goo.gl/D9Gm87 | Escrevo no calor do momento. Mas sigamos, já que há algumas coisas a serem faladas e com alguma honestidade, especialmente em virtude de uma série de informações divulgadas que não se confirmam.
Saiu em vários veículos da mídia a notícia de que “Juiz federal do DF libera tratamento de homossexualidade como doença” (G1), “Justiça permite tratar homossexualidade como doença” (Veja), “Justiça concede liminar que permite tratar homossexualidade como doença” (Folha de S. Paulo) ou “Juiz dá liminar a favor de terapia de reversão sexual” (Estadão). Será isso mesmo? Foi isso que foi decidido? Para isso, vamos analisar um importante documento normativo, que é objeto da tutela provisória a que as matérias jornalísticas fazem referência, isto é, a Resolução nº 01/1999, do Conselho Federal de Psicologia.
Considerando sua brevidade, transcrevo-a na íntegra (pulando os famosos “considerando [...]” e as disposições finais):
“Art. 1º - Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão notadamente aqueles que disciplinam a não discriminação e a promoção e bem-estar das pessoas e da humanidade.
Art. 2º - Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas.
Art. 3º - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art. 4º - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.” (grifei)
Em virtude disso, no dia 30 de agosto de 2017, algumas pessoas ajuizaram a Ação Popular, com pedido de medida liminar, nº 1011189-79.2017.4.01.3400, tramitando atualmente perante a 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do DF. Vislumbrando a importância da ação, foi realizada audiência de justificação, na forma do art.3000 § 2ºº, do CPC-155, no dia 15.09.2017. Consta da ata de audiência o deferimento parcial da tutela pleiteada pelo Juiz Federal Waldemar Cláudio de Carvalho. Passo a examiná-la agora.
Adoto o relatório do magistrado como síntese dos fatos:
“Alegam, em síntese, que a citada resolução, como verdadeiro ato de censura, impede os psicólogos de desenvolver estudos, atendimentos e epsquisas científicas acerca dos comportamentos ou práticas homoeróticas, constituindo-se, assim, em um ato lesivo ao patrimônio cultural e científico do País, na medida em que restringe a liberdade de pesquisa científica assegurada a todos os psicólogos pela Constituição, em seu art. 5º, IX.”
E continua Sua Excelência em relação à Resolução acima aludida:
“Conforme se pode ver, a norma em questão, e linhas gerais, não ofende os princípios maiores da Constituição. Apenas alguns de seus dispositivos, quando e se mal interpretados, pode levar à equivocada hermenêutica no sentido de se considerar vedado ao psicólogo realizar qualquer estudo ou atendimento relacionados à orientação ou reorientação sexual. Digo isso porque a Constituição, por meio dos já citados princípios constitucionais, garante a liberdade científica bem como a plena realização da dignidade da pessoa humana, inclusive sob o aspecto de sua sexualidade, valores esses que não podem ser desrespeitados por um ato normativo infraconstitucional, no caso, uma resolução editada pelo C.F.P.
Assim, a fim de interpretar a citada regra em conformidade com a Constituição, a melhor hermenêutica a ser conferida àquela resolução deve ser aquela no sentido de não privar o psicólogo de estudar ou atender àqueles que, voluntariamente, venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura, preconceito ou discriminação. Até porque o tema é complexo e exige aprofundamento científico necessário.” (grifei)
Pois bem. Seria possível discutir se estão presentes os requisitos autorizadores da tutela antecipada, mas não irei me ater a esse ponto, para focar no que é realmente importante: a procedência ou não da argumentação trazida pelo magistrado.
Em certa medida, o estardalhaço midiático foi no sentido de que, dizendo isso implícita ou explicitamente, regressamos ao passado. Voltamos à Idade Média, num retrocesso conservador (ista) indescritível. Pergunto-me: a decisão permitiu que tratassem homossexuais como doentes?
Ora, o que a decisão fez foi prestigiar a liberdade científica, de pesquisa, no sentido de se avançar nos estudos sobre o assunto. Não só isso: adotou uma interpretação no sentido de permitir que aquele que queira possa ir até o psicólogo e, necessitando de alguma orientação, possa obtê-la. Basta imaginar a situação de alguém que, em virtude da repressão, sofra fortemente, consigo mesmo, em virtude de sua orientação sexual. Ou mesmo que, apesar de uma dada orientação sexual que lhe foi imposta, normatizada, poder realmente se identificar e crescer pessoal e subjetivamente enquanto aquela que corresponde à pessoa que realmente se é, não a que lhe é forçada. Queremos mesmo impedir que se consultem para fins de melhora (não para reversão sexual discriminatória e/ou coercitiva, mas para entendimento e aceitação)? É essa a leitura constitucional a ser feita?
O art. 3º da Resolução permanece hígido, intocado, proibindo a intolerância. A orientação psicológica não pode ser coercitiva ou discriminatória, nem antes, nem depois da decisão exarada pelo Juízo da 14ª Vara.
E não se diga, também, que se permitiu o tratamento de homossexuais como se doentes fossem, como grita uma certa mídia. Ou isso ou admitimos que a ida ao psicólogo é um reconhecimento da patologia em todos nós, o que não é verdade. O fato de se realizar uma consulta psicológica diz absolutamente nada sobre a existência de qualquer doença. Assim como nem todos que possuem transtornos mentais são consultados por psicólogos, nem todos os consultados por psicólogos possuem transtornos mentais. A ideia não é tão incompreensível.
A decisão é, a meu entender, irretocável. Isso porque a suposta problematização que surgiu na mídia e nos TJRS (não o formidável Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, mas o Tribunal de Justiça das Redes Sociais) não é trazida à tona na audiência. Lá não houve a defesa da patologização da homossexualidade em momento algum. Na ata de audiência consta que, referindo-se ao Projeto de Lei nº 4.931/2016, referido como “Cura Gay”, ele é “passível de críticas na medida em que parece equiparar a homossexualidade a outros transtornos da sexualidade, ideia essa não defendida pelos autores.” (grifos no original)
Ao fim e ao cabo, a decisão antecipatória do Juízo mantém praticamente a integralidade da Resolução, afastando apenas e tão somente uma interpretação que estaria em desacordo com a Constituição Federal, a nossa Lei Maior. Privilegiou-se, portanto, a liberdade científica e a dignidade humana, na medida em que possibilita o acesso ao psicólogo (e não a terapias coercitivas ou preconceituosas de reorientação sexual) de quem quer que, por razões pessoais, se veja afligido por qualquer situação existencial, sem significar que ela seja patológica.
Nem se alegue, ainda, que isso abre portas para decisões antihumanitárias, haja vista a tutela exclusivamente de (reitero!), e aqui repito as palavras de Sua Excelência, “a melhor hermenêutica a ser conferida àquela resolução deve ser aquela no sentido de não privar o psicólogo de estudar (1) ou atender (2) àqueles que, voluntariamente, venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura, preconceito ou discriminação”. Apenas isso. As únicas portas que se abrem são a da pesquisa científica e a do consultório a sofrimentos de toda sorte.
Abusos, é claro, devem ser punidos. Administrativa, civil e penalmente, sempre que for cabível. Mas não há nada de abusivo no decidido, mormente se considerada a mantença da Resolução em questão.
Pois é!, para a surpresa geral da nação, títulos e matérias podem enganar (quem disse que clicks não valem dinheiro?). A informação direto da fonte costuma ser de maior confiança. Assim, é de se elogiar a abordagem da ConJur, que trouxe a questão no/pelo que ela realmente é.
Em suma, mantém-se a Resolução e resguarda-se a liberdade de pesquisa, sem prejuízo algum da dignidade de cada um. Afinal, protege-se igualmente a liberdade daquele que, por qualquer razão, inclusive sua própria sexualidade, sofra possa se consultar e cuidar de sua saúde mental, que não é afetada apenas e tão somente por aquilo que convencionamos chamar de doenças ou patologias mentais. Se não voltamos séculos em matéria humanitária, certamente podemos ter voltado em matéria hermenêutica.
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, já dizia a música. Não vamos fingir que dores inexistem e não merecem acolhida. Ou se vamos fazer isso, não só não contem comigo, como não comprometam o Direito, por favor.
Por Saulo Brasileiro
Fonte: Jus Brasil
Saiu em vários veículos da mídia a notícia de que “Juiz federal do DF libera tratamento de homossexualidade como doença” (G1), “Justiça permite tratar homossexualidade como doença” (Veja), “Justiça concede liminar que permite tratar homossexualidade como doença” (Folha de S. Paulo) ou “Juiz dá liminar a favor de terapia de reversão sexual” (Estadão). Será isso mesmo? Foi isso que foi decidido? Para isso, vamos analisar um importante documento normativo, que é objeto da tutela provisória a que as matérias jornalísticas fazem referência, isto é, a Resolução nº 01/1999, do Conselho Federal de Psicologia.
Considerando sua brevidade, transcrevo-a na íntegra (pulando os famosos “considerando [...]” e as disposições finais):
“Art. 1º - Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão notadamente aqueles que disciplinam a não discriminação e a promoção e bem-estar das pessoas e da humanidade.
Art. 2º - Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas.
Art. 3º - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art. 4º - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.” (grifei)
Em virtude disso, no dia 30 de agosto de 2017, algumas pessoas ajuizaram a Ação Popular, com pedido de medida liminar, nº 1011189-79.2017.4.01.3400, tramitando atualmente perante a 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do DF. Vislumbrando a importância da ação, foi realizada audiência de justificação, na forma do art.3000 § 2ºº, do CPC-155, no dia 15.09.2017. Consta da ata de audiência o deferimento parcial da tutela pleiteada pelo Juiz Federal Waldemar Cláudio de Carvalho. Passo a examiná-la agora.
Adoto o relatório do magistrado como síntese dos fatos:
“Alegam, em síntese, que a citada resolução, como verdadeiro ato de censura, impede os psicólogos de desenvolver estudos, atendimentos e epsquisas científicas acerca dos comportamentos ou práticas homoeróticas, constituindo-se, assim, em um ato lesivo ao patrimônio cultural e científico do País, na medida em que restringe a liberdade de pesquisa científica assegurada a todos os psicólogos pela Constituição, em seu art. 5º, IX.”
E continua Sua Excelência em relação à Resolução acima aludida:
“Conforme se pode ver, a norma em questão, e linhas gerais, não ofende os princípios maiores da Constituição. Apenas alguns de seus dispositivos, quando e se mal interpretados, pode levar à equivocada hermenêutica no sentido de se considerar vedado ao psicólogo realizar qualquer estudo ou atendimento relacionados à orientação ou reorientação sexual. Digo isso porque a Constituição, por meio dos já citados princípios constitucionais, garante a liberdade científica bem como a plena realização da dignidade da pessoa humana, inclusive sob o aspecto de sua sexualidade, valores esses que não podem ser desrespeitados por um ato normativo infraconstitucional, no caso, uma resolução editada pelo C.F.P.
Assim, a fim de interpretar a citada regra em conformidade com a Constituição, a melhor hermenêutica a ser conferida àquela resolução deve ser aquela no sentido de não privar o psicólogo de estudar ou atender àqueles que, voluntariamente, venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura, preconceito ou discriminação. Até porque o tema é complexo e exige aprofundamento científico necessário.” (grifei)
Pois bem. Seria possível discutir se estão presentes os requisitos autorizadores da tutela antecipada, mas não irei me ater a esse ponto, para focar no que é realmente importante: a procedência ou não da argumentação trazida pelo magistrado.
Em certa medida, o estardalhaço midiático foi no sentido de que, dizendo isso implícita ou explicitamente, regressamos ao passado. Voltamos à Idade Média, num retrocesso conservador (ista) indescritível. Pergunto-me: a decisão permitiu que tratassem homossexuais como doentes?
Ora, o que a decisão fez foi prestigiar a liberdade científica, de pesquisa, no sentido de se avançar nos estudos sobre o assunto. Não só isso: adotou uma interpretação no sentido de permitir que aquele que queira possa ir até o psicólogo e, necessitando de alguma orientação, possa obtê-la. Basta imaginar a situação de alguém que, em virtude da repressão, sofra fortemente, consigo mesmo, em virtude de sua orientação sexual. Ou mesmo que, apesar de uma dada orientação sexual que lhe foi imposta, normatizada, poder realmente se identificar e crescer pessoal e subjetivamente enquanto aquela que corresponde à pessoa que realmente se é, não a que lhe é forçada. Queremos mesmo impedir que se consultem para fins de melhora (não para reversão sexual discriminatória e/ou coercitiva, mas para entendimento e aceitação)? É essa a leitura constitucional a ser feita?
O art. 3º da Resolução permanece hígido, intocado, proibindo a intolerância. A orientação psicológica não pode ser coercitiva ou discriminatória, nem antes, nem depois da decisão exarada pelo Juízo da 14ª Vara.
E não se diga, também, que se permitiu o tratamento de homossexuais como se doentes fossem, como grita uma certa mídia. Ou isso ou admitimos que a ida ao psicólogo é um reconhecimento da patologia em todos nós, o que não é verdade. O fato de se realizar uma consulta psicológica diz absolutamente nada sobre a existência de qualquer doença. Assim como nem todos que possuem transtornos mentais são consultados por psicólogos, nem todos os consultados por psicólogos possuem transtornos mentais. A ideia não é tão incompreensível.
A decisão é, a meu entender, irretocável. Isso porque a suposta problematização que surgiu na mídia e nos TJRS (não o formidável Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, mas o Tribunal de Justiça das Redes Sociais) não é trazida à tona na audiência. Lá não houve a defesa da patologização da homossexualidade em momento algum. Na ata de audiência consta que, referindo-se ao Projeto de Lei nº 4.931/2016, referido como “Cura Gay”, ele é “passível de críticas na medida em que parece equiparar a homossexualidade a outros transtornos da sexualidade, ideia essa não defendida pelos autores.” (grifos no original)
Ao fim e ao cabo, a decisão antecipatória do Juízo mantém praticamente a integralidade da Resolução, afastando apenas e tão somente uma interpretação que estaria em desacordo com a Constituição Federal, a nossa Lei Maior. Privilegiou-se, portanto, a liberdade científica e a dignidade humana, na medida em que possibilita o acesso ao psicólogo (e não a terapias coercitivas ou preconceituosas de reorientação sexual) de quem quer que, por razões pessoais, se veja afligido por qualquer situação existencial, sem significar que ela seja patológica.
Nem se alegue, ainda, que isso abre portas para decisões antihumanitárias, haja vista a tutela exclusivamente de (reitero!), e aqui repito as palavras de Sua Excelência, “a melhor hermenêutica a ser conferida àquela resolução deve ser aquela no sentido de não privar o psicólogo de estudar (1) ou atender (2) àqueles que, voluntariamente, venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura, preconceito ou discriminação”. Apenas isso. As únicas portas que se abrem são a da pesquisa científica e a do consultório a sofrimentos de toda sorte.
Abusos, é claro, devem ser punidos. Administrativa, civil e penalmente, sempre que for cabível. Mas não há nada de abusivo no decidido, mormente se considerada a mantença da Resolução em questão.
Pois é!, para a surpresa geral da nação, títulos e matérias podem enganar (quem disse que clicks não valem dinheiro?). A informação direto da fonte costuma ser de maior confiança. Assim, é de se elogiar a abordagem da ConJur, que trouxe a questão no/pelo que ela realmente é.
Em suma, mantém-se a Resolução e resguarda-se a liberdade de pesquisa, sem prejuízo algum da dignidade de cada um. Afinal, protege-se igualmente a liberdade daquele que, por qualquer razão, inclusive sua própria sexualidade, sofra possa se consultar e cuidar de sua saúde mental, que não é afetada apenas e tão somente por aquilo que convencionamos chamar de doenças ou patologias mentais. Se não voltamos séculos em matéria humanitária, certamente podemos ter voltado em matéria hermenêutica.
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, já dizia a música. Não vamos fingir que dores inexistem e não merecem acolhida. Ou se vamos fazer isso, não só não contem comigo, como não comprometam o Direito, por favor.
Por Saulo Brasileiro
Fonte: Jus Brasil