Senso incomum - E a estudante me disse: não, não conheço Sarlet, Bonavides...

goo.gl/Qt17E9 | De quando em vez faço auscultamentos. Desta vez, estávamos quatro professores no saguão de um hotel. Uma moça estudava perto de nossa mesa. Falávamos de Direito, o que fez com que ela nos indagasse se éramos professores de Direito. Disse que estava estudando para uma prova e, para tal, ouvia no iPhone a aula, que, deduzi, devia ter sido gravada por colega de aula ou era dessas aulas gravadas vendidas na internet por professores pentecostais que tratam de embargos como se estivessem defendendo tese sobre teoria da prova.

Todos, cada um em seu canto, ficamos cerca de três horas no local. As xícaras de café se amontoavam. Ela saiu um pouco antes, ocasião em que, educada e lhanamente, abordei-a, indagando se não se importaria responder algumas perguntas. Ela estuda em centro universitário grande em uma capital de Estado. Está no sexto ou sétimo período. Quis saber quais os autores de Direito Constitucional ela conhecia ou havia lido. Dei alguns nomes como Sarlet, Bonavides, Clève, Ramos Tavares, Canotilho, Streck e... nada (mencionei os nomes completos). Pois então... Mas ela mencionou o de dois autores que escrevem livros daqueles simplificados e quejandos. Perguntei sobre processo, com nomes como Nelson Nery Jr., Arruda Alvim, Ovídio Baptista. Frustração de novo. O resto, não preciso relatar.

Falando mais um pouco, fiquei sabendo que o grosso da coisa (sala de aula) é mesmo internet e quejandos epistêmicos. Além, é claro, “daqueles livros”. Pior não foi saber que ela não tinha utilizado qualquer livro dos autores citados. Pior foi ela não ter ouvido falar (há mais alguns que citei, inclusive ministros). Os que citei... para ela, são ilustres desconhecidos.

Fico imaginando como ela falaria sobre Kelsen ou Dworkin. Qual o problema? Simples: É que “normalizamos” a mediocridade. Ela nem culpa tem. Deixamos o “simples” tomar conta de tudo.

A propósito, tenho notado uma demonização de quem critica cursinhos, técnicas de chutes e discursos simplificadores do Direito. Falar algo sofisticado parece ter o poder de ofender. Banalizar o correto tem o objetivo de tornar o incorreto “normal”.

Normalização: eis a tática. Naturalizar o feio, para que o belo não possa aparecer. Dizer que não há certezas, para que nenhuma verdade apareça. Dizer que tudo é relativo, para que não se possa mostrar o certo em detrimento do errado.

Nesse sentido, Arthur Ferreira Neto (de novo indico o seu livro Metaética e a Fundamentação do Direito) e eu temos batalhado em torno da necessidade de se poder separar o joio do trigo, sem que tomemos o trigo por joio. Senhoras e senhores: o joio não é trigo. Por isso, é possível dizer: existe o trigo. Enquanto os relativistas dizem: "tanto faz se é joio ou trigo", já que "joio e trigo podem ter a mesma importância"; ou ainda "quem somos nós para dizer que o joio é pior que o trigo?", nós lutamos ao lado das teorias que acreditam na existência do trigo. E, mais do que isso, pensamos que podemos identificar o trigo. Habemus trigo, pois.

Tenho procurado discutir isso. Aqui, em textos e livros. Em minha visão, três questões fundamentais estão sendo absolutamente negligenciadas por parcela considerável dos ensinadores do Direito (as três conectadas entre si): conceito de verdade, o papel da Universidade e a função/responsabilidade do Professor.

A minha coluna sobre Dworkin e a metáfora do silicone representa o que há de mais urgente hoje no nosso debate jurídico. Entendo que a coluna não apenas destaca a função pedagógica da crítica, mas pretende resgatar os três pontos acima referidos.

Quem não perceber isso, terá graves problemas para bem compreender essas três questões. O que mais assusta é o relativismo epistemológico defendido — consciente ou inconscientemente — por parte considerável dos professores, da doutrina e dos julgadores.

Numa palavra, em certo sentido, a atitude de certos professores e julgadores é mais irresponsável e prejudicial que a da professora de cursinho que usou a infeliz metáfora do silicone. Quem faz a opção pelo simples e facilitado não deve (não pode) ter a pretensão de estar produzindo ciência do Direito (no sentido de um discurso rigoroso com pretensão de racionalidade). Nisso há apenas pretensão de informação. E, quem sabe, “entretenismo”.

Por isso, a necessidade de fazermos uma crítica. Não se pode simplificar um objeto que é complexo. Devemos ter claro que o professor tem a autoridade própria da função de professor como sendo aquele que exerce presumidamente o papel de ser o repositório oficial do conhecimento e, com isso, ter uma série de vantagens. Ele tem maior potencial de propagação de ideias, ele é ouvido com maior atenção e facilidade e ele tem maior liberdade para criar novas ideias e proposições para o direito.

Isso, porém, traz a reboque uma série de responsabilidades que não podem ser colocadas de lado (ora, não se pode ter apenas a parte boa...). Ou seja, não dá para ser cientista e entertainer ao mesmo tempo. Também não dá para ser cético e, ao mesmo tempo, querer dizer para os outros o que é certo. É como alguém que diz “não existem verdades”... sem se dar conta de que acabou de se proclamar um mentiroso.

O professor, portanto, tem a obrigação de criticar (severamente, quando necessário) e tem a responsabilidade social de transmitir o máximo de conhecimento possível, evitando sempre que possível transmitir meias verdades, falsidades ou apenas proposições auto interessadas.

Há que se separar o trigo do joio (e que trabalho penoso esse!). O crítico não deve ser atacado por assumir responsabilidade pela crítica científica, a partir de discursos que agradam às massas. Por isso, professor não deve fazer teoria política do poder em sala de aula. Deve ensinar... direito... o Direito. E, por favor, paremos de dizer que “o que importa é a prática”. Há centenas de milhares de “práticos” semianalfabetos por aí. Pior: eles já são maioria.

Voltando ao início: Fiquei espantado com o que ouvi da estudante. Ou com o que não ouvi. Na verdade, fiquei estarrecido diante do Real. Não do “real”...mas do Real sobre o qual não podemos falar.

Talvez tenhamos “investido” demais na simplificação. Na ânsia de facilitar, já não sabemos nem mais o que se queria facilitar. Qual era mesmo o assunto que devia ser simplificado? Já não se sabe.

Há um mal estar no Direito. Disso falarei mais em outras colunas.

Em tempo: relendo colunas anteriores, lembro de uma em que falei do Direito mastigado e da simplificação que fizeram com a obra O Alienista, de Machado de Assis. Como a malta acha difícil a escrita de Machado, uma professora, com dinheiro público (é claro), fez uma simplificação. Bingo. A palavra “sagacidade” virou “esperteza, para facilitar.

E Bentinho, coitado ... Logo os simplificadores de Dom Casmurro estarão rotulando o pobre rapaz de cornudo, sem pestanejar! E colocarão no Twitter: #Perdeu, Bentinho corno!

Pronto. Por que ler o original se podemos ler um “facilitado” com sinônimos? A Sinfonia Inacabada de Schubert por certo merecerá um lançamento por parte do grupo dos (neo)facilitadores. E ainda dirão que esse Schubert — por certo, um preguiçoso — poderia ter acabado a sinfonia com trinta minutos menos, além do relevante fato de que poderia ter poupado divisas para o Imperador, dispensando um tocador do Oboé, três violinistas, etc.

O Brasil é terrível. Há tempos, o programa Fantástico da Globo quis ensinar filosofia nos domingos à noite. Queria, é claro, facilitar. Genial, não? No primeiro programa a repórter-filósofa entrou em uma caverna em Tubarão (SC), e de lá buscou explicar... o Mito da Caverna. Entenderam? Caverna-que-é-igual-a-uma... caverna! Bingo. Na sequência, para explicar Heráclito, ela subiu em um caminhão, para falar do... movimento. Céus. O que mais inventarão?

Ainda: quem gosta de simplificar, é bom lembrar o que dizia o jornalista norte-americano Henri Menckel: para cada problema complexo há sempre uma resposta simples, rápida... e errada. Pensemos em Shakespeare e sua linguagem. Difícil? Pois. De qualquer modo, sugiro já uma capa para o livro, que, simplificado, dirá que Cassio era um intrigueiro (=fuxiqueiro). Odiava Cesar. Para mostrar como Cesar era um sujeito bundão, contou para Brutus que Cesar não sabia nadar e um dia quase morreu de sede. Resumindo a fala de Cassio: Cesar se achava um Deus, mas era um incompetente e medroso. Nem nadar sabia. Ah: o Enéias do texto não é o “meu nome é Eneas”. Final: Brutus acreditou nisso e acabou com Cesar.

Eis a sugestão (grátis) que dou para o volume sobre Shakespeare! Abaixo, a capa do livro e a contracapa:



Podem substituir Júlio César por Direito X, Y, Z etc. O “simplificado” por ser substituído por facilitado, mastigado, tuitado, resumido, resumão, resumo do resumo, técnica de chutes... Mas a contra capa não muda!

Por Lenio Luiz Streck
Fonte: Conjur
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