o Delegado de Polícia possa conduzir a lavratura do Termo Circunstanciado (não utilitariamente somente lavrar): Mirabete (2002, p. 89)[7], Nucci (2006, p. 376)[8], Bittencourt (2003, p. 59)[9], Oliveira (2001, p. 35)[10], Tourinho (2000, p. 68.)[11], além de Geraldo Prado E GRANDINETTI (2002, p.220)[12].
Assim sendo, a condução de pessoas à presença de "autoridades policiais militares" seja para lavratura de auto de prisão em flagrante, lavratura de Termo Circunstanciado, cabíveis somente para crimes comuns, ou qualquer outro procedimento investigatório de crime comum, configura evidente crime de abuso de autoridade, bem como a prática de condução da presidência do procedimento, exclusiva do Delegado de Polícia, reforçado pela lei 12.830/13, e demais atos tipicamente de polícia judiciária constitui crime de usurpação de função pública, plenamente possível por funcionário público, segundo entendimento pacífico, desde que o servidor pratique ato relacionado a uma função completamente estranha a sua.
O que se verifica é uma crescente emancipação de um órgão sobre as atribuições de outro em uma perspectiva milagrosa de se resolver problemas complexos com fórmulas mágicas e utilitaristas.
Os discursos desses órgãos “conveniados” “escapam assim a qualquer tentativa de limitação e erigindo-se em único e absoluto, eles transformam-se em ameaças: populismo, ultraliberalismo, messianismo, enfim, esses inimigos íntimos da democracia.[13], apontado por Todorov (2012, p. 18) como espécie de fenômenos que corroem a democracia, que se espalham no mundo denominado de messianismo político.
Parece que as tentativas de se alterar o sistema de investigação criminal à fórceps, como a estratégia de manutenção de poder pelo poder denominado de “ciclo completo”, sem um adequado estudo, que passa obrigatoriamente, por um processo de desmilitarização, típicos de uma justiça de transição séria, consequentemente, mudança do paradigma de ideologias de dominação pela força bélica, incluindo-se um adequado programa de valorização da Polícia, já que nenhum país de primeiro mundo se desenvolve sem o uma instituição policial digna e que funcione como órgão essencial à administração da justiça, sobra apenas a reprodução de discursos charlatões e de manutenção do poder pela vaidade, fazendo lembrar a genial assertiva de Einstein: "Duas coisas são infinitas: a estupidez humana e o universo; e não estou seguro do segundo".
[1] Corte IDH. Caso Nadege Dorzema y otros Vs. República Dominicana. Fondo Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de octubre de 2012 Serie C No. 251, informe de 24 de octubre de 2012, párr. 118 hasta 144 Disponível: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_251_esp.pdf>, acesso em 08 de agosto de 2014.
[2] No mesmo sentido, a Corte Interamericana já havia julgado casos semelhantes a este sobre a proibição de investigação criminal por militares em crimes que não sejam tipicamente militares: Caso Castillo Petruzzi y otros Vs. Perú, supra, párr. 128, y Caso Vélez Restrepo y Familiares Vs. Colombia, supra, pág. 240.
[3] Corte IDH. Caso Nadege Dorzema y otros Vs. República Dominicana. Fondo Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de octubre de 2012 Serie C No. 251, informe de 24 de octubre de 2012, párr. 138 hasta 144 Disponível: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_251_esp.pdf>, acesso em 08 de agosto de 2014.
[4] Corte IDH. Caso Escher y otros Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de julio de 2009. Serie C No. 200, párr. 199. Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_200_esp1.pdf >. Acesso em: 19/06/2017
[5] MACEDO, Fausto. Estadão. Para conter crise, Mato Grosso suspende máquina de grampos da PM. Disponível: <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/para-conter-crise-mato-grosso-suspende-maquina-de-grampos-da-pm/>. Acesso em: 19/06/2017
[6] Resolução 75/09. Disponível: <http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=2763>, acesso em: 19/06/2017
[7] MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 5ª ed. São Paulo: Atlas.
[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: RT.
[9] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais Federais. São Paulo: Saraiva.
[10] OLIVEIRA, Beatriz Abraão de. Juizados Especiais Criminais. Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Renovar.
[11] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Saraiva.
[12] CARVALHO, Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de (coordenador),; CAMPOS, Antônio; PRADO, Geraldo; ALVIM, J.E. Carreira; SILVA, Leandro Ribeiro da; Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais Comentada e Anotada, 2ªEd. Lumen Juris, Rio de janeiro. Em nota de rodapé o coordenador menciona expressamente que Geraldo Prado, um dos co-autores do livro entende que “O termo circunstanciado constitui novo modelo de investigação criminal. Isto é, regido pela informalidade e orientado à celeridade, não deixa de ser uma espécie da investigação e como tal não pode correr o risco de ser conduzido temerária e arbitrariamente.”
[13] TZVETAN, Todorov. Os inimigos íntimos da democracia, trad. Joana Angelica d’Avila Melo, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 18
Por Ruchester Marreiros Barbosa
Fonte: Conjur