goo.gl/p2J6nK | No primeiro semestre de 2017, uma decisão causou verdadeiro choque na comunidade jurídica: o STF havia decidido, por maioria, que em caso de voos internacionais, em havendo extravio de bagagens, a empresa responsável não estaria obrigada a pagar por todo o dano causado ao consumidor, mas haveria limitação na possibilidade de indenização, nos termos da Convenção de Varsóvia.
Explicando um pouco melhor para quem não é da área, essa Convenção de Varsóvia é um tratado internacional, o qual o Brasil é signatário, que dispõe acerca do transporte internacional de cargas e passageiros.
Na questão do extravio de bagagem, dispõe, efetivamente, uma limitação de indenização caso haja perda da bagagem, que corresponde, na prática, a algo em torno de R$ 4.500,00, atualmente.
Mas isso não acabava sendo aplicado na maioria dos casos, aplicando-se, ao revés, o Código de Defesa do Consumidor, que garantia a indenização integral, no limite do dano efetivamente experimentado, caso superasse os mencionados cerca de R$ 4.500,00.
Na verdade, tínhamos uma situação de aparente conflito de normas, pois tanto o Tratado quanto o Código de Defesa do Consumidor tinham posições aparentemente antagônicas sobre o mesmo tema. Era necessário que se tivesse uma decisão sobre qual era a norma aplicável.
Explico que os Tratados, quando integrados no ordenamento jurídico brasileiro, o são com o status de lei ordinária. Portanto, a Convenção de Varsóvia possui status de lei ordinária, mesma condição do Código de Defesa do Consumidor.
Acontece que, de acordo com o art. 178, da Constituição Federal, os tratados devem prevalecer sobre a legislação interna. E foi isso que o STF aplicou no caso, entendendo pela limitação de indenização, entendendo, pois, ter garantido e resguardado o que dispõe a Constituição Federal.
Acontece que, ressalvado o voto dos Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, vencidos no caso, a interpretação não pode estar correta.
Com efeito, o STF, ao decidir pela aplicação da Convenção de Varsóvia, acabou por garantir não só a predileção do Tratado sobre a legislação interna, mas de um Tratado sobre a própria Constituição Federal, algo absolutamente anti jurídico.
Apesar do que dispõe o Tratado e do que dispõe o art. 178, da Constituição Federal, não podemos nos esquecer de que ela não pode ser interpretada de maneira fragmentada, mas apenas enquanto um conjunto, enquanto um verdadeiro sistema.
E, nesse sistema, temos o art. 5º, que dispõe sobre os Direitos e Garantias Fundamentais, informando, no inciso XXXII, que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor".
O art. 170, que trata sobre a ordem econômica, tem como princípio - como pilar que sustenta o sistema - a "defesa do consumidor" (inciso V).
De volta ao art. 5º, diz o inciso V: "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem". O inciso X traz mais uma etapa de proteção: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".
Quando você faz uma limitação de indenização por danos materiais ou morais, significa que você está negando uma prestação jurisdicional capaz de suprimir o dano que a pessoa efetivamente sofreu. Se alguém sofreu um dano de R$ 10.000,00 e você só lhe permite recompor R$ 4.500,00, você está negando vigência à Constituição, na medida em que não lhe é efetivamente assegurada a indenização por dano material ou moral, senão parcialmente, permitindo que parte do dano nunca venha a ser efetivamente recomposto. Isso deixa nítido que a Constituição acaba sendo desrespeitada.
A Constituição Federal cerca especialmente os consumidores, a fim de evitar que venham a sofrer danos por atos do mercado ou, caso ocorram, sejam eles totalmente indenizados.
Logo, ao menos na interpretação perante uma relação de consumo, é evidente que a Convenção de Varsóvia, neste ponto, é inconstitucional, e que o Código de Defesa do Consumidor, neste caso, não se torna superior ao Tratado internacional, mas apenas instrumentaliza diretamente a própria disposição constitucional.
É de se notar que, talvez - apenas talvez -, essa previsão da Convenção de Varsóvia não seja plenamente inconstitucional, mas inconstitucional no caso concreto. Explico: é claro que ela é inconstitucional em uma relação de consumo; mas em uma relação empresarial, em que existe uma liberdade negocial maior e uma proteção constitucional menos enfática, talvez seja possível uma cláusula de limitação de responsabilidade ou limitação de indenização, em termos análogos ao da Convenção.
Enfim, é de uma clareza solar que a decisão do STF não abraçou e nem defendeu a Constituição, que acabou sendo rasgada, ao menos um pouquinho.
Mas, de retalho em retalho, ela acaba sendo totalmente desfigurada, e é isso que a atual composição do STF tem feito em relação a inúmeras matérias. Mas está claro que os tribunais superiores - STF e STJ - caminham para descamar algumas das pilastras que sustentam o sistema constitucional das relações de consumo. Vimos uma alteração de jurisprudência bárbara e semelhante recentemente no STJ, quando decidiu sobre a validade da "comissão de corretagem" cobrada dos compradores de imóveis na planta, outra aberração jurídica.
O tecido social não se esgarça de uma hora para outra, mas com muito empenho ao longo de muitos anos. É esse o provável futuro inimigo das relações de consumo.
O inimigo também está na própria burocracia, com a questão da "repercussão geral" no âmbito dos tribunais superiores, gerando alteração drástica da jurisprudência Brasil adentro através de uma única decisão de tribunais superiores.
Em outros termos, se antes as empresas precisavam "convencer" (interprete como quiser esse verbo) uma infinidade de juízes para fazer valer um dito direito, agora elas só precisam "convencer" 11 pessoas, os ministros do STF, espalhando-se essa decisão, ainda que obviamente errada, bovinamente para todo o país.
É uma questão de tempo até começarem a ruir outros aspectos ainda mais importantes ancorados na Constituição. Ou você confia totalmente nas decisões que partem do STF?
Por Bruno Barchi Muniz
Fonte: Jus Brasil
Explicando um pouco melhor para quem não é da área, essa Convenção de Varsóvia é um tratado internacional, o qual o Brasil é signatário, que dispõe acerca do transporte internacional de cargas e passageiros.
Na questão do extravio de bagagem, dispõe, efetivamente, uma limitação de indenização caso haja perda da bagagem, que corresponde, na prática, a algo em torno de R$ 4.500,00, atualmente.
Mas isso não acabava sendo aplicado na maioria dos casos, aplicando-se, ao revés, o Código de Defesa do Consumidor, que garantia a indenização integral, no limite do dano efetivamente experimentado, caso superasse os mencionados cerca de R$ 4.500,00.
Na verdade, tínhamos uma situação de aparente conflito de normas, pois tanto o Tratado quanto o Código de Defesa do Consumidor tinham posições aparentemente antagônicas sobre o mesmo tema. Era necessário que se tivesse uma decisão sobre qual era a norma aplicável.
Explico que os Tratados, quando integrados no ordenamento jurídico brasileiro, o são com o status de lei ordinária. Portanto, a Convenção de Varsóvia possui status de lei ordinária, mesma condição do Código de Defesa do Consumidor.
Acontece que, de acordo com o art. 178, da Constituição Federal, os tratados devem prevalecer sobre a legislação interna. E foi isso que o STF aplicou no caso, entendendo pela limitação de indenização, entendendo, pois, ter garantido e resguardado o que dispõe a Constituição Federal.
Acontece que, ressalvado o voto dos Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, vencidos no caso, a interpretação não pode estar correta.
Com efeito, o STF, ao decidir pela aplicação da Convenção de Varsóvia, acabou por garantir não só a predileção do Tratado sobre a legislação interna, mas de um Tratado sobre a própria Constituição Federal, algo absolutamente anti jurídico.
Apesar do que dispõe o Tratado e do que dispõe o art. 178, da Constituição Federal, não podemos nos esquecer de que ela não pode ser interpretada de maneira fragmentada, mas apenas enquanto um conjunto, enquanto um verdadeiro sistema.
E, nesse sistema, temos o art. 5º, que dispõe sobre os Direitos e Garantias Fundamentais, informando, no inciso XXXII, que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor".
O art. 170, que trata sobre a ordem econômica, tem como princípio - como pilar que sustenta o sistema - a "defesa do consumidor" (inciso V).
De volta ao art. 5º, diz o inciso V: "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem". O inciso X traz mais uma etapa de proteção: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".
Quando você faz uma limitação de indenização por danos materiais ou morais, significa que você está negando uma prestação jurisdicional capaz de suprimir o dano que a pessoa efetivamente sofreu. Se alguém sofreu um dano de R$ 10.000,00 e você só lhe permite recompor R$ 4.500,00, você está negando vigência à Constituição, na medida em que não lhe é efetivamente assegurada a indenização por dano material ou moral, senão parcialmente, permitindo que parte do dano nunca venha a ser efetivamente recomposto. Isso deixa nítido que a Constituição acaba sendo desrespeitada.
A Constituição Federal cerca especialmente os consumidores, a fim de evitar que venham a sofrer danos por atos do mercado ou, caso ocorram, sejam eles totalmente indenizados.
Logo, ao menos na interpretação perante uma relação de consumo, é evidente que a Convenção de Varsóvia, neste ponto, é inconstitucional, e que o Código de Defesa do Consumidor, neste caso, não se torna superior ao Tratado internacional, mas apenas instrumentaliza diretamente a própria disposição constitucional.
É de se notar que, talvez - apenas talvez -, essa previsão da Convenção de Varsóvia não seja plenamente inconstitucional, mas inconstitucional no caso concreto. Explico: é claro que ela é inconstitucional em uma relação de consumo; mas em uma relação empresarial, em que existe uma liberdade negocial maior e uma proteção constitucional menos enfática, talvez seja possível uma cláusula de limitação de responsabilidade ou limitação de indenização, em termos análogos ao da Convenção.
Enfim, é de uma clareza solar que a decisão do STF não abraçou e nem defendeu a Constituição, que acabou sendo rasgada, ao menos um pouquinho.
Mas, de retalho em retalho, ela acaba sendo totalmente desfigurada, e é isso que a atual composição do STF tem feito em relação a inúmeras matérias. Mas está claro que os tribunais superiores - STF e STJ - caminham para descamar algumas das pilastras que sustentam o sistema constitucional das relações de consumo. Vimos uma alteração de jurisprudência bárbara e semelhante recentemente no STJ, quando decidiu sobre a validade da "comissão de corretagem" cobrada dos compradores de imóveis na planta, outra aberração jurídica.
O tecido social não se esgarça de uma hora para outra, mas com muito empenho ao longo de muitos anos. É esse o provável futuro inimigo das relações de consumo.
O inimigo também está na própria burocracia, com a questão da "repercussão geral" no âmbito dos tribunais superiores, gerando alteração drástica da jurisprudência Brasil adentro através de uma única decisão de tribunais superiores.
Em outros termos, se antes as empresas precisavam "convencer" (interprete como quiser esse verbo) uma infinidade de juízes para fazer valer um dito direito, agora elas só precisam "convencer" 11 pessoas, os ministros do STF, espalhando-se essa decisão, ainda que obviamente errada, bovinamente para todo o país.
É uma questão de tempo até começarem a ruir outros aspectos ainda mais importantes ancorados na Constituição. Ou você confia totalmente nas decisões que partem do STF?
Por Bruno Barchi Muniz
Fonte: Jus Brasil