É preciso acabar com sensação de impunidade por atos sexuais em ônibus e metrô

goo.gl/qKxezV | De início, é preciso dizer que a ciência do Direito é caracterizada por diversas normas, princípios e valores que permitem interpretações diversas sobre um mesmo fenômeno real. Faz parte do Direito. Não se trata de ciência “exata”, que enseja um único resultado lógico para determinados problemas, como ocorre na física ou na matemática. Para um mesmo caso podem haver inúmeras interpretações jurídicas, conforme a visão de cada profissional que analise o caso. Isso é absolutamente natural.

Neste diminuto ensaio não se incorrerá no grave e antiético equívoco de “julgar” o enquadramento típico adotado pelo promotor e pelo juiz que atuaram em caso divulgado pela imprensa nesta última semana de agosto de 2017, - até porque se valeram de suas convicções e da independência funcional que a Constituição Federal lhes reserva no exercício de suas funções, mas apenas apresentar aos leitores uma visão mais ampla a respeito da proteção penal para as vítimas de atos sexuais praticados no interior dos meios de transporte coletivo.

Em um dos casos divulgados pela imprensa escrita, fato ocorrido em São Paulo, a vítima estaria sentada em um banco de ônibus quando foi surpreendida pela ejaculação de um homem. E ao que parece, caso semelhante teria ocorrido em outro estado. Infelizmente, esses fatos têm se revelado comuns e não meramente episódicos, mas rotineiros em meios de transporte públicos, a saber, ônibus, trens, metrôs e congêneres.

Destaquemos alguns crimes que podem restar configurados em situações vividas pelas vítimas no interior de meios de transporte coletivo.

Faz-se necessário esclarecer que o crime de estupro pode ser cometido por homens contra mulheres ou o inverso e também por homens contra homens e mulheres contra mulheres. Em outras palavras, pouco importa o gênero do agressor ou da vítima.

Se a vítima for menor de 14 anos ou se o fato for praticado com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, será dispensável o constrangimento ou a grave ameaça para a configuração do crime de estupro de vulnerável, ou seja, não é necessário que o agressor ataque, agarre, ameace ou use de qualquer forma de violência ou constrangimento para atingir o ato sexual por ele desejado.

Em todas as hipóteses de estupro de vulnerável, “o tipo penal não reclama a violência ou grave ameaça como meios de execução do delito. Basta a realização de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com a vítima, inclusive com a sua anuência.”[1]

A doutrina assim explica a norma penal aplicável ao caso:

“A expressão “qualquer outra causa” precisa ser interpretada em sentido amplo, para o fim de alcançar todos os motivos que retirem de alguém a capacidade de resistir ao ato sexual. Com efeito, a vitima não reúne condições para manifestar seu dissenso em relação à conjunção carnal ou outro ato libidinoso.

São exemplos de vulneráveis, com fundamento no artigo 217-A, parágrafo 1º, in fine, do Código Penal, as pessoas em coma, em sono profundo, anestesiadas ou sedadas..."[2]

Também há julgados no mesmo sentido:

"APELAÇÃO CRIMINAL - ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR - PRETENSÃO ABSOLUTÓRIA - RÉU QUE ESFREGA SEU PÊNIS NA BOCA DE PASSAGEIRA DE ÔNIBUS - VÍTIMA QUE ESTAVA DORMINDO, INDEFESA - PROVAS SUFICIENTES - CONDENAÇÃO MANTIDA - DESCLASSIFICAÇÃO PARA O ART. 61 DA LCP - IMPOSSIBILIDADE - IMPROVIDO. (TJMS, ACR 8609 MS 2005.008609-8, Orgão Julgador: 2ª Turma Criminal, j. em 27 de Julho de 2005, Relator Des. João Carlos Brandes Garcia)".

É o artigo 217-A, do Código Penal que trata do crime de “estupro de vulnerável”: “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. § 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”

O parágrafo 1º do artigo 217-A, do Código Penal contém norma conhecida como “de encerramento genérico” conforme acima analisada, consistente nas seguintes expressões: “ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”

Surge então a pergunta: é possível que no caso de vítima que recebe ejaculação dentro de meios de transporte coletivos não tenha ela tido, por qualquer outra causa (estar desmaiada, estar medicada ou dormindo etc) possibilidade de resistência?

A resposta é positiva. Se a vítima estava dormindo p. ex., situação usual nos meios de transporte coletivo, pode ser ela vítima de estupro de vulnerável quando o agressor se vale desta circunstância para praticar quaisquer atos libidinosos diversos da conjunção carnal contra ela. E somente com a escuta da vítima e de testemunhas presenciais, com uma apuração criminal sobre os devidos detalhes de como ocorrem os fatos é que tal circunstância pode ser devidamente aferida.

O afastamento, apriorístico, da hipótese penal de estupro de vulnerável não pode ser calcado com base no argumento de “desproporcionalidade” do tipo penal; quantidade da pena e hediondez em relação ao fato praticado. A nosso ver, tal raciocínio jurídico se afasta da necessária subsunção do caso concreto à norma penal incriminadora, essa sim a tarefa do aplicador do Direito. Deixar de conferir a fatos como esses o tratamento penal previsto em lei equivale a uma análise puramente laxista, que tem por objetivo evitar a responsabilização penal de autores de crimes ou minimizar as consequências do sistema penal vigente a tais pessoas, ignorando e desprotegendo a vítima do fenômeno criminoso, como se ela não existisse.

Em tais casos, a vítima se sente duplamente punida: a primeira vez pelo fato abjeto em si contra ela cometido e a segunda, pela ausência de resposta penal equivalente à gravidade do caso.

Portanto, se a vítima se encontra em circunstâncias tais que a impeçam de resistir, ou seja, de evitar a prática da conjunção carnal (introdução do pênis na vagina da mulher) ou quaisquer outros atos libidinosos diversos da conjunção carnal (introdução do pênis na boca da vítima; no ânus da vítima; sexo oral; introdução de dedos e instrumentos na região genital da vítima; ejaculação em seu corpo etc.) absolutamente possível a tipificação penal do fato como estupro de vulnerável.

Conhecido médico da área de reprodução humana de São Paulo foi condenado a quase 200 anos de reclusão por práticas absolutamente análogas aos exemplos acima citados: sedava suas pacientes e lhes retirava a possibilidade de resistência e depois praticava atos sexuais contra as vítimas desacordadas. Eis o uso concreto da norma de encerramento do crime de estupro de vulnerável. Afinal, não precisava ele agir de forma constrangedora ou mediante grave ameaça, tampouco usava de violência física para retirar a possibilidade de reação das vítimas.

Em síntese, quando a vítima está embriagada (por vontade própria ou por ato do agressor); quando está dormindo ou medicada, situações que a impedem de expressar sua contrariedade ao ato contra ela praticado, tais hipóteses podem configurar crime de estupro de vulnerável.

Possível ainda que o autor se valha do espaço físico ocupado por um grande número de pessoas, em evidente situação de impedimento de fuga da vítima para qualquer lado e até mesmo de reação – estando ela com o corpo e membros superiores e inferiores espremidos -, situação mais que comum em apertados vagões ou ônibus lotados, tornando inviável sua defesa ou reação. Se o autor do fato se aproveitar dessas circunstâncias, apertando, empurrando ou “encoxando” a vítima, com evidente uso de força física contra o corpo daquela e além disso ainda praticar quaisquer atos libidinosos diversos da conjunção carnal, conforme exemplos anteriormente apontados, plenamente factível a caracterização do fato como crime de estupro, em sua forma simples ou até mesmo de vulnerável, conforme o caso.

É que em tais casos estarão claras as condutas de constrangimento e imposição de violência física por parte do autor, com o objetivo de prática de atos sexuais contra a vítima. Fundamental que os aplicadores do Direito entendam as situações fáticas como elas realmente se desenvolvem na prática. É preciso entender a vida real como ela é. Casos como estes são rotineiros nos meios de transporte público e devem ser reprimidos com aplicação rigorosa dos meios protetivos penais vigentes, única forma de combate do senso comum que vigora na mente dos autores de tais crimes: de que os transportes públicos apertados autorizam ou permitem ações abjetas como estas.

Outro tipo penal que pode restar caracterizado nas situações que ocorrem dentro de meios de transporte público é o crime previsto no artigo 215, do Código Penal, conhecido como violação sexual mediante fraude ou estelionato sexual: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.”

Nessa outra figura penal é possível que mesmo acordada e consciente de seu estado anímico, a vítima esteja distraída e desatenta à conduta do autor do fato (algo comum com pessoas em transporte público que normalmente estão ouvindo músicas em fones de ouvidos de smartphones; estão lendo livros; conversando com outros colegas/passageiros ou simplesmente vendo a paisagem externa etc.).

Imaginemos a seguinte situação: o agente se aproxima da vítima (ausentes as hipóteses de vulnerabilidade acima explicadas), mas sem que esta perceba sua proximidade (a vítima está sentada no banco do meio de transporte ou em pé e de costas para o agressor) e o autor do fato se vale desse estratagema para enganá-la, assim impedindo que possa reagir. O autor age como um simples usuário no meio de transporte coletivo, disfarçando aos demais sua real intenção. Em português coloquial: “não dá bandeira”. Ele engana a vítima e todos os demais usuários. Isso significa dizer, ele age sob fraude, de forma ardilosa.

Afinal, o agressor que pratica tais crimes sexuais não ingressa nos meios de transporte coletivo com a calça abaixada ou braguilha aberta, exibindo o pênis para fora de suas vestes. Fosse assim e já seria imediatamente detido pelo crime de ato obsceno, previsto no artigo 233, do Código Penal (“praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.”). Portanto, a fraude é meio utilizado pelo criminoso para se aproximar da vítima. Há uma via ardilosa de agir que evita que seja detido e preso e alcance seu objetivo. Em tais casos, o criminoso evita “chamar a atenção” até alcançar a proximidade corporal com a “vítima-alvo”. Somente quando consegue se aproximar desta é que comumente abaixa ou abre sua calça e encosta seu órgão genital (pênis) no corpo desta (estando ela sentada ou em pé) ou se masturba e ejacula sobre seu corpo.

Nessas hipóteses também não terá havido crime de estupro simples ou qualificado, porque tais hipóteses exigem constrangimento ou grave ameaça (artigos 213, caput e parágrafo 1º, do Código Penal). Também não haverá, em princípio, crime de estupro de vulnerável porque a vítima estava consciente.

Por outro lado, como explicado, haverá plena justaposição do fato ao crime previsto no artigo 215, do Código Penal, isso porque o autor terá praticado “outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. O autor terá se valido da fraude (qualquer meio enganoso válido para se aproximar da vítima, sem que esta e os demais passageiros percebam, agindo tão logo obtenha proximidade com o corpo da vítima, de forma brusca e surpreendente, de modo a impedir que a vitima possa reagir e se defender). Ignorar a fraude usada pelo criminoso em tais situações é o mesmo que apagá-la do ordenamento penal, impedindo sua aplicação – por coerência jurídica – dos demais tipos penais que a contém em seus núcleos ou figuras qualificadas.

Explicados os crimes, cabe a análise do mais tíbio tipo incriminador previsto na legislação, a contravenção penal prevista no artigo 61, do Decreto-Lei 3.688/41 (“importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor.
Pena: multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis”). Pode se afirmar, sem qualquer receio, que este tipo penal deve ser considerado subsidiário, ou seja, somente deve ser aplicado quando os fatos não se revelarem graves como nos casos acima exemplificados.

É que por não possuir praticamente nenhuma carga punitiva a contravenção penal somente tem espaço para os casos conhecidos como “cantadas” incômodas e assobios desrespeitosos”; situações que não envolvem qualquer contato físico entre o autor do fato e a vítima, casos absolutamente diversos daqueles acima apresentados como exemplos de situações configuradoras de estupro de vulnerável ou estelionato sexual.

Releva por fim destacar que os dados estatísticos apontam a mulher como a principal vítima de tais crimes sexuais.

Nesse contexto é fundamental assentar que o Brasil é signatário da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher e tanto a doutrina quanto a jurisprudência reconhecem o princípio da proteção penal ou vedação à proteção penal insuficiente/deficiente, justamente a outra face do princípio da proporcionalidade, tendo a defesa e proteção da mulher como o precedente mais importante de aplicação de tal entendimento pelo STF:

“A proteção à mulher esvaziar-se-ia, portanto, no que admitido que, verificada a agressão com lesão corporal leve, pudesse ela, depois de acionada a autoridade policial, recuar e retratar-se em audiência especificamente designada com essa finalidade, fazendo-o antes de recebida a denúncia.

Eis um caso a exigir que se parta do princípio da realidade, do que ocorre no dia a dia quanto a violência doméstica, mais precisamente a violência praticada contra a mulher. Os dados estatísticos são alarmantes. Na maioria dos casos em que perpetrada lesão corporal de natureza leve, a mulher, agredida, a um só tempo, física e moralmente, acaba, talvez ante óptica assentada na esperança, por afastar a representação formalizada, isso quando munida de coragem a implementá-la (trecho do voto do ministro Marco Aurélio na ADI 4.424/12-DF, por meio da qual a Corte Suprema considerou inconstitucional norma infraconstitucional ordinária que desprotegia as mulheres).”

Encerra-se o presente ensaio com a esperança de que casos envolvendo atos sexuais praticados nos meios de transporte, especialmente aqueles praticados contra mulheres, gerem responsabilização penal suficiente aos seus autores, medida apenas equivalente à gravidade dos atos cometidos, evitando-se sensação de impunidade e dupla penalização das vítimas de tais formas de violência.

[1] MASSON, Cleber. Direito Penal vol. 3, 2ª ed., São Paulo: Método, 2013, p. 61.

[2] Idem. p. 56.

Por Fernando Henrique de Moraes Araújo
Fonte: Conjur
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