Sem registro: sindicato vende porte de arma de fogo sem validade a guardas municipais

goo.gl/Zu4ji0 | A organização já emitiu mais de 150 carteiras para agentes da capital e de outros municípios. O sindicato não tem registro no Ministério do Trabalho e cobra mensalidade de R$ 50. No dia 4 de maio, o guarda Danilo Gonçalves dos Santos morreu ao tentar impedir um assalto em São Cristóvão. Ele estava armado e tinha a carteira do sindicato.

O Singuardas-RJ, um sindicato sem registro no Ministério do Trabalho, afirma já ter emitido mais de 150 carteiras que "atestam" o direito ao porte de arma para agentes das guardas municipais de cidades do Rio onde a autorização não foi regulamentada. Os guardas filiados ao sindicato pagam uma taxa de R$ 50 por mês para terem o documento que, de acordo com a Polícia Federal, não tem validade.



Guarda municipal morto no mês passado tinha carteira do sindicato

No início de maio, o guarda municipal Danilo Gonçalves dos Santos foi assassinado ao tentar impedir um assalto em frente à Quinta da Boa Vista, em plena luz do dia. Ele estava armado e tinha a carteirinha do Singuardas-RJ, que destacava, em letras vermelhas, o "porte de arma autorizado nos termos da lei 13.022/2014 - Art. 16".

O artigo determina que "aos guardas municipais, é autorizado o porte de arma de fogo, conforme previsto em lei". A lei em questão é o Estatuto do Desarmamento. Procurada pela reportagem, a Polícia Federal explicou que o porte de arma de fogo para os guardas municipais é permitido em municípios com mais de quinhentos mil habitantes, como o Rio de Janeiro. Porém, essa autorização depende de um convênio de iniciativa do prefeito com a PF, o que não aconteceu no Rio até agora.

A PF lembra, ainda, que a lei de 2014 destacada pelo Singuardas na carteirinha, também conhecida como Estatuto Geral das Guardas Municipais, não inovou no quesito porte de arma de fogo pra guardas municipais, e só remeteu ao Estatuto do Desarmamento, sancionado em 2003.

O presidente do Singuardas no Rio, João Luís de Souza, tem uma interpretação particular da lei. Ele defende que o Estatuto das Guardas se sobrepõe a qualquer decisão na esfera municipal

"Eu supro a lacuna que a Guarda Municipal do Rio de Janeiro não cumpre perante à legislação federal. A discussão na Câmara dos Vereadores é inócua. Trata-se de uma discussão política, que não visa a sanar um problema administrativo", dispara.

O guarda que solicita ao Singuardas a filiação sindical pra receber a carteirinha precisa apresentar documentos pessoais, contra-cheque funcional e o Certificado de Registro de Arma de Fogo, o CRAF. Depois, o filiado paga uma taxa mensal de R$ 50 . Caso o agente não possua o CRAF, o sindicato oferece apoio no processo. Vale lembrar que o registro da arma não permite que o proprietário ande com ela fora de casa. Para isso, é necessário obter o porte. A PF afirma que faz essa análise caso a caso.

Danilo, guarda que morreu ao tentar impedir o assalto em maio, tinha o registro da arma, mas não o porte. Isso porque, na visão do presidente do Singuardas, os agentes da Guarda Municipal não precisam solicitar a emissão do porte depois de retirar os certificados de nada consta exigidos pela PF para emissão do CRAF, ao contrário do que prevê a Constituição.

O advogado e diretor executivo do Instituto Sou da Paz, Ivan Marques, recorre justamente ao Estatuto do Desarmamento para contestar a argumentação do Singuardas. Ele, que acompanha o debate sobre o armamento da Guarda Municipal em todo o país, afirma nunca ter visto esse tipo de prática antes. Ivan também aponta o prejuízo que essa ilusão oferecida pelo sindicato pode provocar nos guardas. A pena prevista pela Constituição pro porte irregular de arma é de dois a quatro anos de reclusão, com multa.

"A legislação é tão clara, que é quase um estelionato o sindicato usar o Estatuto Geral das guardas pra conceder porte de arma. O único órgão com essa competência é o Ministério da Justiça, por intermédio da Polícia Federal", diz Ivan.

O CNPJ do Singuardas foi registrado em fevereiro de 2015. O sindicato ainda tenta na Justiça conseguir o cadastro no Ministério do Trabalho. Outra entidade que representa a categoria é o Sindicato dos Servidores Municipais, que também defende o armamento da Guarda Municipal, inclusive fora do período de trabalho. O diretor jurídico, Frederico Sanches, esclarece que não há um consenso jurídico sobre a punição aos guardas presos por porte indevido de arma de fogo. Mas, ele demonstrou repúdio à iniciativa do Singuardas, que classificou como um sindicato de gaveta.

"É uma tentativa de forçar a mudança da lei dentro do município do Rio. Nós queremos que seja alterada essa norma, mas não dessa forma. A lei autoriza, mas não há um ato administrativo dentro da Prefeitura ou da Polícia Federal concedendo esse porte aos guardas", lembra Frederico.

Os guardas que se mobilizam pelo armamento da corporação argumentam que eles lidam com infratores e sofrem perseguição, sem que tenham como se defender dessas ameaças. Por outro lado, os críticos da medida falam que ter mais armas na cidade só iria piorar os atuais problemas da segurança pública municipal.

O principal defensor do armamento da guarda na Câmara dos Vereadores é o Jones Moura. Ele também entende que os agentes possuem o porte de arma fora de serviço desde a aprovação da lei de 2014, e endossa a visão de João Luís de que a carteira de identificação emitida pelo sindicato com destaque pra autorização ao uso de arma de fogo oferece uma proteção jurídica pro agente que anda armado fora de serviço.

"Isso (a carteira) é o que está ajudando. Quando o guarda chega à delegacia preso, pouco consegue falar com o delegado. As coisas são muito rápidas e, quando você vê, está dentro de um cárcere. Com a carteirinha, é possível impactar o delegado para que veja o que diz a lei", argumenta o vereador.

A reportagem entrou em contato com agentes da Guarda Municipal que dizem ter sido soltos na delegacia depois de serem levados presos pelo porte indevido. Todos se valeram do Estatuto das Guardas pra recorrer da decisão, e a maioria tinha a carteira do Singuardas. Um deles mostrou, inclusive, a decisão judicial que o absolveu pelo porte ilegal de arma, o que demonstra a confusa interpretação da lei.

Apesar de ter se posicionado de forma contrária ao uso de armas de fogo pelos agentes durante as eleições, o prefeito Marcelo Crivella sinalizou, recentemente, ser favorável à utilização em operações específicas, como na atuação conjunta com a polícia - vide a Operação Centro Presente.

Por João Pedro Soares
Fonte: cbn globoradio globo
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