As baratas, o processo penal e a engenharia reversa dos Direitos Humanos

goo.gl/T9TGUz | “Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto” (KAFKA, 1997)

Um dos mais famosos livros de Franz Kafka não apenas conta a história do homem transformado em um inseto monstruoso, mas pousa lá no fundo da hipocrisia humana, abrindo espaço para o exercício cotidiano do reconhecimento dos artifícios que o ser humano utiliza para se proteger do que diferente lhe pareça.

A partir da história do caixeiro-viajante Gregor Samsa, que ao acordar vê o próprio corpo metamorfoseado em “dorso duro e inúmeras patas”, o escritor tcheco, um dos maiores de todos os tempos, contextualiza a condição humana e os dramas psíquicos da sociedade (que em nada, ou muito pouco, se desassemelha da nossa). Gregor, um homem comum, trabalhador, como muitos, leva uma vida burocrática e exerce uma função que não lhe satisfaz em desejos e felicidade, mas que dá conta dos anseios financeiros de sua família.

No dia em que Gregor falta ao trabalho, seu chefe se dirige até sua casa e, neste momento, dá-se o encontro com uma realidade assustadoramente fria e burocrática. Este é o local da grande metáfora de “A metamorfose”: as graves violações à dignidade humana perpetradas por uma realidade em que certos indivíduos são excluídos do sistema de relações humanas pautadas pelo respeito e pela alteridade.

Em conversas sobre o atual estado de coisas no Brasil e no mundo – daí o motivo de pensarmos em conjunto esta coluna -, refletimos sobre a equivocada concepção da História segundo a qual, ao longo dos tempos, a humanidade necessariamente progrediria no caminho de uma evolução ascendente, o que representaria a aversão, mormente após as catástrofes do século XX, a tudo que representasse a barbárie.

Mas o fato é que, conforme refletiu Walter Benjamin em sua oitava tese sobre o conceito de História, “o espanto em constatar que os acontecimentos que vivemos ‘ainda’ sejam possíveis no século XX (e XXI) não é nenhum espanto filosófico. Ele não está no início de um conhecimento, a menos que seja o de mostrar que a representação da história donde provém aquele espanto é insustentável” (LÖWY, 2005).

Antes dele, ROSA LUXEMBURGO (1974), quando escreveu de dentro da prisão, em 1915, já havia rompido com a noção de História como progresso irresistível e talvez tenha sido quem melhor abordou o tema.

Em se tratando de direito processual penal – e do sistema de justiça criminal como um todo – parece que, em meses, retrocedemos anos (ou mesmo séculos). O campo político dos saberes ligados aos direitos humanos é alvo de críticas – não aquelas evidentemente ligadas ao senso crítico, mas aquelas mais rasteiras, do campo do senso comum – articuláveis a partir do prisma das linhas de força histórico-político-inquisitivas.

Qualquer mudança que se pretenda, em direito processual penal, restará comprometida caso sigamos a nos conformar com a recorrente incompreensão (quando não desconhecimento) da Teoria dos Direitos Fundamentais e dos Direitos Humanos, por parte de juízes e tribunais brasileiros.

Vivemos, no Brasil, uma grave disfunção do papel institucional da Magistratura, e também do Ministério Público, decorrente, por um lado, de um erro acadêmico e prático-profissional graves (formação técnico-dogmática alienada da Teoria dos Direitos Fundamentais, bem como do Direito Internacional dos Direitos Humanos e dos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos) e, por outro, da introjeção, por parte de tais agentes, do papel de catalisadores da opinião pública.

Os agentes de persecução penal ignoram a imperiosidade das normas de direitos humanos, muito embora o desrespeito, por ação ou omissão, da obrigação jurídico-internacional de proteger os direitos humanos dê ensejo à responsabilidade do Estado brasileiro perante Cortes Internacionais e mecanismos internacionais de fiscalização (como é o caso do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas).

Com o surgimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos ao término da Segunda Guerra Mundial, nasce o paradigma da proteção jurídica universal da dignidade da pessoa humana. Cabe aos Estados a obrigação imperiosa de salvaguardar todas as dimensões da dignidade humana (vida, liberdade, integridade física, intimidade, honra, saúde, devido processo legal, etc). De acordo com Celso LAFER (2003), esse novo paradigma impõe enxergar a soberania estatal pela lente ex parte populi, contrapondo-se à lente ex parte principis, típica dos regimes autoritários que, para alcançar os objetivos impostos pela raison d’État, massacram impunemente seus próprios cidadãos.

Movidas pelo desejo de incensar a dignidade da pessoa humana à categoria de valor absoluto a ser respeitado nas relações domésticas e interestatais, as Nações Unidas, através de sua Assembleia Geral, aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, documento hoje considerado como o coração do sistema internacional de proteção dos direitos humanos. A Declaração irradiou o espírito do novo paradigma para o sistema regional de proteção dos direitos humanos, criado no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em cujo seio foi editado o Pacto de San José da Costa Rica de 1969 e criada a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Desde a criação da Organização das Nações Unidas, passando pela ratificação de inúmeros tratados de direitos humanos até a criação da Corte Interamericana, o Brasil auxiliou ativamente na construção do sistema jurídico-internacional de proteção da dignidade humana. É bom lembrar que a Constituição de 1988, animada pelo espírito do novo constitucionalismo que surge dos escombros das duas grandes guerras mundiais, preconiza a proteção inafastável dos direitos humanos, como se vê dos artigos 4º, incisos II, VI e IX, e 5º, §§ 2º e 3º.

É indissociável do paradigma da proteção dos direitos humanos a conformação do Estado brasileiro como Democrático de Direito, já que a defesa dos direitos fundamentais (construtos histórico-jurídicos a espelho do Direito Internacional dos Direitos Humanos) é a pedra fulcral do modelo de organização político-social que a sociedade brasileira elegeu para si em 1988.

Os direitos fundamentais e os direitos humanos adensam a proteção jurídica das várias dimensões da dignidade humana e se colocam como barreiras de contenção ao poder punitivo, que expressa a face brutal da violência política. Sem a proteção jurídica da dignidade humana estamos todos sujeitos à ilimitação do poder punitivo, isto é, tornamo-nos todos “inimigos” na guerra que o Estado encampa contra a criminalidade. Na guerra total contra o crime, os agentes de persecução penal a serviço do Estado justificam suas ações pela “necessidade de vantagem contra o inimigo”, de modo que a eficiência no atingimento dos objetivos da guerra se sobrepõe à vida e à liberdade do “inimigo”.

Na dura realidade brasileira, Polícias, Ministério Público e Magistratura descumprem a obrigação de dar efetividade à proteção dos direitos humanos e fundamentais, adotam a retórica da guerra ao crime como autorizadora do Estado de Exceção e pressionam o Legislativo para que derrube os pilares do Estado Democrático de Direito, em franca violação aos deveres constitucionais e internacionais que recaem sobre os órgãos do Estado.

É lugar-comum a adoção de discursos punitivistas e messiânicos por parte daqueles que, institucionalmente, representam – ou autenticamente deveriam representar – a proteção à garantia e o respeito aos direitos individuais fundamentais.

Mandados de busca e apreensão coletiva; prisões preventivas (des)fundamentadas conforme o arbítrio do julgador e o calor da opinião pública; propostas legislativas – representativas de um verdadeiro desarranjo político-institucional – que, sob a “fachada” argumentativa de combate ao crime, prevê aumento de penas e inserção de mais tipos penais no rol de crimes hediondos (cuja principal premissa, no sentido de que a suposta impunidade decorreria da baixa pena cominada a certos crimes, é absolutamente falsa e equivocada).

Nota: o chamado pacote de medidas contra a corrupção, projeto de lei nº 4850/2016, apresentado inicialmente pelo deputado Fernando Francischini e capitaneado pelo Ministério Público Federal, que, apesar de pouco tratar de medidas efetivas de combate à corrupção, e terem sido tratadas em absoluta manipulação discursiva, foi aprovado, na última madrugada, na Câmara dos Deputados, em versão modificada. Por razões óbvias de limitação espacial, tais medidas não serão tratadas neste texto, mas pensamos por bem fazer este adendo.

Os exemplos do populismo punitivo e da desconsideração dos precedentes das Cortes Internacionais de Direitos Humanos, no âmbito do sistema de justiça criminal, são inúmeros. E estarrecem porque consolidam o aprofundamento dos discursos de medo e o fracasso de uma verdadeira comunidade de destino, solidária e não beligerante.

Pesquisa feita em 2004, no Rio Grande do Sul, com 331 membros do Ministério Público estadual, constatou que quase 60% dos promotores foi motivado a optar pela carreira, além da função social da instituição, pela atuação no combate à criminalidade; 54,4% respondeu, quando questionados sobre a corrente político-criminal com a qual se identificavam, que simpatizavam e se utilizavam da política da tolerância zero e apenas 8% posicionou-se influenciado pelo garantismo penal; 57,5% dos membros está em total desacordo ao princípio do contraditório garantido ao indiciado em investigação preliminar.

Em 2008, o mesmo questionário foi utilizado no âmbito do Ministério Público Federal e os resultados projetaram-se de forma muito semelhante. Fossem realizadas hoje tais perguntas, não restam muitas dúvidas de que o resultado seria ainda mais trágico. A tendência político-criminal conservadora e pouco afeita à Teoria dos Direitos Humanos, quer no âmbito da Magistratura, quer no âmbito do Ministério Público, é bastante preocupante.

Kafka, ao longo de A metamorfose, deixa subentendido, com seu jogo de palavras e metáforas, que o inseto com o qual a família de Gregor e seu chefe se depararam tratava-se de uma barata. Era assim que o caixeiro-viajante se sentia: como o mais assustador dos insetos, o que mais causa ojeriza.

Quantos mais excluídos, minorizados, despidos de qualquer respeito a seus direitos mais fundamentais não sentem a mesma rejeição em virtude do que exteriorizam, em razão de acusações – tantas vezes infundadas – que sobre eles pairam? Quantas criaturas não se sentem como baratas em uma sociedade da qual são excluídos do sistema de relações humanas? O que é ser humano? O comentado seriado Black Mirror, de produção britânica e atualmente disponível na Netflix, faz refletir sobre o instinto de manada de que falou Nietzsche.

Um episódio, em especial, é o que carrega a metáfora mais perturbadora: Engenharia Reversa (episódio 5, da 3ª temporada). Está tudo ali: a cegueira, a manipulação, o ódio ao diferente, a desintegração do Outro. Metáfora social dos nossos tempos. No episódio, o governo dos Estados Unidos realiza uma lavagem cerebral em seus soldados – através da instalação de chips implantados em suas cabeças – que lutam em uma guerra contra as chamadas baratas, grupo de pessoas consideradas diferentes e que, por isso, deveriam ser eliminadas.

Até que em determinado momento, em uma missão, após eliminar algumas baratas e seu chip apresentar problemas em virtude do contato com um feixe verde luminoso, Stripe, um dos soldados e protagonista do episódio, passa a enxergar aqueles sujeitos, até então elimináveis e descartáveis, como realmente são: humanos!, como ele.

As políticas de guerra perpetradas pelos Estados Unidos no Oriente Médio, assim como a guerra às drogas no Brasil, são alguns exemplos de como pensar a metáfora das baratas no mundo atual. O episódio em questão, tal qual a surreal metamorfose forjada por Kafka, em nada se distancia da realidade que vivemos.

Guerras, invasões, tortura, prisões arbitrárias, desrespeito a direitos fundamentais, desigualdade, neoliberalismo, meritocracia, destruição de políticas públicas, truculência dos agentes de controle social, espetacularização midiática do processo penal, transformam em baratas o grande contingente de Outros, tratados – e tragados – pela lógica penal como perigosos e, portanto, elimináveis.
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REFERÊNCIAS 

AZEVEDO, Rodrigo Ghringhelli de; WEINGARTNER NETO, Jaime. Perfil sócio-profissional e concepções de política-criminal do Ministério Público gaúcho. In: Anais do VII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Set./2004.
FRANZ, Kafka. A metamorfose. 14. ed. Tradução de Modesto Carone, Companhia das Letras, São Paulo, 1997.
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 5. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.
LUXEMBURGO, Rosa. A crise da social-democracia. Lisboa: Presença, 1974.

Por José Carlos Portella Jr.
Fonte: Canal Ciências Criminais
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