HC não conhecido é como recurso contra tortura sem efeito suspensivo! Por Lenio Streck

goo.gl/EUQAJk | Abstract: Para conseguir um Habeas Corpus, você tem de driblar um fosso de jacarés, desviar-se de dois ursos e escapar de um sniper na entrada do tribunal...!

Recebo um indignado post de Kakay, dizendo: “Entramos com Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça a favor de dois pacientes contra uma liminar em Habeas Corpus que foi negada no Tribunal Regional Federal de São Paulo. Mas infelizmente o Judiciário cada vez mais diminui o escopo do HC, nosso único instrumento contra a prisão, a favor da liberdade. Como explicar para quem está preso que o decreto de prisão não foi validado, mas o STJ, o Tribunal da Cidadania, optou por não analisar o mérito pois existe uma súmula que diz que não cabe HC contra negativa de liminar?”

E o post de Kakay continua: “Como dizer para o preso que ‘o seu direito é muito bom, mas você ficará preso mais um bom tempo até o Judiciário ter tempo de analisar seu caso. ’ Temos que repensar que Judiciário queremos, o STJ poderia ter 330 ministros e não somente 33. É necessário apoiar um Judiciário mais forte e com mais estrutura. A liberdade que hoje é negada, nem mesmo é analisada, para alguém que tem acesso a mídia para registrar um protesto é negada diariamente a milhares de presos sem rosto e sem representatividade, mas que sofrem calados a dor do cárcere. Por isto Quixote disse a Sancho: ‘Pela liberdade Sancho, que é o maior dom que os céus nos deu, pela liberdade e pela honra, devemos arriscar a própria vida’".

Kakay está certo. Assim como estão corretos os demais juristas que manifestaram apoio ao post também. Tenho conversado sobre isso com os colegas da ABRACRIM, da ABDPRO e da ABDConst. Falarei disso na Conferência Nacional da OAB em novembro. Aliás, quando escrevi a primeira edição do Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, em 1999, já dizia que o STJ e o STF deveriam ter o seu número de membros aumentado. Mais tarde, insisti no tema. Mas isso é apenas a ponta do iceberg do acesso à justiça.

Com efeito, saindo da área dos habeas corpus e entrando na área da admissibilidade de recursos no STJ, André Karam Trindade escreveu, há pouco tempo, aqui na ConJur, sobre a PEC 209. Como se sabe, a Câmara dos Deputados aprovou essa PEC (209/12), relativa à admissão de recursos especiais pelo STJ. O texto seguiu para o Senado. A proposta, que conta com o entusiasmado apoio da presidente da corte, ministra Laurita Vaz, prevê a criação de um filtro nos recursos especiais. Caberá ao recorrente demonstrar a relevância das questões de direito infraconstitucional discutidas no caso.

O recurso poderá ser recusado por 2/3 dos ministros que compõem o órgão competente para o julgamento. Isso significa que, além do juízo de admissibilidade nos tribunais a quo, o recebimento dos recursos especiais — cujo seguimento é, hoje, negado monocraticamente — será realizado pelas turmas, que poderão escolher o que julgar. Na verdade, a referida PEC traz a mesma ideia da repercussão geral — cuja validade ainda é debatida no âmbito do próprio STF —, porém, no plano da legalidade. O próximo passo será a súmula vinculante no STJ... Além disso, há outro perigo à vista (e a prazo): um grupo de processualistas propondo que o STJ seja uma corte de vértice ou “corte de precedentes”. Resultado: o STJ não só faz um ferrolho na filtragem como fará teses com valor acima da própria lei.

Isso para não falar da proposta — rejeitada na Câmara — segundo a qual as causas com valor inferior a 200 salários mínimos não seriam passíveis de recurso especial. Pois então, caros leitores: juntemos a PEC 209 com a reclamação do Kakay e de milhares de réus e advogados, e teremos a tempestade perfeita.

Ora, gastamos dinheiro em tanta coisa e não queremos investir no aumento do número de componentes do STJ (e nem vou falar no STF, assunto para uma coluna à parte). Lembro que na Itália — que é um país cujas dimensões são menores do que o estado do Maranhão e sua população não supera os 60 milhões de habitantes —, a Corte de Cassação, cuja função equivale à do STJ, é composta de 302 juízes.

O nosso STJ tem 33 ministros para um país de mais de 200 milhões de habitantes. Fazendo uma analogia com o futebol, parece que a solução para o excesso de gols jamais estaria na atuação deficitária dos zagueiros e do goleiro, mas, sim, no tamanho da goleira. Bingo: para tomarmos menos gols, vamos diminuir o tamanho das goleiras. Ou mudar a regra para colocar três goleiros, todos com mais de 1,90m de altura.

Veja-se: o Habeas Corpus, hoje, virou uma corrida de obstáculos: você tem de driblar um fosso de jacarés, desviar-se de dois ursos e escapar de um sniper na entrada do tribunal. Se conseguir chegar ao balcão, e se não for caso de aplicação de centenas de súmulas defensivas que funcionam como verdadeiros seguranças (que parecem um armário), estará admitido — desde que não seja interposto sobre a negativa de liminar em tribunal anterior. Ou seja, a liberdade depende não do direito de liberdade... depende de uma coisa chamada admissibilidade.

Quando entrei na faculdade, o professor dizia que o único remédio jurídico que podia ser escrito em papel higiênico, papel de pão e assinado com sangue era exatamente o Habeas Corpus. Não se falava em “conhecimento”. Depois a coisa foi mudando. Trocaram os nomes das coisas. Liberdade virou admissibilidade. Assim como comida a quilo (buffet) virou comida compartilhada. Eis o nome da Rosa, diria Eco, no seu debate sobre o nome das coisas.

Traga-me o corpo... hoje, se o advogado leva o corpo, este tem de, primeiro, ultrapassar os aspectos formais; depois, aguardar vaga na extensa pauta de poucos ministros do tribunal superior. Ora, deveria haver no mínimo 25 ministros para cuidar dos Habeas Corpus. Ainda sobrariam mais de 250, se imitássemos a Itália. Mas nem precisaríamos ser tão fiéis aos italianos ou franceses: vamos triplicar. Pronto: 99. E colocamos 4 turmas só para Habeas. E não se fala mais nisso.

Numa palavra final: exigir juízo de admissibilidade de Habeas Corpus e não conhecer o remédio heroico é a mesma coisa que se fazia em certo período do início da modernidade: a tortura era admitida por lei. Mas da decisão que mandava aplicar a tortura... cabia recurso. Bingo. Cabia recurso. Só que... não tinha efeito suspensivo. Pois é. Assim se sente hoje o réu que tem direito a um Habeas Corpus e tem de esperar... por falta de vagas no hospital dos Habeas.

Post scriptum: O caso Aécio Neves e a fragilização do direito
Trago à baila, de novo, meu grau de conservadorismo constitucional. Para mim, o Direito deve ter um grau de autonomia. Deve resistir ao clamor das ruas. E da mídia. Se ele for predado pela política ou moral, já não é Direito. Fiquei preocupado e falei com Pedro Serrano, que, comigo, tem mantido – somos dois teimosos - uma certa ortodoxia garantístico-constitucional. E ele concordou comigo.

O que quero dizer é que Pedro e eu varamos a madrugada procurando nas nossas Constituições a parte que permite que o STF suspenda mandato de senador. E não encontramos. Nem quero nem falar sobre a proibição de sair à noite. Enfim, o que importa é que parece definitivamente vencedora a tese do realismo jurídico, isto é, a tese de que o direito é aquilo que os tribunais dizem que é.

O problema do “realismo jurídico” é que se trata de uma teoria empirista sobre a qual não se tem qualquer controle. O direito é aquilo que, ao fim e ao cabo, o STF estabelece. E, pior: estabelece direito novo, para além do que diz a Constituição. No caso, o STF reescreveu as formas de suspensão de mandato e “prisão” de parlamentar.

Bom, quando lemos que os fóruns de enunciados (Fonacrim, etc) fazem tabula rasa de artigos do CPC e da própria Constituição Federal, por que deveríamos nos surpreender com decisões contra o texto da Constituição Federal proferidas pela Suprema Corte? De todo modo, é sempre mais fácil fazer emenda constitucional com três votos do que com 3/5 do parlamento em votação em dois turnos e bicameralmente.

Outra coisa: (recado para um país de juristas-torcedores) - ser jurista implica compromissos: quem acha normal ganhar um jogo com gol de mão, não pode, depois, queixar-se de perder o jogo com gol de mão. Se me entendem...

Por Lenio Luiz Streck
Fonte: Conjur
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