Não é fácil ser juiz no Brasil - (Excelente Artigo) de Daniel Kessler de Oliveira

goo.gl/XsNz1g | Está marcada em nossa cultura judicial uma concepção quase que santificada do Magistrado. Isto pode ser compreendido a partir de um olhar histórico que permita a análise de nossa tradição jurídica.

Obviamente que os estreitos limites deste artigo impedem uma análise com o mínimo de responsabilidade, razão pela qual servirá, apenas, de uma mera provocação a uma reflexão.

Esperamos muito do juiz, mormente do juiz criminal, as expectativas sociais depositadas sob o judiciário são enormes. Isto explica os poderes conferidos ao juiz, mas também todas as esperanças depositadas neste indivíduo que, por maiores que sejam os seus poderes, ainda é um ser humano.

Tudo aquilo que projetamos para o futuro (expectativas) é marcado por um forte componente histórico que forma a nossa percepção e nosso modo de ser (tradição).

Por isto, tradicionalmente, o julgador sempre fora o revelador da “verdade”, o representante do soberano e, por consequência, o representante divino a quem caberia a solução justa para aquilo que era levado ao seu conhecimento ou que ele mesmo buscava saber.

Acreditamos cegamente na neutralidade e, depois, na imparcialidade. Cremos na bondade judicial e na sua total isenção. Acreditamos na autoridade e nas decisões que dela sobrevenham, dentre tantas outras crenças que permeiam nossa cultura jurídica.

Entretanto, as consequências disto para o deslinde prático da atuação jurisdicional podem ser gravíssimas.

Não é nada fácil ser juiz no Brasil, já diria Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (em trecho de sua palestra no IV Congresso da Mentalidade Inquisitória, dia 16 de novembro de 2017 em Belo Horizonte – MG), por todas as condições de trabalho e por tudo que a sociedade os exige.

Antes que o debate descambe para outros pontos que não são objeto desse texto, vale esclarecer que não se trata de comparar as dificuldades de um juiz com a da maioria do povo brasileiro, que suporta a injustiça das desigualdades. Mas não podemos reduzir tudo aos vencimentos recebidos pelos Magistrados, pois o que se pretende aqui é analisar as dificuldades vivenciadas pelos juízes e juízas, sem adentrar no que recebem ou deveriam receber por isso, pois o enfoque é outro, como será visto.

Retomando, ser juiz no Brasil é ter um absurdo acúmulo de trabalho, em uma sociedade extremamente judicializada, com pouquíssimos meios extraprocessuais de solução de litígios.

Ser juiz no Brasil é ter de transformar-se em um burocrata cumpridor de metas, responsável desde a escala de férias dos funcionários do cartório até, muitas vezes, a aquisição do papel higiênico para o fórum.

Ser juiz (criminal) no Brasil é ter de trabalhar (na imensa maioria das vezes), com investigações insuficientes, inquéritos falhos, acusações que não se amparam em elementos concretos e ter de lidar com a incômoda sensação de estar cometendo uma injustiça, seja absolvendo um culpado ou punindo um inocente.

Ser juiz no Brasil é ter de se manifestar no inquérito policial sobre medidas cautelares e depois ter que adentrar no processo e se despir de toda aquela carga de convencimento que já o contaminou para que possa ser imparcial durante o processo.

Ser juiz no Brasil é ter de lidar com um sistema penitenciário falido, controlado por grandes facções e conciliar os paradoxais anseios que clamam por mais punição, mas não querem mais presídios.

Ser juiz no Brasil é ter de agir de ofício, buscar provas, revelar a “verdade”, sob pena de ser rotulado de inerte e omisso, muitas vezes pelas próprias partes a quem incumbia a realização.

Ser juiz no Brasil é saber que temos a quarta maior população carcerária e que os índices de criminalidade não param de subir, é ter de lidar com a inoperância estatal em termos de políticas públicas de prevenção da criminalidade.

Ser juiz no Brasil é carregar a responsabilidade pelo combate ao crime em um Estado que não investe no aparelhamento e nas condições de trabalho dos órgãos de polícia ostensiva e investigativa.

Ser juiz no Brasil, hoje em dia, é ter de justificar muito mais uma absolvição do que uma condenação, é não poder se amparar na presunção de inocência, na falta de provas para uma condenação, sob pena de ser tratado como responsável pela delinquência e acusado de envolvimento com facções criminosas.

É claro que tudo isto apenas aflige o juiz ciente de seu papel e consciente da responsabilidade política que um Estado Democrático de Direito o exige.

Esperamos que o Magistrado possa solucionar os problemas todos de nossa sociedade, que possa resolver os problemas da violência, olvidando que o seu papel não é este.

Quantas vezes as críticas em uma absolvição, em uma soltura são endereçadas ao Magistrado e esquecem de avaliar as provas que foram produzidas pelos órgãos incumbidos da investigação e da acusação?

Depositamos todas as expectativas na figura do Magistrado, esquecendo que este homem ou esta mulher que ocupam este cargo estão sujeitos a todas as nossas limitações e falibilidades, enfim, são acometidos pelas insuficiências próprias de todos seres humanos.

É preciso que saibamos o óbvio, é necessário que não outorguemos responsabilidades e deveres que desprezem as próprias limitações humanas de um Magistrado.

Com isto conseguimos enxergar que é impossível se falar em neutralidade e que a imparcialidade deve ser concebida como uma categoria jurídica (LOPES JR) que impeça que seja posta em dúvida a situação de terceiro equidistante e alheio aos interesses das partes.

Somente assim, podemos ter claro que o juiz não deve produzir prova, pois será, inegavelmente, influenciado por aquilo que espera encontrar.

Não podemos imaginar que um juiz possa atuar no inquérito e não forme ali, com base nos elementos unilaterais, o seu pré-convencimento sobre o fato.

Ser juiz no Brasil não é ser justiceiro, nem salvador da pátria. O poder de decidir já é pesado demais e não precisa ser ainda mais ampliado, sob pena de muitas injustiças.

É preciso que os atores judiciais compreendam isto. É preciso que a sociedade reflita sobre estes pontos, mas nada disso adiantará se os juízes não se conscientizarem disto e não rejeitarem e se livrarem destas expectativas sobre humanas que lhes são depositadas.

Por Daniel Kessler de Oliveira
Fonte: Canal Ciências Criminais
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