goo.gl/3Ligpp | A sentença é da juíza Gláucia Falsarella Foley, em um caso em que o Ministério Público ofereceu denúncia contra um sujeito humilde de Taguatinga, acusado de desacatar a autoridade policial.
Diz a juíza:
A análise de qualquer conduta adequada a esse delito em particular demanda a compreensão do contexto em que as ofensas foram proferidas. Ou seja, para efeito de tipificação, não basta que o órgão acusatório comprove objetivamente a utilização de determinadas palavras ou expressões pelo sujeito ativo. Para a configuração do dolo, é indispensável que as circunstâncias da abordagem do agente público e as condições pessoais do agressor sejam esclarecidas, não sendo suficiente a constatação do uso de vocabulário grosseiro.
No final, julgou improcedente a denúncia.
Cuida-se de ação penal pública incondicionada, submetida ao rito instituído pela Lei nº 9.099/95, em que o MINISTÉRIO PÚBLICO ofereceu denúncia contra ////, devidamente qualificado nos autos, atribuindo-lhe a conduta prevista no artigo 331 do Código Penal, assim descrevendo a dinâmica dos fatos:
“Na data de 09 de janeiro de 2016, por volta das 21:40hs, na Geral QSB 12/QSB13, via pública, Taguatinga/DF, o denunciado, de forma livre e consciente, desacatou funcionários públicos no exercício da função.
Conforme o apurado, policiais militares estavam em patrulhamento de rotina, quando foram acionados por um indivíduo para atender uma provável ocorrência de porte de arma de fogo, sendo que ao chegarem no local foram realizar a abordagem de alguns indivíduos, momento em que o denunciado passou a contestar a abordagem dizendo que era trabalhador, se negando a colaborar, tendo ao final ofendido os policiais dizendo “bando de Zé ruela filho da puta”, sendo então conduzidos para a DP.”
Por ocasião da audiência preliminar, foi apresentada ao acusado proposta de transação penal, a qual restou aceita. No entanto, em razão de seu descumprimento, mencionado benefício foi revogado (fls. 15 e verso e 45).
No curso da instrução, após apresentação da defesa e recebimento da denúncia, foram colhidos os depoimentos das testemunhas ////. O acusado deixou de comparecer à solenidade processual, razão pela qual foi decretada sua revelia. (fls. 58/60).
Nas alegações finais, apresentadas na forma de memoriais, o Ministério Público pugnou pela procedência da peça acusatória (fls. 63/66).
A defesa, a seu turno, requereu a fixação da pena base no mínimo legal, em regime inicial aberto e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. (fls. 69/70).
É o breve relato dos fatos. Passo a decidir.
Da análise dos autos, constata-se que o processo está formalmente em ordem, inexistindo até o presente momento nulidades ou vícios a sanar. O acusado foi regularmente citado e assistido pelo ///, as provas foram coligidas sob o crivo dos princípios norteadores do devido processo legal, mormente o contraditório e a ampla defesa, nos termos constitucionais.
Presentes as condições necessárias ao exercício do direito de ação, bem como os pressupostos processuais legalmente exigidos e, inexistindo alegações preliminares, adentro ao mérito.
Cumpre, primeiramente, investigar se os fatos narrados na denúncia realmente se amoldam à conduta descrita no tipo previsto no artigo 331 do Código Penal, correspondente ao crime de desacato. Para tanto, é oportuno que se compreenda o conteúdo dos elementos do tipo. No que se refere ao elemento subjetivo, exige-se que o agente atue com vontade livre, consciente e com o fim especial de “desacatar” que significa ofender, menosprezar, humilhar, menoscabar, desprestigiar o funcionário público, seja no exercício da função ou em razão dela. Quanto ao aspecto objetivo do tipo, vale dizer que a conduta pode ser praticada por meio de palavras, atos ou violência.
A análise de qualquer conduta adequada a esse delito em particular demanda a compreensão do contexto em que as ofensas foram proferidas. Ou seja, para efeito de tipificação, não basta que o órgão acusatório comprove objetivamente a utilização de determinadas palavras ou expressões pelo sujeito ativo. Para a configuração do dolo, é indispensável que as circunstâncias da abordagem do agente público e as condições pessoais do agressor sejam esclarecidas, não sendo suficiente a constatação do uso de vocabulário grosseiro. Pois bem.
Há dúvidas quanto à legalidade da ordem emanada da guarnição, porque não houve maiores esclarecimentos sobre a motivação da abordagem. Simplesmente afirmar que, segundo o CIADE, havia três elementos próximos a um quiosque, sendo que um deles estaria armado, parece reproduzir a simples – e ilegítima – “abordagem de rotina para averiguações”, jamais perpetrada contra moradores de áreas nobres da cidade. Ao contrário, tal procedimento policial é considerado rotineiro apenas quando aplicados a cidadãos, em sua imensa maioria, pobres e negros.
Esta é uma das expressões mais perversas da seletividade do Direito Penal que criminaliza – com maior veemência – os cidadãos a partir de critérios de classe e de cor. Esse é o racismo institucional que permeia as estruturas do Estado e da sociedade brasileira e sobre a qual a Justiça não pode se omitir.
Ora, não basta haver uma descrição genérica da suspeita de uma prática criminosa para que a busca e apreensão prevista no artigo 240, § 2º, do Código de Processo Penal, sobreponha-se ao direito do cidadão à liberdade de ir e vir.
Uma diligência de tal sorte invasiva demanda a apresentação de uma motivação iminente, sólida, transparente e legítima. E isso não restou comprovado nos autos.
Importante ressaltar que o artigo 331 do Código Penal somente se aplica aos casos em que o funcionário público pauta o exercício de sua função na legalidade e na proporcionalidade. São princípios basilares do Estado Democrático de Direito que fundamentam e legitimam o uso da força coercitiva pelo Estado. Havendo dúvidas quanto à legalidade da ação policial, não é possível formar a convicção quanto à motivação de desprestígio à função pública.
Ademais, para que se configure o desacato, é preciso que agente atue com vontade livre, consciente e com o fim especial de “desacatar” que significa ofender, menosprezar, humilhar, menoscabar, desprestigiar o funcionário público, seja no exercício da função ou em razão dela. O xingamento sem derivação expressa à condição de agente público, parece se adequar somente à modalidade de crimes contra a honra. Nada além disso.
Isso porque, nos casos como o presente, somente por meio de ilações em relação à intenção do réu - técnica proibitiva no Processo Penal – é que se poderia concluir pela tipicidade ou não da conduta.
Após detida análise dos autos, mormente pelos depoimentos coligidos no decorrer da fase instrutória, tenho que a conduta do acusado não se amolda ao tipo legal do crime previsto no artigo 331, do Código Penal. Vejamos:
Conforme o depoimento da testemunha ////, ouvida à fl. 59, ao final da abordagem, quando o depoente e sua guarnição já estavam voltando para a viatura, o réu os xingou de “filho da puta”, “Zé ruela” e ainda fez um sinal obsceno com um dos dedos da mão.
A narrativa do Policial Militar /// reforçou a versão da testemunha ////. Confira-se:
“ (...) que, no dia do ocorrido, receberam notícia de um motoqueiro que havia um homem armado nas proximidades, sendo-lhes repassadas as características compatíveis com as do denunciado; que, após localizado, decidiram fazer uma busca pessoal, tendo o denunciado inicialmente se recusado, dizendo ser trabalhador, razão pela qual foi necessário fazer uso da força, visto que o depoente teve que imobilizá-lo; que, após a busca, quando já estavam retornado para a viatura, o acusado os xingou de "zé ruela" e "filho da puta", razão pela qual lhe foi dada voz de prisão e conduzido à delegacia. (...)” - fl. 60.
In casu, não há qualquer menção às funções desempenhadas pelos policiais. Não se pode, pelo contexto da situação – cuja diligência não se revestiu de legitimidade, já que não esclarecida sua motivação – aferir dolo por parte do acusado. As ofensas perpetradas pelo réu, embora grosseiras e injuriosas, não se destinavam a macular a imagem do servidor público, conforme exige o tipo penal.
Neste sentido, tem decidido o Egrégio T.J.D.F.T. Confira-se:
“PENAL. PROCESSO PENAL. FURTO QUALIFICADO. CONCURSO DE DUAS OU MAIS PESSOAS. ABSOLVIÇÃO. INEXISTÊNCIA DE PROVAS. DESACATO. ABSOLVIÇÃO. ATIPICIDADE. 1. Se as provas dos autos, em especial a palavra da vítima e das testemunhas, se mostram coesas e harmônicas com os demais elementos de prova dos autos, quanto à autoria do delito de furto qualificado pelo concurso de pessoas, mantém-se o decreto condenatório.
2. O dolo do desacato consiste na vontade consciente de praticar a ação ou proferir a palavra injuriosa com o propósito de ofender ou desrespeitar o funcionário a quem se dirige, não configurando o crime expressões produtos de desabafo ou revolta momentânea. 3. Dado parcial provimento ao recurso da defesa. (20080110887069APR, Relator JOÃO TIMOTEO DE OLIVEIRA, 2ª Turma Criminal, julgado em 13/01/2011, DJ 21/01/2011 p. 234)
“JUIZADO ESPECIAL PENAL. DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. DESACATO. PALAVRAS DE BAIXO
CALÃO DIRIGIDAS A MILITARES. CULPA. ÔNUS DA ACUSAÇÃO. DESABAFO. AUSÊNCIA DO ANIMUS DE DENEGRIR. CONJUNTO PROBATÓRIO DEFICIENTE. INSUFICIÊNCIA DA PROVA. ABSOLVIÇÃO. AUSÊNCIA DE
DOLO ESPECÍFICO. CRIME NÃO CONFIGURADO. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.
1. Trata-se de apelação interposta pelo MPDFT contra a sentença que julgou improcedente a pretensão punitiva estatal para condenar o recorrido pelo crime de desacato. Sustenta estar caracterizado o animus de ofender/denegrir a função pública. 2. Para a consumação do crime de desacato durante ação policial deve haver prova do pronunciamento de insultos ou palavras de baixo calão que atinjam o prestígio do servidor e da Administração Pública. Trata-se de crime formal, que não exige resultado naturalístico. É exigida, porém, a presença de dolo específico, que consiste no menosprezo pelo poder estatal, ultrapassando o mero desabafo momentâneo. 3. Para a condenação pressupõe-se a existência de prova cabal. Na dúvida, deve ser prestigiado o princípio in dubio pro reo. Somente os depoimentos dos policiais envolvidos, no caso concreto, não são suficientes para autorizar a condenação. 4. Portanto, deve-se rechaçar a pretensão punitiva por insuficiência de provas. A versão do autor de que teria "reagido" a uma suposta agressão durante uma abordagem e busca pessoal na via não restou devidamente provada. Por outro lado, a versão dos policiais de que teria havido intenção de denegrir a função pública dos policiais também não restou suficientemente comprovada, tal como fundamentos da sentença. 5. Precedente: Acórdão n. 917145, 20130310122547APJ, 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal,
Data de Julgamento: 02/02/2016, Publicado no DJE: 04/02/2016. Pág.: 255, MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO
FEDERAL E TERRITÓRIOS versus RINALDO JOSÉ PEREIRA.
6. Recurso conhecido e não provido. 7. Sentença mantida pelos próprios fundamentos, nos termos do artigo 82, § 5º, da Lei 9.099/95. (20150910153849APJ - 0015384-82.2015.8.07.0009 - Res. 65 CNJ, acórdão nº 961734, Relator: ARNALDO CORRÊA SILVA, Segunda Turma Recursal, data de julgamento: 24/08/2016, Publicado no DJE : 26/08/2016 . Pág.: 623/626 ) (grifo nosso)
Os vocábulos injuriosos que teriam sido proferidos pelo acusado – “filho da puta”, “Zé ruela” – poderiam, em tese, caracterizar o delito de injúria, cuja ação penal é de natureza privada. No entanto, considerando-se que os fatos em apuração ocorreram em 09 de janeiro de 2016 sem que as vítimas tenham oferecido queixa-crime, observa-se que se operou a decadência, dando azo à extinção da punibilidade do autor do fato.
Forte nestas razões, JULGO IMPROCEDENTE a pretensão estatal para ABSOLVER //// da acusação da prática do delito previsto no artigo 331 do Código Penal, com fulcro no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.
Publique-se. Registre-se. Comunique-se. Após o trânsito em julgado, dê-se baixa e arquivem-se os autos.
Por Luis Nassif
Fonte: jornalggn.com.br
Diz a juíza:
A análise de qualquer conduta adequada a esse delito em particular demanda a compreensão do contexto em que as ofensas foram proferidas. Ou seja, para efeito de tipificação, não basta que o órgão acusatório comprove objetivamente a utilização de determinadas palavras ou expressões pelo sujeito ativo. Para a configuração do dolo, é indispensável que as circunstâncias da abordagem do agente público e as condições pessoais do agressor sejam esclarecidas, não sendo suficiente a constatação do uso de vocabulário grosseiro.
No final, julgou improcedente a denúncia.
Sentença
Cuida-se de ação penal pública incondicionada, submetida ao rito instituído pela Lei nº 9.099/95, em que o MINISTÉRIO PÚBLICO ofereceu denúncia contra ////, devidamente qualificado nos autos, atribuindo-lhe a conduta prevista no artigo 331 do Código Penal, assim descrevendo a dinâmica dos fatos:
“Na data de 09 de janeiro de 2016, por volta das 21:40hs, na Geral QSB 12/QSB13, via pública, Taguatinga/DF, o denunciado, de forma livre e consciente, desacatou funcionários públicos no exercício da função.
Conforme o apurado, policiais militares estavam em patrulhamento de rotina, quando foram acionados por um indivíduo para atender uma provável ocorrência de porte de arma de fogo, sendo que ao chegarem no local foram realizar a abordagem de alguns indivíduos, momento em que o denunciado passou a contestar a abordagem dizendo que era trabalhador, se negando a colaborar, tendo ao final ofendido os policiais dizendo “bando de Zé ruela filho da puta”, sendo então conduzidos para a DP.”
Por ocasião da audiência preliminar, foi apresentada ao acusado proposta de transação penal, a qual restou aceita. No entanto, em razão de seu descumprimento, mencionado benefício foi revogado (fls. 15 e verso e 45).
No curso da instrução, após apresentação da defesa e recebimento da denúncia, foram colhidos os depoimentos das testemunhas ////. O acusado deixou de comparecer à solenidade processual, razão pela qual foi decretada sua revelia. (fls. 58/60).
Nas alegações finais, apresentadas na forma de memoriais, o Ministério Público pugnou pela procedência da peça acusatória (fls. 63/66).
A defesa, a seu turno, requereu a fixação da pena base no mínimo legal, em regime inicial aberto e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. (fls. 69/70).
É o breve relato dos fatos. Passo a decidir.
Da análise dos autos, constata-se que o processo está formalmente em ordem, inexistindo até o presente momento nulidades ou vícios a sanar. O acusado foi regularmente citado e assistido pelo ///, as provas foram coligidas sob o crivo dos princípios norteadores do devido processo legal, mormente o contraditório e a ampla defesa, nos termos constitucionais.
Presentes as condições necessárias ao exercício do direito de ação, bem como os pressupostos processuais legalmente exigidos e, inexistindo alegações preliminares, adentro ao mérito.
Cumpre, primeiramente, investigar se os fatos narrados na denúncia realmente se amoldam à conduta descrita no tipo previsto no artigo 331 do Código Penal, correspondente ao crime de desacato. Para tanto, é oportuno que se compreenda o conteúdo dos elementos do tipo. No que se refere ao elemento subjetivo, exige-se que o agente atue com vontade livre, consciente e com o fim especial de “desacatar” que significa ofender, menosprezar, humilhar, menoscabar, desprestigiar o funcionário público, seja no exercício da função ou em razão dela. Quanto ao aspecto objetivo do tipo, vale dizer que a conduta pode ser praticada por meio de palavras, atos ou violência.
A análise de qualquer conduta adequada a esse delito em particular demanda a compreensão do contexto em que as ofensas foram proferidas. Ou seja, para efeito de tipificação, não basta que o órgão acusatório comprove objetivamente a utilização de determinadas palavras ou expressões pelo sujeito ativo. Para a configuração do dolo, é indispensável que as circunstâncias da abordagem do agente público e as condições pessoais do agressor sejam esclarecidas, não sendo suficiente a constatação do uso de vocabulário grosseiro. Pois bem.
Há dúvidas quanto à legalidade da ordem emanada da guarnição, porque não houve maiores esclarecimentos sobre a motivação da abordagem. Simplesmente afirmar que, segundo o CIADE, havia três elementos próximos a um quiosque, sendo que um deles estaria armado, parece reproduzir a simples – e ilegítima – “abordagem de rotina para averiguações”, jamais perpetrada contra moradores de áreas nobres da cidade. Ao contrário, tal procedimento policial é considerado rotineiro apenas quando aplicados a cidadãos, em sua imensa maioria, pobres e negros.
Esta é uma das expressões mais perversas da seletividade do Direito Penal que criminaliza – com maior veemência – os cidadãos a partir de critérios de classe e de cor. Esse é o racismo institucional que permeia as estruturas do Estado e da sociedade brasileira e sobre a qual a Justiça não pode se omitir.
Ora, não basta haver uma descrição genérica da suspeita de uma prática criminosa para que a busca e apreensão prevista no artigo 240, § 2º, do Código de Processo Penal, sobreponha-se ao direito do cidadão à liberdade de ir e vir.
Uma diligência de tal sorte invasiva demanda a apresentação de uma motivação iminente, sólida, transparente e legítima. E isso não restou comprovado nos autos.
Importante ressaltar que o artigo 331 do Código Penal somente se aplica aos casos em que o funcionário público pauta o exercício de sua função na legalidade e na proporcionalidade. São princípios basilares do Estado Democrático de Direito que fundamentam e legitimam o uso da força coercitiva pelo Estado. Havendo dúvidas quanto à legalidade da ação policial, não é possível formar a convicção quanto à motivação de desprestígio à função pública.
Ademais, para que se configure o desacato, é preciso que agente atue com vontade livre, consciente e com o fim especial de “desacatar” que significa ofender, menosprezar, humilhar, menoscabar, desprestigiar o funcionário público, seja no exercício da função ou em razão dela. O xingamento sem derivação expressa à condição de agente público, parece se adequar somente à modalidade de crimes contra a honra. Nada além disso.
Isso porque, nos casos como o presente, somente por meio de ilações em relação à intenção do réu - técnica proibitiva no Processo Penal – é que se poderia concluir pela tipicidade ou não da conduta.
Após detida análise dos autos, mormente pelos depoimentos coligidos no decorrer da fase instrutória, tenho que a conduta do acusado não se amolda ao tipo legal do crime previsto no artigo 331, do Código Penal. Vejamos:
Conforme o depoimento da testemunha ////, ouvida à fl. 59, ao final da abordagem, quando o depoente e sua guarnição já estavam voltando para a viatura, o réu os xingou de “filho da puta”, “Zé ruela” e ainda fez um sinal obsceno com um dos dedos da mão.
A narrativa do Policial Militar /// reforçou a versão da testemunha ////. Confira-se:
“ (...) que, no dia do ocorrido, receberam notícia de um motoqueiro que havia um homem armado nas proximidades, sendo-lhes repassadas as características compatíveis com as do denunciado; que, após localizado, decidiram fazer uma busca pessoal, tendo o denunciado inicialmente se recusado, dizendo ser trabalhador, razão pela qual foi necessário fazer uso da força, visto que o depoente teve que imobilizá-lo; que, após a busca, quando já estavam retornado para a viatura, o acusado os xingou de "zé ruela" e "filho da puta", razão pela qual lhe foi dada voz de prisão e conduzido à delegacia. (...)” - fl. 60.
In casu, não há qualquer menção às funções desempenhadas pelos policiais. Não se pode, pelo contexto da situação – cuja diligência não se revestiu de legitimidade, já que não esclarecida sua motivação – aferir dolo por parte do acusado. As ofensas perpetradas pelo réu, embora grosseiras e injuriosas, não se destinavam a macular a imagem do servidor público, conforme exige o tipo penal.
Neste sentido, tem decidido o Egrégio T.J.D.F.T. Confira-se:
“PENAL. PROCESSO PENAL. FURTO QUALIFICADO. CONCURSO DE DUAS OU MAIS PESSOAS. ABSOLVIÇÃO. INEXISTÊNCIA DE PROVAS. DESACATO. ABSOLVIÇÃO. ATIPICIDADE. 1. Se as provas dos autos, em especial a palavra da vítima e das testemunhas, se mostram coesas e harmônicas com os demais elementos de prova dos autos, quanto à autoria do delito de furto qualificado pelo concurso de pessoas, mantém-se o decreto condenatório.
2. O dolo do desacato consiste na vontade consciente de praticar a ação ou proferir a palavra injuriosa com o propósito de ofender ou desrespeitar o funcionário a quem se dirige, não configurando o crime expressões produtos de desabafo ou revolta momentânea. 3. Dado parcial provimento ao recurso da defesa. (20080110887069APR, Relator JOÃO TIMOTEO DE OLIVEIRA, 2ª Turma Criminal, julgado em 13/01/2011, DJ 21/01/2011 p. 234)
“JUIZADO ESPECIAL PENAL. DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. DESACATO. PALAVRAS DE BAIXO
CALÃO DIRIGIDAS A MILITARES. CULPA. ÔNUS DA ACUSAÇÃO. DESABAFO. AUSÊNCIA DO ANIMUS DE DENEGRIR. CONJUNTO PROBATÓRIO DEFICIENTE. INSUFICIÊNCIA DA PROVA. ABSOLVIÇÃO. AUSÊNCIA DE
DOLO ESPECÍFICO. CRIME NÃO CONFIGURADO. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.
1. Trata-se de apelação interposta pelo MPDFT contra a sentença que julgou improcedente a pretensão punitiva estatal para condenar o recorrido pelo crime de desacato. Sustenta estar caracterizado o animus de ofender/denegrir a função pública. 2. Para a consumação do crime de desacato durante ação policial deve haver prova do pronunciamento de insultos ou palavras de baixo calão que atinjam o prestígio do servidor e da Administração Pública. Trata-se de crime formal, que não exige resultado naturalístico. É exigida, porém, a presença de dolo específico, que consiste no menosprezo pelo poder estatal, ultrapassando o mero desabafo momentâneo. 3. Para a condenação pressupõe-se a existência de prova cabal. Na dúvida, deve ser prestigiado o princípio in dubio pro reo. Somente os depoimentos dos policiais envolvidos, no caso concreto, não são suficientes para autorizar a condenação. 4. Portanto, deve-se rechaçar a pretensão punitiva por insuficiência de provas. A versão do autor de que teria "reagido" a uma suposta agressão durante uma abordagem e busca pessoal na via não restou devidamente provada. Por outro lado, a versão dos policiais de que teria havido intenção de denegrir a função pública dos policiais também não restou suficientemente comprovada, tal como fundamentos da sentença. 5. Precedente: Acórdão n. 917145, 20130310122547APJ, 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal,
Data de Julgamento: 02/02/2016, Publicado no DJE: 04/02/2016. Pág.: 255, MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO
FEDERAL E TERRITÓRIOS versus RINALDO JOSÉ PEREIRA.
6. Recurso conhecido e não provido. 7. Sentença mantida pelos próprios fundamentos, nos termos do artigo 82, § 5º, da Lei 9.099/95. (20150910153849APJ - 0015384-82.2015.8.07.0009 - Res. 65 CNJ, acórdão nº 961734, Relator: ARNALDO CORRÊA SILVA, Segunda Turma Recursal, data de julgamento: 24/08/2016, Publicado no DJE : 26/08/2016 . Pág.: 623/626 ) (grifo nosso)
Os vocábulos injuriosos que teriam sido proferidos pelo acusado – “filho da puta”, “Zé ruela” – poderiam, em tese, caracterizar o delito de injúria, cuja ação penal é de natureza privada. No entanto, considerando-se que os fatos em apuração ocorreram em 09 de janeiro de 2016 sem que as vítimas tenham oferecido queixa-crime, observa-se que se operou a decadência, dando azo à extinção da punibilidade do autor do fato.
Forte nestas razões, JULGO IMPROCEDENTE a pretensão estatal para ABSOLVER //// da acusação da prática do delito previsto no artigo 331 do Código Penal, com fulcro no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.
Publique-se. Registre-se. Comunique-se. Após o trânsito em julgado, dê-se baixa e arquivem-se os autos.
Por Luis Nassif
Fonte: jornalggn.com.br