goo.gl/VqEVB5 | Faltando apenas 3 dias para o julgamento em plenário pelo Tribunal do Júri, recebemos a árdua missão de trabalhar na defesa do Sr. Gilberto, como advogados dativos, já que havia colidência na defesa dos quatro réus (três idosos e um adulto) do processo crime.
Atuar como advogado dativo é isso, assumir o processo pronto para julgamento e trabalhar com o que há nele. A exceção, nesses casos, é receber o processo com tempo hábil para estudo e, via de regra, esses 3 dias são o necessário para os apaixonados pelo júri popular mergulharem (com oxigênio, pela profundidade) por entre suas páginas e dominarem o que ali se encontra.
Esse caso não foi diferente, a equipe assumiu o processo, sem saber ao certo o que viria pela frente. Embora sejamos fervorosos tribunos, estudar as minúcias de um processo, diga-se “venenoso”, com seis volumes não seria fácil, pois todo processo traz uma tensão consigo: são personagens reais, vidas de carne e osso que esperam agoniados e agonizantes pela resolução do conflito, seja uma sentença absolutória, seja condenatória. Seja uma sentença. Um final.
Uma vida se fora, e outras tantas esperavam que se realizasse a justiça. Tanto aqueles acusados, como aqueles que perderam seu jovem ente querido. E não se passaria mais um dia sequer, depois de 13 anos de espera, chegava o dia que definiria o futuro de todos os envolvidos.
Abrimos os autos: a denúncia era um mar de rosas para a acusação, 4 acusados, Gilberto, Dedé, Elias e Marlon, pelo homicídio consumado de Arlei, e a tentativa de homicídio de seu pai José e seu irmão Mário, todos os fatos com a qualificadora do motivo fútil e em concurso de agentes.
O fato se deu em uma comunidade da região metropolitana de Porto Alegre-RS. Era dia 31/12 de dois mil e poucos, noite de Réveillon. Os fogos já queimavam alertando a aproximação do novo ano que se aproximava minuto a minuto. Elias recebia familiares e amigos para passarem a virada de ano juntos em sua casa.
Elias e sua esposa, Gilberto com sua esposa e filhos, o sogro Marlon, e a sogrinha, prontos para aquele churrasco, quando aparece o Dedé, aquele amigo da pá virada, mas que, nem por isso iria passar o fim de ano sozinho, sendo assim, acolhido pelos amigos.
Dedé já tinha algum histórico com as autoridades. Era o típico “machão”, o amigo “deixa comigo que eu resolvo”. Em certa oportunidade, soube através da esposa do Sr. Elias que os vizinhos “de cima” queriam se engraçar para a filha do Elias e, já que Elias era da paz, não dava bola. Porém, Dedé comprou a briga, principalmente quando soube que estes vizinhos ameaçavam roubar quem fosse visitar sua filha. Houve ameaças e boatos de morte.
Pois bem, virou o ano!!! Agora fogos coloriam o escuro do céu e iluminavam o beco falho de iluminação pública. Todos no embalo de espumante e com roupas brancas em sinal de paz ao ano que chegou, quando os vizinhos irmãos, ao avistarem Dedé no portão da casa de Elias, foram tirar satisfação e ver quem é que iria matá-los.
Segundo testemunhas, Dedé falou que não iria aceitar desaforo de ninguém, já empunhando seu revólver. Dito isso, os irmãos lhe seguraram e ele começou a disparar. O som e a luz já não eram mais de fogos de artifício e sim de estampidos de tiros.
Ainda assim, Dedé foi imobilizado, quando os irmãos perceberam a chegada do restante dos membros que estavam na casa de Elias, munidos de facas e partindo pra cima deles (relato da denúncia). Segundo as testemunhas foi um festival de facadas, verdadeira luta, onde os “coroas” mandaram ver. Resultado disso, foi uma vítima fatal e outras duas machucadas.
Dentre as peculiaridades deste processo, víamos os acusados, todos com mais de 60 anos, e sem antecedentes criminais, exceto Dedé, que já tinha algumas passagens pela polícia, inclusive já tendo sido processado, condenado e preso por outros delitos. As vítimas eram os jovens vizinhos e seu pai.
Escutamos certa vez, em plenário, que qualquer ser humano pode ter convicção de que nunca roubará, de que nunca irá traficar, falsificar documentos, etc. Mas o que não poderemos afirmar é de que nunca iremos matar.
E não precisamos ir longe para verificar essa afirmação, pois basta pensarmos em nossos entes queridos, nossos pais, filhos, avós, companheiros. Será que não mataríamos alguém vendo um deles em situação de perigo? Evidente que sim.
Então, qual seria o motivo? Afinal, não há crime sem um motivo. Qual o motivo daqueles senhores terem, a sangue frio, esfaqueado aquelas vítimas? Quanto mais em uma data tão especial, virada de ano, todos em família, senhores que até então, nunca sequer entraram em uma delegacia.
A instrução processual foi longa, com muitos depoimentos de testemunhas, que além da fase policial, depuseram pelo menos 3 vezes perante o juiz. O conteúdo dos depoimentos era um emaranhado de contradições: certa ora reconheciam o réu que deu o tiro, outra os réus que deram as facadas.
O que ficou claro, na instrução, é que a família da vítima não queria de fato saber quem efetivamente matou e lesionou seus familiares, mas sim possuíam sede de justiça em forma de condenação, seja lá quem fosse condenado, o que estava importando era uma condenação penal.
Essa sede de justiça ficou evidente, quando nosso assistido foi reconhecido em plenário pelas testemunhas, que até então, em 13 anos, nunca o reconheceram. O reconhecimento se dava por características e achismos, o que é de extrema gravidade no processo penal, já que por achar que fulano é culpado e apontá-lo, podemos condenar alguém de forma injusta. E nesse caso, a família precisava ver alguém condenado para alívio da alma.
No dia anterior ao julgamento, toca o telefone do escritório: era o cartório do Fórum informando que o réu gostaria de contato prévio com seus defensores dativos, o que nos causou estranheza. Entramos em contato e de fato, a surpresa: do outro lado da linha, tínhamos um réu com voz de idoso, preocupado com seu julgamento, pois ele sequer estava na confusão no dia do fato. Precisávamos provar sua inocência!!
Chegou o dia do plenário! Era uma sexta-feira calorosa. O dia em que conhecemos pessoalmente o réu: um senhor calmo, baixinho, entroncadinho, calvo. Podia facilmente se passar por avô de qualquer um de nós. Mas com toda sua calma não conseguia esconder o quanto temia por uma condenação injusta.
Ele não precisava nos dizer, pois já analisando o processo, não tínhamos dúvidas de sua inocência. As circunstâncias apontavam que ele sequer estava na confusão, de fato. Contudo, ouvir da boca daquele homem, o relato de todo o acontecido, com certeza pesou mais nas costas.
Nunca prometemos a absolvição para nenhum assistido e cliente, até mesmo por questões éticas, mas sempre prometemos uma coisa, e não foi diferente naquele dia: prometemos que iríamos esgotar todas as forças em seu nome, para que ele tivesse certeza de que tudo seria feito por ele e que a partir daquele momento, aquela briga era nossa.
Plenário cheio, muitos familiares das vítimas com foto na camiseta, murmurinho, choro. Clima tenso. Do outro lado, a família do réu, que também carregava aquele peso, a dor de ver o marido, o genro, o pai, sendo tratado como legítimo homicida ao longo dos 13 anos que o processo engatinhou.
Ouvidas as testemunhas, interrogados os réus, iniciaram os debates. Tínhamos um promotor combativo e que desmerecia a todo tempo os réus, com a tradicional frase direcionada aos jurados, quando se tem família de vítima em plenário: “hoje vocês decidirão qual família irá chorar neste dia, a das vítimas, ou a dos réus”.
Escutamos aquela acusação intensa, como tem que ser! Sabíamos que não seria fácil. Afinal, ao utilizar na acusação uma argumentação genérica à respeito da criminalidade em geral, coloca-se o jurado em situação de medo intenso, de que algo precisa ser feito, e que alguém deveria frear o mal causado por todos os criminosos.
Infelizmente, no Tribunal do Júri (claro que pra toda regra, há exceções), o promotor de justiça torna-se um exímio acusador, sem parâmetros necessariamente jurídico nos debates).
Parecia difícil confrontar aquilo tudo, já que a Comarca possui índices elevadíssimos de criminalidade e esse discurso ministerial, frente aos jurados, leigos, parece fazer sentido, já que naquele dia em que determinados jurados formam o Conselho de Sentença, eles estão com poder de – tentar- frear a criminalidade.
Intervalo de 1 hora e meia para o almoço. A essa altura do dia, a cafeína já escorre em nossas veias. Preparamos o plenário. Beca vestida. Reaberta a sessão: A DEFESA TEM A PALAVRA! Essa é, sem dúvidas, a frase que os amantes não só do júri, mas todos os advogados criminais, amam ouvir. Essa frase nos causa tantos sentimentos, arrepios, faz um turbilhão de energia tomar conta de nós e dali pra frente somos a voz de quem é calado no processo penal.
Ainda no interrogatório do Sr. Gilberto, a orientação foi de que ele relatasse de fato o que tinha ocorrido, ainda que a lei o garantisse o direito de permanecer em silêncio. Inclusive, quando se trata de plenário do júri, a defesa deve atentar-se ao silêncio, pois dependendo do caso, os jurados, membros comuns da comunidade, podem fazer jus aquele velho ditado “quem cala consente”.
Mesmo nós, juristas, sabendo que no direito penal não é assim. Portanto, no interrogatório a estratégia adotada pela defesa é bem importante. Pois bem, além de descrever o que aconteceu, era importante destacarmos que o sogro dele, um dos réus, de características semelhantes à época, após o fato, foi embora às pressas, e segundo relatos, indagou aos amigos sobre a perda de uma faca na noite de reveillon. Tudo indicava que o sogro seria o autor das facadas.
Ocorre que a defesa não sabia que o sogro dele, havia falecido há pouco mais de um ano. Tal informação não constava nos autos e apenas tomamos conhecimento através do réu e sua família no dia do plenário. Isso tudo foi prato cheio para a acusação, que a todo momento usou disso para supor que a defesa decidiu por estratégia, colocar a culpa em quem não poderia mais sofrer uma punição.
Tal argumento da acusação não gerou os efeitos esperados, já que minuciosamente foi demonstrado que o Sr. Gilberto foi confundido com o seu sogro, de que nunca fora reconhecido anteriormente, de que não havia uma descrição que lhe apontava como autor das facadas, e que naquela comunidade, recém invadida à época, naquele horário, era muito escuro, iluminação precária e totalmente implausível, que um homem que nunca teve em seu histórico a participação em brigas, um homem de paz, fosse se meter em uma confusão por nada, ainda mais com toda sua família junto, sua mulher e filhos, em uma data comemorativa, sempre com a mesma e coerente versão, confirmada pelas provas trazidas que quando viu aquela bagunça, gritaria, ocorrendo na frente do pátio, se trancou dentro de casa com seus familiares, sequer chegando a ver o ocorrido.
Houve réplica e tréplica. Foram 12 horas em plenário, com um trabalho defensivo e acusatório incansável, demonstrando que não basta ser réu em um processo criminal para se pressupor o cometimento do crime. A todo tempo trouxemos os jurados para perto de nós, da realidade, e dos réus, quebrando a tensão causada pelo Ministério Público, que através do discurso do medo, angaria votos para a condenação.
Lá pelas tantas, ouve-se um grito vindo da plateia: “PROVEM O QUE ESTÃO DIZENDO”. Já era noite alta, o clima continuava tenso e cansativo. O plenário teve de ser esvaziado em função das manifestações dos familiares das vítimas: familiares do réu no corredor e familiares da vítima pro lado de fora do fórum.
Sentimos ali que, a depender do resultado da votação, poderíamos ser atacados, já que éramos encarados o tempo todo. Findo os debates, foi necessário reforço policial, sendo solicitado apoio à respeitada Brigada Militar, que chegou imediatamente ainda durante a votação dos quesitos. Todos entram novamente para a leitura da sentença: RÉUS ABSOLVIDOS.
Não teve como conter as lágrimas, todos choravam. A emoção era muita, tanto por parte dos réus e familiares, quanto por parte dos entes das vítimas. Uma cena que nos marcou foi a sogra do Sr. Gilberto se ajoelhar e erguer as mãos pro céu em forma de oração. Ali percebemos (talvez mais do que nunca) que de fato as melhores coisas da vida não podem ser compradas, somente sentidas.
Estávamos todos exaustos, mas com o sentimento de missão cumprida. A primeira absolvição veio, com um gosto todo especial. O respeito ao Tribunal do Júri, como em qualquer outra área ou situação deve prevalecer. Cumprimentamos uns aos outros: defesa, acusação, familiares, servidores, réus.
Despedimo-nos. Hora de retornar aos lares, prontos para o enfrentamento de mais peleias!
Por Bruna Andrino de Lima
Fonte: Canal Ciências Criminais
Atuar como advogado dativo é isso, assumir o processo pronto para julgamento e trabalhar com o que há nele. A exceção, nesses casos, é receber o processo com tempo hábil para estudo e, via de regra, esses 3 dias são o necessário para os apaixonados pelo júri popular mergulharem (com oxigênio, pela profundidade) por entre suas páginas e dominarem o que ali se encontra.
Esse caso não foi diferente, a equipe assumiu o processo, sem saber ao certo o que viria pela frente. Embora sejamos fervorosos tribunos, estudar as minúcias de um processo, diga-se “venenoso”, com seis volumes não seria fácil, pois todo processo traz uma tensão consigo: são personagens reais, vidas de carne e osso que esperam agoniados e agonizantes pela resolução do conflito, seja uma sentença absolutória, seja condenatória. Seja uma sentença. Um final.
Uma vida se fora, e outras tantas esperavam que se realizasse a justiça. Tanto aqueles acusados, como aqueles que perderam seu jovem ente querido. E não se passaria mais um dia sequer, depois de 13 anos de espera, chegava o dia que definiria o futuro de todos os envolvidos.
Abrimos os autos: a denúncia era um mar de rosas para a acusação, 4 acusados, Gilberto, Dedé, Elias e Marlon, pelo homicídio consumado de Arlei, e a tentativa de homicídio de seu pai José e seu irmão Mário, todos os fatos com a qualificadora do motivo fútil e em concurso de agentes.
O fato se deu em uma comunidade da região metropolitana de Porto Alegre-RS. Era dia 31/12 de dois mil e poucos, noite de Réveillon. Os fogos já queimavam alertando a aproximação do novo ano que se aproximava minuto a minuto. Elias recebia familiares e amigos para passarem a virada de ano juntos em sua casa.
Elias e sua esposa, Gilberto com sua esposa e filhos, o sogro Marlon, e a sogrinha, prontos para aquele churrasco, quando aparece o Dedé, aquele amigo da pá virada, mas que, nem por isso iria passar o fim de ano sozinho, sendo assim, acolhido pelos amigos.
Dedé já tinha algum histórico com as autoridades. Era o típico “machão”, o amigo “deixa comigo que eu resolvo”. Em certa oportunidade, soube através da esposa do Sr. Elias que os vizinhos “de cima” queriam se engraçar para a filha do Elias e, já que Elias era da paz, não dava bola. Porém, Dedé comprou a briga, principalmente quando soube que estes vizinhos ameaçavam roubar quem fosse visitar sua filha. Houve ameaças e boatos de morte.
Pois bem, virou o ano!!! Agora fogos coloriam o escuro do céu e iluminavam o beco falho de iluminação pública. Todos no embalo de espumante e com roupas brancas em sinal de paz ao ano que chegou, quando os vizinhos irmãos, ao avistarem Dedé no portão da casa de Elias, foram tirar satisfação e ver quem é que iria matá-los.
Segundo testemunhas, Dedé falou que não iria aceitar desaforo de ninguém, já empunhando seu revólver. Dito isso, os irmãos lhe seguraram e ele começou a disparar. O som e a luz já não eram mais de fogos de artifício e sim de estampidos de tiros.
Ainda assim, Dedé foi imobilizado, quando os irmãos perceberam a chegada do restante dos membros que estavam na casa de Elias, munidos de facas e partindo pra cima deles (relato da denúncia). Segundo as testemunhas foi um festival de facadas, verdadeira luta, onde os “coroas” mandaram ver. Resultado disso, foi uma vítima fatal e outras duas machucadas.
Dentre as peculiaridades deste processo, víamos os acusados, todos com mais de 60 anos, e sem antecedentes criminais, exceto Dedé, que já tinha algumas passagens pela polícia, inclusive já tendo sido processado, condenado e preso por outros delitos. As vítimas eram os jovens vizinhos e seu pai.
Escutamos certa vez, em plenário, que qualquer ser humano pode ter convicção de que nunca roubará, de que nunca irá traficar, falsificar documentos, etc. Mas o que não poderemos afirmar é de que nunca iremos matar.
E não precisamos ir longe para verificar essa afirmação, pois basta pensarmos em nossos entes queridos, nossos pais, filhos, avós, companheiros. Será que não mataríamos alguém vendo um deles em situação de perigo? Evidente que sim.
Então, qual seria o motivo? Afinal, não há crime sem um motivo. Qual o motivo daqueles senhores terem, a sangue frio, esfaqueado aquelas vítimas? Quanto mais em uma data tão especial, virada de ano, todos em família, senhores que até então, nunca sequer entraram em uma delegacia.
A instrução processual foi longa, com muitos depoimentos de testemunhas, que além da fase policial, depuseram pelo menos 3 vezes perante o juiz. O conteúdo dos depoimentos era um emaranhado de contradições: certa ora reconheciam o réu que deu o tiro, outra os réus que deram as facadas.
O que ficou claro, na instrução, é que a família da vítima não queria de fato saber quem efetivamente matou e lesionou seus familiares, mas sim possuíam sede de justiça em forma de condenação, seja lá quem fosse condenado, o que estava importando era uma condenação penal.
Essa sede de justiça ficou evidente, quando nosso assistido foi reconhecido em plenário pelas testemunhas, que até então, em 13 anos, nunca o reconheceram. O reconhecimento se dava por características e achismos, o que é de extrema gravidade no processo penal, já que por achar que fulano é culpado e apontá-lo, podemos condenar alguém de forma injusta. E nesse caso, a família precisava ver alguém condenado para alívio da alma.
No dia anterior ao julgamento, toca o telefone do escritório: era o cartório do Fórum informando que o réu gostaria de contato prévio com seus defensores dativos, o que nos causou estranheza. Entramos em contato e de fato, a surpresa: do outro lado da linha, tínhamos um réu com voz de idoso, preocupado com seu julgamento, pois ele sequer estava na confusão no dia do fato. Precisávamos provar sua inocência!!
Chegou o dia do plenário! Era uma sexta-feira calorosa. O dia em que conhecemos pessoalmente o réu: um senhor calmo, baixinho, entroncadinho, calvo. Podia facilmente se passar por avô de qualquer um de nós. Mas com toda sua calma não conseguia esconder o quanto temia por uma condenação injusta.
Ele não precisava nos dizer, pois já analisando o processo, não tínhamos dúvidas de sua inocência. As circunstâncias apontavam que ele sequer estava na confusão, de fato. Contudo, ouvir da boca daquele homem, o relato de todo o acontecido, com certeza pesou mais nas costas.
Nunca prometemos a absolvição para nenhum assistido e cliente, até mesmo por questões éticas, mas sempre prometemos uma coisa, e não foi diferente naquele dia: prometemos que iríamos esgotar todas as forças em seu nome, para que ele tivesse certeza de que tudo seria feito por ele e que a partir daquele momento, aquela briga era nossa.
Plenário cheio, muitos familiares das vítimas com foto na camiseta, murmurinho, choro. Clima tenso. Do outro lado, a família do réu, que também carregava aquele peso, a dor de ver o marido, o genro, o pai, sendo tratado como legítimo homicida ao longo dos 13 anos que o processo engatinhou.
Ouvidas as testemunhas, interrogados os réus, iniciaram os debates. Tínhamos um promotor combativo e que desmerecia a todo tempo os réus, com a tradicional frase direcionada aos jurados, quando se tem família de vítima em plenário: “hoje vocês decidirão qual família irá chorar neste dia, a das vítimas, ou a dos réus”.
Escutamos aquela acusação intensa, como tem que ser! Sabíamos que não seria fácil. Afinal, ao utilizar na acusação uma argumentação genérica à respeito da criminalidade em geral, coloca-se o jurado em situação de medo intenso, de que algo precisa ser feito, e que alguém deveria frear o mal causado por todos os criminosos.
Infelizmente, no Tribunal do Júri (claro que pra toda regra, há exceções), o promotor de justiça torna-se um exímio acusador, sem parâmetros necessariamente jurídico nos debates).
Parecia difícil confrontar aquilo tudo, já que a Comarca possui índices elevadíssimos de criminalidade e esse discurso ministerial, frente aos jurados, leigos, parece fazer sentido, já que naquele dia em que determinados jurados formam o Conselho de Sentença, eles estão com poder de – tentar- frear a criminalidade.
Intervalo de 1 hora e meia para o almoço. A essa altura do dia, a cafeína já escorre em nossas veias. Preparamos o plenário. Beca vestida. Reaberta a sessão: A DEFESA TEM A PALAVRA! Essa é, sem dúvidas, a frase que os amantes não só do júri, mas todos os advogados criminais, amam ouvir. Essa frase nos causa tantos sentimentos, arrepios, faz um turbilhão de energia tomar conta de nós e dali pra frente somos a voz de quem é calado no processo penal.
Ainda no interrogatório do Sr. Gilberto, a orientação foi de que ele relatasse de fato o que tinha ocorrido, ainda que a lei o garantisse o direito de permanecer em silêncio. Inclusive, quando se trata de plenário do júri, a defesa deve atentar-se ao silêncio, pois dependendo do caso, os jurados, membros comuns da comunidade, podem fazer jus aquele velho ditado “quem cala consente”.
Mesmo nós, juristas, sabendo que no direito penal não é assim. Portanto, no interrogatório a estratégia adotada pela defesa é bem importante. Pois bem, além de descrever o que aconteceu, era importante destacarmos que o sogro dele, um dos réus, de características semelhantes à época, após o fato, foi embora às pressas, e segundo relatos, indagou aos amigos sobre a perda de uma faca na noite de reveillon. Tudo indicava que o sogro seria o autor das facadas.
Ocorre que a defesa não sabia que o sogro dele, havia falecido há pouco mais de um ano. Tal informação não constava nos autos e apenas tomamos conhecimento através do réu e sua família no dia do plenário. Isso tudo foi prato cheio para a acusação, que a todo momento usou disso para supor que a defesa decidiu por estratégia, colocar a culpa em quem não poderia mais sofrer uma punição.
Tal argumento da acusação não gerou os efeitos esperados, já que minuciosamente foi demonstrado que o Sr. Gilberto foi confundido com o seu sogro, de que nunca fora reconhecido anteriormente, de que não havia uma descrição que lhe apontava como autor das facadas, e que naquela comunidade, recém invadida à época, naquele horário, era muito escuro, iluminação precária e totalmente implausível, que um homem que nunca teve em seu histórico a participação em brigas, um homem de paz, fosse se meter em uma confusão por nada, ainda mais com toda sua família junto, sua mulher e filhos, em uma data comemorativa, sempre com a mesma e coerente versão, confirmada pelas provas trazidas que quando viu aquela bagunça, gritaria, ocorrendo na frente do pátio, se trancou dentro de casa com seus familiares, sequer chegando a ver o ocorrido.
Houve réplica e tréplica. Foram 12 horas em plenário, com um trabalho defensivo e acusatório incansável, demonstrando que não basta ser réu em um processo criminal para se pressupor o cometimento do crime. A todo tempo trouxemos os jurados para perto de nós, da realidade, e dos réus, quebrando a tensão causada pelo Ministério Público, que através do discurso do medo, angaria votos para a condenação.
Lá pelas tantas, ouve-se um grito vindo da plateia: “PROVEM O QUE ESTÃO DIZENDO”. Já era noite alta, o clima continuava tenso e cansativo. O plenário teve de ser esvaziado em função das manifestações dos familiares das vítimas: familiares do réu no corredor e familiares da vítima pro lado de fora do fórum.
Sentimos ali que, a depender do resultado da votação, poderíamos ser atacados, já que éramos encarados o tempo todo. Findo os debates, foi necessário reforço policial, sendo solicitado apoio à respeitada Brigada Militar, que chegou imediatamente ainda durante a votação dos quesitos. Todos entram novamente para a leitura da sentença: RÉUS ABSOLVIDOS.
Não teve como conter as lágrimas, todos choravam. A emoção era muita, tanto por parte dos réus e familiares, quanto por parte dos entes das vítimas. Uma cena que nos marcou foi a sogra do Sr. Gilberto se ajoelhar e erguer as mãos pro céu em forma de oração. Ali percebemos (talvez mais do que nunca) que de fato as melhores coisas da vida não podem ser compradas, somente sentidas.
Estávamos todos exaustos, mas com o sentimento de missão cumprida. A primeira absolvição veio, com um gosto todo especial. O respeito ao Tribunal do Júri, como em qualquer outra área ou situação deve prevalecer. Cumprimentamos uns aos outros: defesa, acusação, familiares, servidores, réus.
Despedimo-nos. Hora de retornar aos lares, prontos para o enfrentamento de mais peleias!
Por Bruna Andrino de Lima
Fonte: Canal Ciências Criminais