Academia de polícia: inquérito policial tem sido conceituado de forma equivocada

goo.gl/4hKzYg | O Brasil adotou um sistema de investigação preliminar conduzido pela polícia judiciária, sobressaindo o inquérito policial como principal procedimento investigativo para a busca da verdade na fase pré-processual. Desde o século XIX, consolidou-se como mecanismo central de investigação criminal, consagrado pela Lei 2.033/1871 e pelo Decreto 4.824/1871, legislação esta que o conceituava de maneira singela como “todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices”.

O atual arcabouço legal não fornece o conceito de inquérito policial, tarefa delegada à doutrina. O conceito do procedimento policial costumeiramente difundido é formado por sua natureza jurídica, características e finalidades. Isso significa que sua correta definição depende da apropriada concepção de sua essência, objetivos e traços marcantes.

Segundo doutrina amplamente difundida, inquérito policial é o procedimento administrativo presidido pelo delegado de polícia, inquisitorial, informativo, dispensável, e preparatório[1]. Essas supostas particularidades não resistem a um exame mais minucioso.

Na verdade, o inquérito policial é o processo administrativo presidido pelo delegado de polícia natural, apuratório, informativo e probatório, indispensável, e preparatório e preservador. Examinemos o conceito analiticamente[2]:

a) processo administrativo[3], e não um procedimento: apesar da resistência em utilizar o termo processo na seara não judicial, nada impede o etiquetamento do inquérito policial como processo administrativo sui generis, no contexto da chamada processualização do procedimento[4]. Apesar de não existirem partes, vislumbram-se imputados em sentido amplo[5]. E nada obstante não haver na fase policial um litígio com acusação formal, existem, sim, controvérsias a serem dirimidas por decisões do delegado de polícia que podem resultar na restrição de direitos fundamentais do suspeito (tais como prisão em flagrante, liberdade provisória com fiança, indiciamento e apreensão de bens). Os atos sucessivos afetam inegavelmente exercício de direitos fundamentais[6], evidenciando uma atuação de caráter coercitivo que representa certa agressão ao estado de inocência e de liberdade[7], ainda que não se possam catalogar tais restrições de direitos como sanções.

b) presidido pelo delegado de polícia natural: o inquérito policial só pode ser presidido por delegado de polícia (mediante juízos de prognose e diagnose)[8], e nenhuma outra autoridade[9]. E não por qualquer autoridade de polícia judiciária. Por exigência do princípio do delegado de polícia natural[10], o delegado a coordenar os atos de determinado inquérito policial só pode ser aquele definido conforme regras pré-estabelecidas, vedando-se indicação ad hoc tendenciosa, sob pena de o Estado-Investigação falhar no dever de investigar de forma imparcial e célere[11]. Consequentemente, veda-se a avocação e redistribuição arbitrárias do inquérito policial, bem como a remoção despótica do delegado de polícia[12].

c) apuratório, e não inquisitivo: para restabelecer a igualdade, tendo em vista o desnível provocado pelo próprio criminoso, é preciso que o Estado tenha alguma vantagem na etapa investigativa, para a eficiente colheita de vestígios[13]. Essa vantagem se traduz no elemento surpresa, materializada no sigilo inicial das medidas investigativas da polícia judiciária; ao serem efetivadas sem prévia notificação do suspeito, as diligências policiais podem ter um mínimo de eficácia na colheita de elementos informativos e probatórios. O segredo não é absoluto, não afetando o direito de o investigado ter ciência dos atos de investigação já concluídos e documentados nos autos, para que possa se defender[14]. Ocorre que o termo inquisitivo, comumente utilizado para designar essa característica, é mais apropriado para diferenciar a fase processual, e não a investigação preliminar. Aliás, utilizando esse critério para caracterizar o inquérito policial, ele se aproxima mais do sistema acusatório do que do inquisitorial, pois não concentra funções numa única autoridade nem ignora direitos do investigado (como integridade física, informação e defesa). Além disso, a palavra inquisitivo remete à abusiva Santa Inquisição, que concebia o imputado como mero objeto, e não sujeito de direitos. Portanto, o vocábulo que melhor indica essa característica é apuratório, por indicar que se trata de apuração criminal que compatibiliza sigilo inicial, imparcialidade e dignidade da pessoa humana.

d) informativo e probatório[15], e não somente informativo: o inquérito policial de fato produz elementos informativos, em relação aos quais o contraditório é regrado quanto ao direito de informação, ou seja, condicionado à conclusão das diligências policiais (basicamente as oitivas, que serão repetidas em juízo). Mas também fabrica elementos probatórios, em que há incidência de contraditório, ainda que diferido para a fase processual (provas cautelares e irrepetíveis). Esse contraditório postergado é extrínseco à produção da prova e ocorre após a sua formação[16], o que significa que a prova foi efetivamente colhida no bojo do inquérito policial sob presidência do delegado de polícia[17]. Como consequência, eventuais vícios no procedimento investigativo podem, sim, acarretar nulidade[18], inclusive afetando o ulterior processo penal[19].

e) indispensável[20], e não meramente dispensável: muito embora seja possível o oferecimento de denúncia desacompanhada de inquérito, a esmagadora maioria dos processos penais é antecedida da investigação policial. Afinal, trata-se de garantia do cidadão, no sentido de que não será processado temerariamente. A própria Exposição de Motivos do CPP destaca que o inquérito policial traduz uma salvaguarda contra apressados e errôneos juízos, formados antes que seja possível uma precisa visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. A instrução preliminar é a ponte que liga a notitia criminis ao processo penal[21], retratando a transição do juízo de possibilidade para probabilidade pela via mais segura. E, justamente por esse motivo, mesmo quando o Ministério Público já dispõe dos elementos mínimos para propor a ação penal sem o inquérito policial, na maior parte das vezes prefere requisitar a sua instauração, não abrindo mão desse filtro processual. De mais a mais, não se deve perder de vista que, nos crimes de ação penal pública incondicionada (que são a maioria), a regra é a obrigatoriedade de instauração do inquérito policial, e esse procedimento deve acompanhar a peça acusatória sempre que servir de suporte à acusação[22].

f) preservador e preparatório[23], e não apenas preparatório: o procedimento policial é destinado a esclarecer a verdade acerca dos fatos delituosos relatados na notícia de crime, fornecendo subsídios para o ajuizamento da ação penal ou o arquivamento da persecução penal. Logo, o inquérito policial não é unidirecional[24] e sua missão não se resume a angariar substrato probatório mínimo para a acusação. Não há entre a investigação policial e a acusação ministerial relação de meio e fim, mas de progressividade funcional. A polícia judiciária, por ser órgão imparcial (e não parte acusadora, como o Ministério Público), não tem compromisso com a acusação ou tampouco com a defesa. Além da função preparatória, de amparar eventual denúncia com elementos que constituam justa causa, existe a função preservadora, de garantia de direitos fundamentais não somente de vítimas e testemunhas, mas do próprio investigado, evitando acusações temerárias ao possibilitar o arquivamento de imputações infundadas. Assim, além de a função preparatória não ser a única, ela sequer é a mais importante.

Em outras palavras, inquérito policial consiste no processo administrativo apuratório levado a efeito pela polícia judiciária, sob presidência do delegado de polícia natural; em que se busca a produção de elementos informativos e probatórios acerca da materialidade e autoria de infração penal, admitindo que o investigado tenha ciência dos atos investigativos após sua conclusão e se defenda da imputação; indispensável para evitar acusações infundadas, servindo como filtro processual; e que tem a finalidade de buscar a verdade, amparando a acusação ao fornecer substrato mínimo para a ação penal ou auxiliando a própria defesa ao documentar elementos em favor do investigado que possibilitem o arquivamento, sempre resguardando direitos fundamentais dos envolvidos.

Aqueles que propositalmente buscam diminuir a importância do inquérito policial, ensinando que é dispensável, não possui valor probatório e não tem que ser conduzido com imparcialidade, transmitem a equivocada ideia de que o investigado não precisa se preocupar com a fase policial. Vendem a imagem de que o inquérito policial supostamente não teria qualquer relevância para o desfecho do processo penal, quando na verdade a regra é que investigação policial determina a sorte da etapa processual. De modo que, quando uma defesa despreparada abrir os olhos, no adiantar da persecução penal e com as provas devidamente produzidas, terá perdido a chance de adotar estratégia defensiva minimamente eficaz.

Não se pode olvidar que o inquérito policial, ao promover a colheita imparcial de vestígios e preservar direitos fundamentais, serve como barreira contra acusações draconianas, qualificando-se como devida investigação criminal[25]. Já passou da hora de o seu exame ser feito sob a lente constitucional, sem reducionismos antidemocráticos.
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[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 148; AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo Penal Esquematizado. Rio de Janeiro: Forense, 2014, TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 176; p. 240 e ss.
[2] Explicação aprofundada sobre todos esses tópicos pode ser encontrada nos nossos livros Investigação Criminal pela Polícia Judiciária (Lumen Juris, 2016) e Polícia Judiciária no Estado de Direito (Lumen Juris, 2017 – no prelo).
[3] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Há sim contraditório e ampla defesa no inquérito policial. Revista Consultor Jurídico, nov.2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-nov-01/academia-policia-sim-contraditorio-ampla-defesa-inquerito-policial>. Acesso em 1.nov.2016.
[4] DANTAS, Miguel Calmon. Direito Fundamental à Processualização. In: Constituição e Processo. DIDIER JÙNIOR, Fredie; WAMBIER, Luiz Rodrigues; GOMES JÙNIOR, Luiz Manoel (Coord). Salvador: Juspodivm, 2007, p. 416.
[5] CIDH, Caso Barreto Leiva vs. Venezuela, Sentença de 17/11/2009.
[6] ROCHA, Sérgio André. Processo Administrativo Fiscal. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 38; BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo Administrativo Disciplinar. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 58.
[7] LOPES JÚNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 472.
[8] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Juízos de prognose e diagnose do delegado são essenciais na investigação. Revista Consultor Jurídico, ago.2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-ago-09/academia-policia-juizos-prognose-diagnose-sao-essenciais-investigacao>. Acesso em 9.ago.2016.
[9] Art. 2º, §1º da Lei 12.830/13; STF, Tribunal Pleno, RE 593.727, rel. min. Cezar Peluso, DJ 14/5/2015.
[10] ALENCAR, Rosmar Rodrigues; TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: JusPodivum, 2016, p. 148-149; NUCCI, Guilherme de Souza. Prática Forense Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 32; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Princípio do Delegado Natural. In: CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano; GOMES, Rodrigo Carneiro; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 22-29.
[11] CIDH, Caso Rodríguez Vera vs. Colômbia, Sentença de 14/11/2014.
[12] Art. 2º, §§4º e 5º da Lei 12.830/13.
[13] ARSENÍO, Enrique Jiménez. Derecho Procesal Penal. v. 1. Madrid: Revista de Derecho Privado, p. 104.
[14] Súmula vinculante 14 do STF; art. 7º, XIV do EOAB.
[15] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. "Mera informatividade" do inquérito policial é um mito. Revista Consultor Jurídico, nov.2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-nov-29/academia-policia-mera-informatividade-inquerito-policial-mito>. Acesso em 29.nov.2016.
[16] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: Juispodivm, 2015, p. 51.
[17] ANSELMO, Márcio Adriano. Inquérito Policial como Instrumento de Obtenção de Provas. In: CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano; GOMES, Rodrigo Carneiro; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 63-67.
[18] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Inquérito policial se sujeita a nulidades que contaminam o processo penal. Revista Consultor Jurídico, jan. 2017. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-jan-24/academia-policia-inquerito-policial-sujeita-nulidades-processo-penal>. Acesso em 24.jan.2017.
[19] LOPES JÚNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 343.
[20] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Inquérito policial é indispensável na persecução penal. Revista Consultor Jurídico, dez.2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-01/inquerito-policial-indispensavel-persecucao-penal>. Acesso em 1.dez.2015.
[21] LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 41.
[22] Arts. 5º e 12 do CPP.
[23] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Missão da Polícia Judiciária é buscar a verdade e garantir direitos fundamentais. Revista Consultor Jurídico, jul.2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jul-14/academia-policia-missao-policia-judiciaria-buscar-verdade-garantir-direitos-fundamentais>. Acesso em 14.jul.2015.
[24] NICOLITT, André Luiz. Manual de Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 201/202.
[25] SANNINI NETO, Francisco. Polícia Judiciária e a Devida Investigação Criminal Constitucional. Atualidades do Direito, out. 2013. Disponível em: <http://atualidadesdodireito.com.br/franciscosannini/2013/10/09/policia-judiciaria-e-a-devida-investigacao-criminal-constitucional>. Acesso em 25.abr.2016.

Por Henrique Hoffmann Monteiro de Castro
Fonte: Conjur
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