goo.gl/k2r2nm | O desafio da gestão jurisdicional das unidades é multidimensional e nos arrosta diariamente na condição de juiz. E a imensa maioria dos magistrados, todavia, jamais teve formação qualificada na temática e aprendeu, com largo esforço, a partir das pequenas intervenções feitas em formação continuada. As potencialidades da gestão — qualificada — das unidades jurisdicionais exige um olhar de campo distinto ao jurídico, até porque o trabalho do julgador se modificou substancialmente. Repensar esse lugar do julgador pressupõe a distinção entre a atividade decisional autêntica e a inautêntica, entendida esta última como a atividade “homologatória” do juiz em face das decisões já consolidadas.
Há um duplo viés na abordagem jurídica, a saber, a análise, reflexão e decisão sobre questões de fato e de direito. Com isso, sobre o acoplamento dos fatos às hipóteses legais, surge um amplo espectro de cognição, em que as capacidades humanas serão colocadas à prova, enquanto o normativo demanda um contexto de aplicação em que as imposições dos tribunais superiores, via súmula vinculante e recursos repetitivos, promove uma nova função dos julgadores. Deixam de ser aplicadores da lei para se tornarem representantes da compreensão já tomada. Guardadas as devidas proporções, magistrados se tornam franquia das decisões. As franquias, por exemplo, McDonald's, não têm espaço para criação de produtos, que devem obedecer, expressamente, o modo de produção e o conteúdo indicado pela matriz. O efeito disso é a perda do trabalho humano de criação e adaptação, para se tornar meramente reprodutivo — sem falar no quanto esse formato incita e favorece os mecanismos de percepção e sistemas não ditos de julgamento (heurísticas, vieses, dissonância cognitiva, viés retrospectivo, efeito Halo, mecanismo de satisfatoriedade e limites da racionalidade). A função da magistratura, então, perde-se em verificação da acomodação dos fatos ao entendimento já indicado e, nisso, perde-se o trabalho vivo, com a queda da imagem que o julgador tinha dele mesmo; ainda, sob efeito daqueles mecanismos, as nuances e dramas dos casos em particular podem não ser percebidos.
De outro lado, surgem novos desafios, como o overruling e o distinguishing, cuja tropicalização adequada demanda compreender a importância da teoria do caso, isto é, diferentemente do modelo continental de abordagem, demanda-se que se construa de baixo para cima e não de cima para baixo. O que pode parecer um simples jogo de palavras modifica substancialmente a maneira com que se articula a narrativa fática e o resultado. Ademais, diante do acolhimento pelo novo Código de Processo Civil de institutos que valorizam o contraditório, a não surpresa e a construção participativa da hipótese em julgamento, o esforço cognitivo do julgador é ampliado. Isso porque construir casos exige cada vez mais tempo, atenção cognitiva e disposição dialética, que, contudo, contracenam com a demanda por resultados. Daí que um mecanismo de abordagem possibilitando uma leitura possível atenta às nuances e aos fatores limitadores da racionalidade deve ser construído.
A demanda por resultados quantitativos altera a lógica de produção, já que o número de outputs superiores aos de input funciona como o centro de gravidade de avaliação eficiente da unidade jurisdicional. A atitude do julgador, portanto, no tocante ao duplo viés, impõe-lhe o desafio de sustentar práticas inautênticas de produção em massa de decisões já decididas pelos tribunais superiores, com reduzido esforço cognitivo, em geral, delegado a assessores e estagiários, bem assim de gerenciamento do tempo livre para o enfrentamento das questões que exigem esforço cognitivo. A escassez de recursos (tempo e atenção) faz com, que além das atividades burocráticas que a atividade jurisdicional exige, deva-se promover mecanismos capazes de gerenciar o modo como o magistrado irá enfrentar o duplo desafio: qualidade com quantidade.
A atitude do magistrado irá depender do papel que atribui à sua reputação. Magistrados despreocupados com o escrutínio público de suas condutas podem ser pouco atentos ao desafio qualitativo, enquanto os preocupados com a reputação podem, no limite, estar em situação de desespero gerencial.
A saída de tal dilema não é fácil e pressupõe sejam alinhados mecanismos gerenciais da unidade, conforme as regras do jogo, atendidos, ainda, as pressões contextuais das mais diversas ordens, razão pela qual tenho insistido na leitura pela Teoria dos Jogos[1]. No ambiente penal, a situação resta mais grave ainda porque, sem o cuidado de que cada caso é um caso, perde-se em heurísticas e vieses que funcionam como armadilhas de sentido e promovem o império do erro cognitivo[2]. A tarefa é gerir uma unidade jurisdicional eficiente e, ao mesmo tempo, decidir com qualidade.
[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. Florianópolis: Empório Modara, 2017.
[2] WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vieses da Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação contraintuitiva. Florianópolis: Empório Modara, 2018. Quem desejar mais informações sobre o livro e descontos, escreva para fernanda@emporiomodara.com.br
Por Alexandre Morais da Rosa
Fonte: Conjur
Há um duplo viés na abordagem jurídica, a saber, a análise, reflexão e decisão sobre questões de fato e de direito. Com isso, sobre o acoplamento dos fatos às hipóteses legais, surge um amplo espectro de cognição, em que as capacidades humanas serão colocadas à prova, enquanto o normativo demanda um contexto de aplicação em que as imposições dos tribunais superiores, via súmula vinculante e recursos repetitivos, promove uma nova função dos julgadores. Deixam de ser aplicadores da lei para se tornarem representantes da compreensão já tomada. Guardadas as devidas proporções, magistrados se tornam franquia das decisões. As franquias, por exemplo, McDonald's, não têm espaço para criação de produtos, que devem obedecer, expressamente, o modo de produção e o conteúdo indicado pela matriz. O efeito disso é a perda do trabalho humano de criação e adaptação, para se tornar meramente reprodutivo — sem falar no quanto esse formato incita e favorece os mecanismos de percepção e sistemas não ditos de julgamento (heurísticas, vieses, dissonância cognitiva, viés retrospectivo, efeito Halo, mecanismo de satisfatoriedade e limites da racionalidade). A função da magistratura, então, perde-se em verificação da acomodação dos fatos ao entendimento já indicado e, nisso, perde-se o trabalho vivo, com a queda da imagem que o julgador tinha dele mesmo; ainda, sob efeito daqueles mecanismos, as nuances e dramas dos casos em particular podem não ser percebidos.
De outro lado, surgem novos desafios, como o overruling e o distinguishing, cuja tropicalização adequada demanda compreender a importância da teoria do caso, isto é, diferentemente do modelo continental de abordagem, demanda-se que se construa de baixo para cima e não de cima para baixo. O que pode parecer um simples jogo de palavras modifica substancialmente a maneira com que se articula a narrativa fática e o resultado. Ademais, diante do acolhimento pelo novo Código de Processo Civil de institutos que valorizam o contraditório, a não surpresa e a construção participativa da hipótese em julgamento, o esforço cognitivo do julgador é ampliado. Isso porque construir casos exige cada vez mais tempo, atenção cognitiva e disposição dialética, que, contudo, contracenam com a demanda por resultados. Daí que um mecanismo de abordagem possibilitando uma leitura possível atenta às nuances e aos fatores limitadores da racionalidade deve ser construído.
A demanda por resultados quantitativos altera a lógica de produção, já que o número de outputs superiores aos de input funciona como o centro de gravidade de avaliação eficiente da unidade jurisdicional. A atitude do julgador, portanto, no tocante ao duplo viés, impõe-lhe o desafio de sustentar práticas inautênticas de produção em massa de decisões já decididas pelos tribunais superiores, com reduzido esforço cognitivo, em geral, delegado a assessores e estagiários, bem assim de gerenciamento do tempo livre para o enfrentamento das questões que exigem esforço cognitivo. A escassez de recursos (tempo e atenção) faz com, que além das atividades burocráticas que a atividade jurisdicional exige, deva-se promover mecanismos capazes de gerenciar o modo como o magistrado irá enfrentar o duplo desafio: qualidade com quantidade.
A atitude do magistrado irá depender do papel que atribui à sua reputação. Magistrados despreocupados com o escrutínio público de suas condutas podem ser pouco atentos ao desafio qualitativo, enquanto os preocupados com a reputação podem, no limite, estar em situação de desespero gerencial.
A saída de tal dilema não é fácil e pressupõe sejam alinhados mecanismos gerenciais da unidade, conforme as regras do jogo, atendidos, ainda, as pressões contextuais das mais diversas ordens, razão pela qual tenho insistido na leitura pela Teoria dos Jogos[1]. No ambiente penal, a situação resta mais grave ainda porque, sem o cuidado de que cada caso é um caso, perde-se em heurísticas e vieses que funcionam como armadilhas de sentido e promovem o império do erro cognitivo[2]. A tarefa é gerir uma unidade jurisdicional eficiente e, ao mesmo tempo, decidir com qualidade.
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[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. Florianópolis: Empório Modara, 2017.
[2] WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vieses da Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação contraintuitiva. Florianópolis: Empório Modara, 2018. Quem desejar mais informações sobre o livro e descontos, escreva para fernanda@emporiomodara.com.br
Por Alexandre Morais da Rosa
Fonte: Conjur