O Exame de Ordem da OAB, os concursos públicos e o ensino jurídico

goo.gl/NX2beU | Muito se fala a respeito da proliferação dos cursos jurídicos no Brasil e do baixo rendimento dos alunos no exame da OAB. A cada resultado divulgado, fica evidente a necessidade de melhor preparar os alunos para o temido exame, porém, a própria dinâmica aplicada deve ser repensada. Quer dizer, o exame da OAB, em si mesmo, deve ser objeto de profunda reflexão, assim também os concursos públicos. Não se preparam pessoas que pensem o direito, mas apenas candidatos que treinam as técnicas das provas, pois o conteúdo jurídico não é o foco das avaliações. O pensamento crítico e a prática forense são ignorados porque é preferível exigir a memorização de informações, muitas das quais irrelevantes.

O Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em seu artigo 54, inciso XV, estabelece que “compete ao Conselho Federal colaborar com o aperfeiçoamento dos cursos jurídicos, e opinar, previamente, nos pedidos apresentados aos órgãos competentes para criação, reconhecimento ou credenciamento desses cursos”. Contudo, infelizmente, o próprio Exame da Ordem dos Advogados do Brasil tem contribuído de maneira contrária ao aperfeiçoamento dos cursos jurídicos. Por ser um exame obrigatório para todos os bacharéis, ele acaba condicionando o currículo dos cursos de Direito e o próprio direcionamento que o aluno dá aos seus estudos individuais. Não seria isto um problema se não fosse a forma legalista que este exame apresenta em sua primeira fase, com questões cujas respostas estão na própria lei, exigindo do candidato bacharel memória, e não raciocínio.

Não é possível avaliar a capacidade de refletir do candidato aplicando questões objetivas do tipo “teste”, assim como exigir, nas provas práticas, respostas que correspondam exatamente ao gabarito preexistente. Quer dizer, não é permitido ao candidato criticar com fundamentos uma lei ou uma posição doutrinária. Ou se aceita a resposta da OAB, ou a resposta está incorreta, mesmo que haja crítica fundamentada. Não raro, quando determinadas teorias são exigidas, a simplificação de seu conteúdo leva a uma pergunta sem resposta certa, como, por exemplo, testes sobre conceitos desenvolvidos por Kelsen ou Dworkin.

O candidato ao exame da OAB pode optar por cursar uma faculdade de Direito de modo negligente, sem pesquisar, sem estudar, sem refletir, e entrar em um dos cursinhos preparatórios para, em curto espaço de tempo, estar apto a ser aprovado (isso quando a própria faculdade não o faz). Ocorre o mesmo nos concursos públicos. Não se exige cultura literária, filosófica, histórica, sociológica, nem mesmo experiência de vida dos candidatos. Chamar de jurista aquele que se restringe aos códigos é ofender a própria Ciência do Direito.

O resultado de um processo seletivo mecânico é degradante: advogados despreparados, incapazes de pensar corretamente o caso concreto, sem condições de argumentar e organizar as idéias. Até erros gritantes de português são comuns nas peças processuais. E juízes inexperientes julgam de uma forma puramente legalista, sem levar em consideração que ao redor do Direito existe uma realidade social. Talvez seja esse um dos motivos de magistrados, membro do Ministério Público e até advogados não enxergarem que muitos dos dispositivos legais ferem a Constituição Federal e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

Juntando-se a este problema a proliferação de cursos jurídicos no país, que se intensificou na segunda metade da década de 1990, temos uma total distorção do próprio Direito, que passou a priorizar um ensino técnico e legalista em detrimento de um ensino crítico e jus-filosófico, capaz de levar os alunos à reflexão sobre os desafios da sociedade contemporânea na busca da justiça. Para exemplificar, poucos conseguem enxergar que, no sistema acusatório, o juiz deve ser imparcial (imposição constitucional) e, como tal, não poderia produzir provas de ofício; a grande maioria ainda acha que os dispositivos do Código de Processo Penal, que permitem a prisão preventiva de ofício, estão acima da Carta Magna, o que configura verdadeira distorção.

Ao mesmo tempo em que a necessidade de uma interdisciplinaridade se torna consenso no mundo acadêmico, o ensino jurídico se prolifera em cursos que, salvo raras exceções, mantêm o mesmo currículo de anos atrás, sem levar em conta as rápidas transformações da sociedade. Novos temas exigem soluções jurídicas, muitos dos quais extremamente complexos. Meio ambiente, internet, comércio internacional são apenas alguns exemplos dos desafios que são impostos aos juristas nos dias atuais. Enfrentá-los com sabedoria exige mais do que os conhecimentos compreendidos nos currículos tradicionais dos cursos de Direito.

E não é só isso. Além dos novos ramos do Direito, as disciplinas mais fundamentais também são ignoradas. Incluem-se aí a filosofia geral, a filosofia do direito, a sociologia, a antropologia, a história do direito, o direito romano. Ou seja, se o estudante não tiver domínio dos fundamentos do direito, não há como exigir que se possa acompanhar as rápidas transformações do mundo moderno.

A capacidade de enfrentar as novas demandas judiciais deste século, com eficácia e agilidade, passa pela transformação do ensino jurídico, deixando de lado a ênfase processualística e priorizando um conteúdo multidisciplinar que aborde novos conceitos, ainda que fora do âmbito estritamente jurídico. Deve-se preparar o aluno para enfrentar o mercado de trabalho, a fazer prospecção, a organizar sua carreira e saber o que fazer quando tiver o diploma em mãos.

A capacidade de compreender o mundo das leis não reside no simples fato de saber ler, mas sim, no acúmulo de experiências e conhecimentos múltiplos que possam fazer com que o profissional do Direito consiga adequar as normas aos novos tempos, sem a necessidade de que sejam mudadas a todo momento. A lei é apenas parte da Ciência do Direito, pois esta também é formada pelos princípios e mandamentos dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

Mesmo os ramos legalistas do Direito que sofrem uma hipervalorização das faculdades ainda não estão sendo ensinados corretamente. Não se pode estudar, por exemplo, Direito Penal apenas com o Código Penal nas mãos. A moderna Ciência do Direito exige uma leitura constitucional das leis, levando em consideração os princípios da Carta Magna, assim como os direitos e garantias individuais e os Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário. Ademais, exige-se o conhecimento doutrinário para compreender a formação e consolidação de uma norma.

Esta hermenêutica, ou seja, esta habilidade para entender o que está por trás da letra da lei, só pode ser feita por juristas. E juristas são mais do que leitores de leis, códigos, súmulas ou jurisprudências. Juristas são pessoas formadas para entender a sociedade em que vivem, seus costumes e seus valores. Só assim pode-se fazer justiça.

E, para a formação de juristas, não basta o ensino, o professor-doutrinador. É preciso pesquisa e extensão. É mister que se dê ao aluno a capacidade de pensar e refletir sobre os problemas que lhes serão colocados na vida profissional. A Constituição Federal de 1988 é clara, em seu artigo 207, ao declarar o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão nas universidades. De nada vale a absorção de informações. É preciso questioná-las e colocá-las à prova.

Uma das principais causas da falta de interesse dos estudantes em pesquisar e produzir conhecimento é o exemplo que vem dos próprios professores, que, raras exceções, não são pesquisadores nem produtores de ideias. A metodologia da esmagadora maioria das faculdades não é produzir, é reproduzir o que já existe. Não é difícil, também, testemunhar professores que desconhecem a doutrina atual e fazem uso de sinopses e livros esquematizados para a formação do alunado.

Estamos convictos de que a reforma no ensino jurídico brasileiro é a primeira, e mais eficiente, reforma do Judiciário. Somente mudando a mentalidade dos futuros bacharéis e trazendo-os à reflexão profunda e ampla, poderemos contar com instituições jurídicas eficientes para atender às expectativas do povo brasileiro. E a OAB, pela revisão de seu exame (ao qual somos favoráveis), assim como os órgãos responsáveis pelos concursos públicos, muito poderiam contribuir no sentido de se alcançar este objetivo. Os processos seletivos devem avaliar a trajetória completa de vida profissional, e não apenas um momento que se resume a marcar alternativas.

Por João Paulo Orsini Martinelli e Armando Gallo Yahn Filho
Fonte: emporiododireito
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