goo.gl/6UJp9D | Havia, claro, estudado todo o processo antes. Filho de 18 anos pedindo indenização por danos morais contra o pai ausente, o chamado abandono afetivo.
A petição inicial sangrava e chorava. Contava dos buracos da infância, as vezes que o pai combinara de ir às reuniões da escola e não ia, as chamadas não atendidas, os domingos esperando sem ele aparecer.
A resposta do pai era a esperada. Doutora, eu não posso ser obrigado a amar. Dinheiro sempre dei. O resto nunca consegui e não posso ser forçado a isso. Ponto.
Comecei a audiência com opinião totalmente formada. Negaria o pedido na sentença; não tinha mesmo como obrigar ao amor; nenhum dinheiro, nenhuma indenização poderiam compensar essa falta.
O primeiro a falar foi o filho. Disse eu ao pai que podia sair da sala, mas ele fez questão de ficar e escutar. Menino articulado, chorou quase o tempo todo, mas não deixou de pronunciar nem uma frase. Disse uma a uma as frustrações vividas. As dores de não ter um pai. O sofrimento de ser órfão de um pai vivo. Contou que fazia questão daquele pai até o dia que entrou com a ação. Ia atrás, ligava, convidava, marcava encontro, pedia, implorava. O pai não retornava, mandava não ligar mais, furava, dava foras. Não ia a nada, não visitou o filho quando adoeceu seriamente. Me impressionou a coragem de dizer tudo isso encarando o pai; reafirmando o tempo todo que precisava que ele ouvisse.
Ele havia sobrevivido. Estava na faculdade, fazia estágio, tinha seus amigos, namorada; “matara” o pai para conseguir seguir. Entrou com a ação contra a vontade da mãe, pois,
segundo ele, devia isso a si mesmo. Não queira dinheiro, queria uma condenação, queira simplesmente dar uma consequência àquele pai.
O pai, o tempo todo, sem nenhum traço de amor nos olhos e com uma indiferença que eu não tinha visto antes.
Passei dias pensando como sentenciaria. Já não tinha a certeza de antes da audiência. Daqueles processos que podemos chamar de “hard cases”, sem resposta pronta na lei.
Não há mesmo obrigação jurídica de amar, mas há deveres paternos, previstos em mais de uma lei. Mesmo sem amar, é preciso cuidar, é preciso estar para o filho – e isso significa muito mais do que pagar uma pensão.
Segue sua vida, Roberto*… Da minha parte, você me fez repensar o direito, a justiça, as leis, o que é ser pai, o que é ser filho. Dei o melhor de mim naquelas linhas. Não foi fácil, mas acho que te acalentou um pouco. Não como um cobertor colocado por um pai atento às duas da manhã numa noite fria, como deveria ter sido. Mas, dentro do imenso limite e ao mesmo tempo missão da justiça, como se fosse.
*nome fictício, mas história real.
Por Gabriela Jardon
Fonte: www.metropoles.com
A petição inicial sangrava e chorava. Contava dos buracos da infância, as vezes que o pai combinara de ir às reuniões da escola e não ia, as chamadas não atendidas, os domingos esperando sem ele aparecer.
A resposta do pai era a esperada. Doutora, eu não posso ser obrigado a amar. Dinheiro sempre dei. O resto nunca consegui e não posso ser forçado a isso. Ponto.
Comecei a audiência com opinião totalmente formada. Negaria o pedido na sentença; não tinha mesmo como obrigar ao amor; nenhum dinheiro, nenhuma indenização poderiam compensar essa falta.
O primeiro a falar foi o filho. Disse eu ao pai que podia sair da sala, mas ele fez questão de ficar e escutar. Menino articulado, chorou quase o tempo todo, mas não deixou de pronunciar nem uma frase. Disse uma a uma as frustrações vividas. As dores de não ter um pai. O sofrimento de ser órfão de um pai vivo. Contou que fazia questão daquele pai até o dia que entrou com a ação. Ia atrás, ligava, convidava, marcava encontro, pedia, implorava. O pai não retornava, mandava não ligar mais, furava, dava foras. Não ia a nada, não visitou o filho quando adoeceu seriamente. Me impressionou a coragem de dizer tudo isso encarando o pai; reafirmando o tempo todo que precisava que ele ouvisse.
Ele havia sobrevivido. Estava na faculdade, fazia estágio, tinha seus amigos, namorada; “matara” o pai para conseguir seguir. Entrou com a ação contra a vontade da mãe, pois,
segundo ele, devia isso a si mesmo. Não queira dinheiro, queria uma condenação, queira simplesmente dar uma consequência àquele pai.
O pai, o tempo todo, sem nenhum traço de amor nos olhos e com uma indiferença que eu não tinha visto antes.
Passei dias pensando como sentenciaria. Já não tinha a certeza de antes da audiência. Daqueles processos que podemos chamar de “hard cases”, sem resposta pronta na lei.
Não há mesmo obrigação jurídica de amar, mas há deveres paternos, previstos em mais de uma lei. Mesmo sem amar, é preciso cuidar, é preciso estar para o filho – e isso significa muito mais do que pagar uma pensão.
Segue sua vida, Roberto*… Da minha parte, você me fez repensar o direito, a justiça, as leis, o que é ser pai, o que é ser filho. Dei o melhor de mim naquelas linhas. Não foi fácil, mas acho que te acalentou um pouco. Não como um cobertor colocado por um pai atento às duas da manhã numa noite fria, como deveria ter sido. Mas, dentro do imenso limite e ao mesmo tempo missão da justiça, como se fosse.
*nome fictício, mas história real.
Por Gabriela Jardon
Fonte: www.metropoles.com