goo.gl/nqcXyp | Com apenas três meses de vigência já é possível confirmar que a Lei 13.467/2017, aprovada a pretexto de segurança jurídica, a afastou completamente do mundo do trabalho. Há instabilidade do mercado com demissões em massa extremas, decisões conflitantes que parecem interpretar duas legislações distintas, oito questionamentos acerca da constitucionalidade no STF, propostas de cancelamento e alteração de súmulas pelo TST,além de quase mil emendas à Medida Provisória 808 que, publicada no dia da vigência da Lei, estabeleceu uma confusa “Reforma da Reforma Trabalhista”.
O cenário caótico era previsível — e foi previsto. A lei que deformou a CLT faz habitar no mesmo corpo legal um segundo espírito totalmente incompatível com o original, sem, no entanto, o apagar, como uma verdadeira possessão digna de exorcismo. A resultante lei padece de um inegável transtorno dissociativo de personalidade, e não há mesmo como ser utilizada ou interpretada com segurança pela sociedade ou pelo Judiciário.
A clara incompatibilidade da lei consigo mesma (e com o resto do ordenamento jurídico, frisa-se) não parece, ainda, tê-la levado ao insucesso — ao menos sob a ótica dos seus patrocinadores. É que, ao que se percebe (e já se percebia), segurança jurídica não era a intenção, mas uma versão corrompida dela, algo como uma “segurança não judiciária”. Tal intenção não se vê imediatamente nas flexibilizações, mas nas alterações das normas de ação e acesso ao Judiciário, todas elas modificadas para dissuadir o trabalhador a buscar seus direitos na Justiça ou mesmo impedir tal busca.
À parte da (in)constitucionalidade destas alterações (vide ADI 5.766), dentre elas destaca-se a necessidade de determinação dos pedidos inserta nos parágrafos do art. 840 da CLT, interpretada como inauguração da liquidação prévia dos créditos trabalhistas. A regra não mais orientaria a liquidação da decisão transitada em julgado, mas que já na petição inicial as verbas requeridas deveriam ser indicadas. Importa-se, assim, para o processo do trabalho, o debate acerca de “determinação” indicar ou não liquidação, em mais uma indefinição inaugurada pela nova norma.
A despeito da relação entre os conceitos, o dispositivo não parece inviabilizar pleitos não liquidados, se não pela falta de indicação expressa para tanto, ao menos em relação a pedidos não determináveis, conforme §1º do art. 324 do CPC. Isso, ou o direito de ação e acesso ao Judiciário seria impossibilitado, eis que comumente as reclamações pleiteiam direitos cuja liquidação depende de documentos de posse das empresas, que são as usuais rés.
Mesmo assim, ao se interpretar esta alteração com as demais relacionadas ao acesso, é fácil concluir se tratar de uma intenção de óbice ao constitucional acesso à jurisdição – dificultar o ajuizamento da ação e facilitar o cálculo da eventual sucumbência do trabalhador.
Escrevendo em outras palavras: a liquidação antecipada da condenação teve como finalidade a ideia de fazer do medo de pagar a sucumbência o argumento principal para evitar a busca do ressarcimento judicial dos direitos não pagos.
Em razão desta perversa lógica, percebe-se que a alteração legislativa não se deu em um evento qualquer do processo, mas em um particularmente especial, que eleva seu impacto a dimensões aparentemente não previstas pela mão invisível que legiferara: a petição inicial.
A petição inicial veicula e aprisiona a demanda, determina o escopo do processo, com a delimitação da causa de pedir e dos pedidos. Assim e que tudo o que nela está contido, passará a compor a lide e estará à mercê da jurisdição (art. 489, II e III, do CPC).
A consequência de se liquidar pedidos na inicial de uma reclamatória trabalhista, assim, é tornar a liquidação objeto da fase de conhecimento. Não apenas o resultado será mensurado na decisão, mas também os critérios de cálculo lançados na inicial, em uma verdadeira antecipação da usual liquidação de sentença.
Esta nova conformação significa, em consequência, que o cálculo proposto na inicial deverá ser prontamente impugnado pela contestação, sob pena de se consolidar como o critério de cálculo a ser utilizado no caso. É o efeito de controvérsia que se extrai do CPC, nos art. 293, 341, 342, 336 e 374, III, com especial destaque para o art. 341, pelo dever de impugnação específica e da consequência de não se controverter a proposição de cálculo. O raciocínio é condizente com o próprio art. 879, §2º, da CLT, do qual também se extrai o efeito da preclusão sobre uma conta líquida não impugnada, bem como sobre sua fórmula de cálculo.
É de se frisar, ainda, a possibilidade de especial distribuição do ônus da liquidação no caso de pleitos fundados em documentação, perícia e dados de responsabilidade da própria empresa, ao que a consequência da não fundamentação da contestação em cálculos precisos poderia mesmo redundar na presunção de veracidade dos resultados e fórmulas apresentados na inicial, em raciocínio que se extrai por disposição legal, por lógica e por razoabilidade na distribuição enunciada no art. 373, II e §1º, do CPC.
Outra consequência da antecipação da lide e jurisdição do cálculo para a fase cognitiva é a formação da coisa julgada. Liquidados os valores e fórmulas de cálculo e especificamente impugnados, necessitam ser expressamente abordados na decisão, sob pena de se perder a liquidez e se tornar inútil a exigência de liquidação.
Assim, uma vez que o cálculo já terá passado pelo crivo do Judiciário, não mais poderá ter seus critérios alterados, sob pena de violação da coisa julgada — art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal – e preclusão da matéria apta a ser contestada — art. 342 do CPC. Restará, então, com o fim da fase de conhecimento, a mera atualização e o pagamento.
Nestes termos, muito embora tradicionalmente critérios de cálculo e valores tenham sido matéria de execução, não há mais, em uma ação liquidada na fase de conhecimento, como veicular qualquer insurgência pós trânsito em julgado.
O obstáculo intentado apenas ao trabalhador se alastra, compartilhado com a empresa litigante, e compele também o Judiciário à sua resolução precoce; prende a todos, afinal, a dificultosa exigência. Ao trabalhador que logra transpassar o “calvário” posto na inicial, assim, poderá lhe render, ao contrário de todas as expectativas,alguma vantagem processual. Ao que parece, a voracidade da normativa careceu, aqui, da inteligência de um olhar mais aprofundado sobre as consequências processuais da norma, o que pode ter sido bom – ou, mais apropriadamente,menos mal.
Pode-se concluir, assim, que a normativa atual não necessariamente implica na obrigatoriedade de liquidação na inicial, mas, ocorrendo esta, o processo deverá correr conforme a lógica da litiscontestatio, da impugnação específica, da preclusão e da coisa julgada, trazendo o dever de manutenção da liquidação para todos os sujeitos do processo, não apenas à parte autora, e antecipando toda a discussão para a fase cognitiva de forma exclusiva.
Carecemos nós advogados e também juízes de refletir com muita atenção sobre este tema, sob pena de num futuro não muito distante voltarmos à época em que o trabalhador sequer conhecia direitos, pois de fato só enxergava seus deveres pautados numa relação escravista e extremamente desumana. Que a “inicial” não seja um fim ou o fim do processo de reparação a direitos negados ao trabalhador!
*Diego Britto é coordenador do Núcleo Trabalhista do escritório Cezar Britto & Advogados Associados. É pós-graduado em Direitos do Trabalho e Previdenciário pelo Centro Universitário de Brasília e em Processo Civil pela ENA/UNISC.
Fonte: Conjur
O cenário caótico era previsível — e foi previsto. A lei que deformou a CLT faz habitar no mesmo corpo legal um segundo espírito totalmente incompatível com o original, sem, no entanto, o apagar, como uma verdadeira possessão digna de exorcismo. A resultante lei padece de um inegável transtorno dissociativo de personalidade, e não há mesmo como ser utilizada ou interpretada com segurança pela sociedade ou pelo Judiciário.
A clara incompatibilidade da lei consigo mesma (e com o resto do ordenamento jurídico, frisa-se) não parece, ainda, tê-la levado ao insucesso — ao menos sob a ótica dos seus patrocinadores. É que, ao que se percebe (e já se percebia), segurança jurídica não era a intenção, mas uma versão corrompida dela, algo como uma “segurança não judiciária”. Tal intenção não se vê imediatamente nas flexibilizações, mas nas alterações das normas de ação e acesso ao Judiciário, todas elas modificadas para dissuadir o trabalhador a buscar seus direitos na Justiça ou mesmo impedir tal busca.
À parte da (in)constitucionalidade destas alterações (vide ADI 5.766), dentre elas destaca-se a necessidade de determinação dos pedidos inserta nos parágrafos do art. 840 da CLT, interpretada como inauguração da liquidação prévia dos créditos trabalhistas. A regra não mais orientaria a liquidação da decisão transitada em julgado, mas que já na petição inicial as verbas requeridas deveriam ser indicadas. Importa-se, assim, para o processo do trabalho, o debate acerca de “determinação” indicar ou não liquidação, em mais uma indefinição inaugurada pela nova norma.
A despeito da relação entre os conceitos, o dispositivo não parece inviabilizar pleitos não liquidados, se não pela falta de indicação expressa para tanto, ao menos em relação a pedidos não determináveis, conforme §1º do art. 324 do CPC. Isso, ou o direito de ação e acesso ao Judiciário seria impossibilitado, eis que comumente as reclamações pleiteiam direitos cuja liquidação depende de documentos de posse das empresas, que são as usuais rés.
Mesmo assim, ao se interpretar esta alteração com as demais relacionadas ao acesso, é fácil concluir se tratar de uma intenção de óbice ao constitucional acesso à jurisdição – dificultar o ajuizamento da ação e facilitar o cálculo da eventual sucumbência do trabalhador.
Escrevendo em outras palavras: a liquidação antecipada da condenação teve como finalidade a ideia de fazer do medo de pagar a sucumbência o argumento principal para evitar a busca do ressarcimento judicial dos direitos não pagos.
Em razão desta perversa lógica, percebe-se que a alteração legislativa não se deu em um evento qualquer do processo, mas em um particularmente especial, que eleva seu impacto a dimensões aparentemente não previstas pela mão invisível que legiferara: a petição inicial.
A petição inicial veicula e aprisiona a demanda, determina o escopo do processo, com a delimitação da causa de pedir e dos pedidos. Assim e que tudo o que nela está contido, passará a compor a lide e estará à mercê da jurisdição (art. 489, II e III, do CPC).
A consequência de se liquidar pedidos na inicial de uma reclamatória trabalhista, assim, é tornar a liquidação objeto da fase de conhecimento. Não apenas o resultado será mensurado na decisão, mas também os critérios de cálculo lançados na inicial, em uma verdadeira antecipação da usual liquidação de sentença.
Esta nova conformação significa, em consequência, que o cálculo proposto na inicial deverá ser prontamente impugnado pela contestação, sob pena de se consolidar como o critério de cálculo a ser utilizado no caso. É o efeito de controvérsia que se extrai do CPC, nos art. 293, 341, 342, 336 e 374, III, com especial destaque para o art. 341, pelo dever de impugnação específica e da consequência de não se controverter a proposição de cálculo. O raciocínio é condizente com o próprio art. 879, §2º, da CLT, do qual também se extrai o efeito da preclusão sobre uma conta líquida não impugnada, bem como sobre sua fórmula de cálculo.
É de se frisar, ainda, a possibilidade de especial distribuição do ônus da liquidação no caso de pleitos fundados em documentação, perícia e dados de responsabilidade da própria empresa, ao que a consequência da não fundamentação da contestação em cálculos precisos poderia mesmo redundar na presunção de veracidade dos resultados e fórmulas apresentados na inicial, em raciocínio que se extrai por disposição legal, por lógica e por razoabilidade na distribuição enunciada no art. 373, II e §1º, do CPC.
Outra consequência da antecipação da lide e jurisdição do cálculo para a fase cognitiva é a formação da coisa julgada. Liquidados os valores e fórmulas de cálculo e especificamente impugnados, necessitam ser expressamente abordados na decisão, sob pena de se perder a liquidez e se tornar inútil a exigência de liquidação.
Assim, uma vez que o cálculo já terá passado pelo crivo do Judiciário, não mais poderá ter seus critérios alterados, sob pena de violação da coisa julgada — art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal – e preclusão da matéria apta a ser contestada — art. 342 do CPC. Restará, então, com o fim da fase de conhecimento, a mera atualização e o pagamento.
Nestes termos, muito embora tradicionalmente critérios de cálculo e valores tenham sido matéria de execução, não há mais, em uma ação liquidada na fase de conhecimento, como veicular qualquer insurgência pós trânsito em julgado.
O obstáculo intentado apenas ao trabalhador se alastra, compartilhado com a empresa litigante, e compele também o Judiciário à sua resolução precoce; prende a todos, afinal, a dificultosa exigência. Ao trabalhador que logra transpassar o “calvário” posto na inicial, assim, poderá lhe render, ao contrário de todas as expectativas,alguma vantagem processual. Ao que parece, a voracidade da normativa careceu, aqui, da inteligência de um olhar mais aprofundado sobre as consequências processuais da norma, o que pode ter sido bom – ou, mais apropriadamente,menos mal.
Pode-se concluir, assim, que a normativa atual não necessariamente implica na obrigatoriedade de liquidação na inicial, mas, ocorrendo esta, o processo deverá correr conforme a lógica da litiscontestatio, da impugnação específica, da preclusão e da coisa julgada, trazendo o dever de manutenção da liquidação para todos os sujeitos do processo, não apenas à parte autora, e antecipando toda a discussão para a fase cognitiva de forma exclusiva.
Carecemos nós advogados e também juízes de refletir com muita atenção sobre este tema, sob pena de num futuro não muito distante voltarmos à época em que o trabalhador sequer conhecia direitos, pois de fato só enxergava seus deveres pautados numa relação escravista e extremamente desumana. Que a “inicial” não seja um fim ou o fim do processo de reparação a direitos negados ao trabalhador!
*Diego Britto é coordenador do Núcleo Trabalhista do escritório Cezar Britto & Advogados Associados. É pós-graduado em Direitos do Trabalho e Previdenciário pelo Centro Universitário de Brasília e em Processo Civil pela ENA/UNISC.
Fonte: Conjur