goo.gl/56q1EY | O princípio da insignificância não passa de uma "construção jurisprudencial", segundo a juíza Patrícia Alvarez Cruz, chefe do Departamento de Inquéritos Policiais de São Paulo (Dipo-SP), que diz não aplicá-lo por não estar previsto em lei. Ela afirma que a popularização dessa atenuante, usada inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, não significa que seja uma medida legal.
No entanto, a mudança de jurisprudência do STF que passou a permitir a prisão de réus condenados em segunda instância é bem vista pela juíza, mesmo que a Constituição e o Código de Processo Penal determinem a execução da pena somente após o trânsito em julgado.
"A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência", afirmou, em entrevista à ConJur.
Para Patrícia Cruz, a interpretação da Constituição Federal feita pelos defensores da prisão apenas após o trânsito em julgado da condenação, "é demasiadamente extensiva". "Não fosse assim, não poderíamos admitir as prisões em flagrante e preventiva, todas anteriores ao trânsito em julgado. Além disso, é preciso considerar que a análise do mérito se esgota no segundo grau, não sendo, por isso, razoável aguardar, para a execução da pena, o julgamento dos recursos nos tribunais superiores."
Pelo Dipo, que conta com 111 mil inquéritos, a juíza é responsável por manter o funcionamento contínuo das audiências de custódia em São Paulo — iniciativa que completará três anos no próximo sábado (24/2), criada para garantir ao preso em flagrante o direito de ser ouvido por um juiz em 24 horas.
De acordo com a julgadora, o principal objetivo desses encontros entre presos e juízes é verificar eventuais abusos policiais durante as prisões. Na visão dela, muitas das alegações sobre violência policial são infundadas, sendo poucos os casos em que isso realmente acontece.
Patrícia afirma que o suspeito, mesmo liberado, não pode sair da audiência de custódia sem algemas, porque "algum risco ele sempre acaba oferecendo". Segundo ela, muitas vezes, quem é solto fica circulando pelo fórum, com o objetivo de cometer crimes, como furto de canetas ou celulares.
Leia a entrevista:
Qual a função do Dipo? Se o setor trata de inquéritos policiais, por que ele não fica com a Polícia Civil?
Patrícia Alvarez Cruz — O Dipo cuida do processamento do inquérito, que depende de manifestações do Ministério Público e do Judiciário. O inquérito policial não corre na delegacia e, um dia, termina e vai direto para o promotor. De 30 em 30 dias, o delegado tem que pedir dilação de prazo, porque, em tese, ele deveria terminar em determinado tempo.
Normalmente ele não termina nesse prazo, a menos que seja um inquérito policial envolvendo réu preso. Então ele tem que ir para o promotor. O promotor vai verificar se tem diligências ainda a serem realizadas, investigações que ele entende pertinentes e, depois, o juiz que vai deferir esse retorno dos autos à delegacia de polícia para a continuidade das investigações. Até, finalmente, ir para o promotor oferecer denúncia.
Há um projeto em São Paulo que pretende digitalizar todos os inquéritos policiais. Com essa plataforma, a investigação sai direto da Polícia para o Ministério Público e, em seguida, para o Judiciário. Isso pode acelerar a tramitação dos inquéritos e das ações?
Patrícia Alvarez Cruz — Embora seja extremamente positivo, no início, há um impacto negativo. Os funcionários demoram um pouco a se costumar com o processamento digital. Isso aconteceu nas varas. Eu vivi esse problema. Mas, superada essa dificuldade, não tenho dúvidas de que acelera o processamento. Mas, mesmo com a mudança, continuaremos com 111 mil inquéritos físicos, que não vão desaparecer da noite para o dia.
Qual é o principal objetivo da audiência de custódia?
Patrícia Alvarez Cruz — É verificar se o preso sofreu maus tratos. Não tenho dúvida nenhuma disso.
Maus tratos aos presos são um comportamento constante das autoridades?
Patrícia Alvarez Cruz — Óbvio que não sabemos exatamente o que aconteceu durante uma prisão, porque estamos distantes dessa prisão e da realidade policial. Mas é possível ter uma noção do que realmente houve ao analisar o exame de corpo de delito. É bem raro verificarmos lesões. Quando isso é ocorre, normalmente é porque o preso caiu durante a fuga ou resistiu à prisão. Há também casos de linchamento. Mas a quantidade de presos que alegaram violência policial para mim é enorme. Porém, em muitos casos, quando li o laudo não tinha absolutamente nada. Tem muita alegação infundada.
Linchamentos a criminosos são comuns em São Paulo?
Patrícia Alvarez Cruz — Lembro de alguns casos, sim. Não posso dizer que são muito frequentes, mas também não posso afirmar que é incomum. Normalmente acontece antes da chegada da polícia, porque as pessoas vão embora quando os policiais se aproximam, tanto que dificilmente eles conseguem apurar quem foi. Tenho a sensação de que a população está um pouco revoltada com a impunidade, e isso acaba levando à vingança privada, que é justamente o que a gente tenta evitar por meio da Justiça.
A senhora avalia que uma parcela da magistratura é justiceira? Juízes garantistas são perseguidos pela classe?
Patrícia Alvarez Cruz — Os juízes garantistas não são perseguidos. Nunca vi um juiz ser perseguido, receber qualquer tipo de sanção administrativa por causa do seu convencimento. Nunca vi, em toda minha carreira. Sobre os juízes justiceiros, também não acredito que existam. A maior parcela dos juízes é moderada.
A senhora considera que reincidentes, mesmo presos por crimes sem violência, devem permanecer detidos? A ausência de violência durante o crime é o que mais deve ser considerado na hora de manter uma pessoa presa ou solta?
Patrícia Alvarez Cruz — Via de regra, o reincidente, se for reincidente específico ou pela prática de um crime mais grave ainda, não faz jus nem à pena restritiva de direitos nem à suspensão constitucional da pena. Por isso, vai ser aplicado a ele um regime fechado ou semiaberto. Nós normalmente mantemos preso um reincidente, porque, na sentença, ele vai continuar preso. Não tem sentido nenhum soltar esse acusado para que depois ele receba uma pena em regime fechado ou em regime semiaberto.
Além disso, existem crimes graves que são cometidos sem violência. O tráfico é um exemplo de delito que não demanda violência nem grave ameaça e é um crime gravíssimo. Tanto que ele é equiparado a hediondo pela lei. O tráfico envolve um tipo de violência, basta ver o que acontece no Rio de Janeiro. Sem o tráfico de drogas, acho que a violência nem existiria nas favelas do Rio. Independentemente da violência, o tráfico tem que ser encarado como um crime grave, do meu ponto de vista.
Mas isso não pode ser entendido como cumprimento prévio da pena?
Patrícia Alvarez Cruz — Não, é simplesmente uma medida cautelar. Porque, se é reincidente, o preso está tornando a delinquir e oferece um risco à sociedade.
Como a senhora avalia a jurisprudência do STJ e do Supremo sobre o princípio da insignificância?
Patrícia Alvarez Cruz — Não aplico o princípio da insignificância.
Por quê?
Patrícia Alvarez Cruz — Porque não está previsto em lei. É construção jurisprudencial.
Se não é previsto, então por que o princípio é aplicado?
Patrícia Alvarez Cruz — Porque se construiu essa jurisprudência. Simples assim. Alguém começou decidindo assim, o outro acompanhou e, quando vimos, várias estavam decidindo assim, até os tribunais superiores, mas isso não significa que seja uma medida legal.
A senhora é a favor da prisão após condenação em segunda instância?
Patrícia Alvarez Cruz — Sou favorável à prisão após o esgotamento dos recursos em segunda instância e concordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal no HC 126.292, pois a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência.
A interpretação do artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal que se dá pelos que são contrários a essa ideia é demasiadamente extensiva. Não fosse assim, não poderíamos admitir as prisões em flagrante e preventiva, todas anteriores ao trânsito em julgado. Além disso, é preciso considerar que a análise do mérito se esgota no segundo grau, não sendo, por isso, razoável aguardar, para a execução da pena, o julgamento dos recursos nos tribunais superiores.
Levando em conta a situação do nosso sistema carcerário, a senhora avalia que os juízes, ao condenarem uma pessoa à prisão, devem levar em consideração o local onde ela ficará presa?
Patrícia Alvarez Cruz — Seria muito difícil um juiz conseguir decidir se ele parasse para pensar nisso o tempo todo. Essa não é uma questão que diz respeito ao Judiciário, ela é exclusiva do Poder Executivo. Não temos gerência sobre isso, então é preciso separar as duas coisas. Para o juiz ser objetivo e fazer o trabalho dele, ele tem que separar isso.
A senhora concorda com a criação do juízo de garantias?
Patrícia Alvarez Cruz — Sou a favor do modelo atual. É muito importante para o juiz instruir o processo, porque ele precisa conhecer o réu, saber com quem está lidando. Esse contato que o juiz tem com a testemunha, com a vítima, com os réus é extremamente importante. Por exemplo, em um crime de estupro, o juiz precisa ouvir a vítima para poder averiguar. Normalmente, casos de estupro não têm testemunha. É essencial o juiz instruir o processo que vai julgar.
Isso vale para todo e qualquer crime?
Patrícia Alvarez Cruz — Sim.
A senhora aproveita as provas do inquérito nos processos que julga?
Patrícia Alvarez Cruz — Se estiverem corroboradas com a prova em juízo, sim. Mas, se eu estiver em uma situação em que só tenho prova de inquérito, não, até porque existe vedação legal. Mas há outros meios, por exemplo, a palavra de policiais. Porém, em certas ocasiões, não temos a palavra da vítima, porque ela desapareceu. Mas se a palavra dos agentes de segurança corroborar com o que foi colhido junto à vítima na fase policial, conseguimos aproveitar.
São válidas decisões tomadas apenas com base na palavra dos policiais? Não ferem o contraditório e a ampla defesa?
Patrícia Alvarez Cruz — Não fere o contraditório ou a ampla defesa, porque o policial vai ser ouvido e questionado pela acusação e pela defesa. Agora, não faz sentido o Estado escolher pessoas para reprimirem ou prevenirem o crime e depois negar crédito ao que eles dizem. Via de regra, a gente deve presumir que é legítima a atuação dos agentes do Estado. É óbvio que isso vai depender do caso. Muitas vezes a palavra do policial não é convincente. Mais uma razão pela qual é pedido que o juiz deva instruir o processo. O juiz tem sensibilidade e experiência para perceber se algum policial não está sendo sincero. Muitas vezes eu não me convenci com a palavra dos policiais e absolvi.
Grande parte das pessoas levadas às audiências de custódia aparecem algemadas. Se há súmula do STF com restrições à prática [Súmula Vinculante 11], por que presos por crimes sem violência são levados ao juízo algemados mesmo com a Polícia Militar ao lado?
Patrícia Alvarez Cruz — Porque temos um contingente de mais ou menos 160 presos por dia para 19 policiais. Seria impossível manter a ordem e garantir a segurança de milhares de pessoas que circulam pelo fórum todos os dias.
Por que o acusado, quando é solto pelo juiz na audiência de custódia, não pode sair da audiência sem algema?
Patrícia Alvarez Cruz — Ele é solto depois, com o alvará de soltura. É uma questão de organização, porque isso é da alçada da escolta — é ela que deve decidir o que funciona melhor, porque é preciso passar por todos os procedimentos até cumprir o alvará. E porque, de qualquer forma, algum risco ele sempre acaba oferecendo. Mesmo os réus soltos são levados escoltados para fora do fórum. Já aconteceu muitas vezes de réu solto ficar circulando pelo fórum com o objetivo de cometer crimes. Também já aconteceu de colegas serem abordados por pessoas que tinham acabado de ser soltas em audiência de custódia.
Já houve assalto dentro do próprio fórum criminal?
Patrícia Alvarez Cruz — Assalto não, mas, sim, já houve furto de caneta de juiz dentro de gabinete. Eu presenciei dois casos [de furto de celular]. Um de uma defensora pública que estava defendendo o réu. No que ela foi conversar comigo no gabinete, ele [réu] entrou no gabinete dela e furtou o celular. Teve outro caso que furtaram o celular da minha estagiária lá no cartório.
A pressão pública torna mais fácil condenar do que absolver, na sua opinião?
Patrícia Alvarez Cruz — É muito mais difícil condenar do que absolver, porque é muito mais trabalhoso. Temos que aplicar pena. A aplicação da pena, a dosimetria, é a parte mais complicada da sentença. Também porque colher uma prova para condenar é mais difícil do que colher uma prova para absolver.
Normalmente uma prova para absolver é uma prova em que eu não consegui mover muitas testemunhas... Sobre a pressão pública, muitos juízes já sofreram grandes críticas da imprensa por terem condenado, na mesma medida em que foram criticados por absolver. O Judiciário, em geral, tem sido muito criticado.
Por que essas críticas têm sido tão intensas?
Patrícia Alvarez Cruz — Talvez por causa da internet. Hoje em dia é muito fácil criticar. Qualquer leigo monta um blog e sai por aí criticando. Acho que todos os setores da sociedade têm sido muito criticados.
Existe possibilidade de recuperar o preso no sistema prisional brasileiro? Mesmo com o caos carcerário — falta de infraestrutura, péssimas condições e alimentação ruim?
Patrícia Alvarez Cruz — Acredito que sim. Já vi sujeito que se arrependeu, foi procurar saber qual era a pena que ele tinha que cumprir, porque queria pagar pelo erro dele. Agora, não sei te dizer se é o sistema que corrige ou se é a própria pessoa que se corrige. É difícil. Isso é muito subjetivo.
Se o próprio Supremo já declarou que o sistema carcerário está em um Estado de Coisas Inconstitucional, enviar uma pessoa para o cárcere por determinado crime sem violência ou sem reincidência não seria uma forma de descumprir jurisprudência?
Patrícia Alvarez Cruz — Não. Em primeiro lugar, vamos separar as coisas. Em crime sem violência e sem reincidência, é muito raro a gente enviar para o cárcere. Porque a própria lei cuida de evitar isso. Um sujeito primário que é condenado a uma pena de até quatro anos não pode ser preso. Nos outros crimes, não sendo reincidente, normalmente ele recebe uma pena restritiva de direitos.
É balela dizer que as pessoas vão para a cadeia, mas não cometeram crime com violência nem grande ameaça ou são primárias. Desconheço casos assim. Quando mandamos alguém para a cadeia, é porque o sujeito é reincidente — se for o caso do crime sem violência nem grave ameaça. Já no caso de reincidência, se enviar uma pessoa reincidente para a cadeia é inconstitucional, não precisa mais de juiz. E não seria descumprir jurisprudência, meu Deus. O próprio Supremo Tribunal envia pessoas para a cadeia. Ou não envia? No Mensalão não enviou? Não havia muitos réus primários entre elas?
Muito se fala sobre a precariedade e defasagem das vagas do sistema carcerário, que muitos desses presos ainda não foram condenadas...
Patrícia Alvarez Cruz — Mas alguém já parou para pensar que esses 40% são móveis? Enquanto tem 40% que o processo está em andamento, tem os outros 60% que já estão condenados. Daqui a pouco esses 40% já estão condenados, aí vão aparecer mais 40%. Porque mais 40% cometeram crimes. Isso não é falha da Justiça. Isso é simplesmente porque as pessoas continuam cometendo crimes. Cessaria se as pessoas parassem de cometer crimes.
Como a senhora avalia os termos do indulto concedido pelo presidente Michel Temer em dezembro?
Patrícia Alvarez Cruz — O indulto, via de regra, é benevolente demais. Indulto não foi feito para esvaziar a cadeia, é uma figura para ser usada em casos especiais. A impressão que tenho é que tem servido como instrumento para aliviar a superpopulação carcerária. Não é esse o objetivo do instituto.
Uma vez ouvi de um criminalista que o indulto é uma espécie de pino de panela de pressão, que é um pouco levantado para tirar o excesso da pressão e o presídio não explodir.
Patrícia Alvarez Cruz — Pois é. Mas é esse o papel do Estado?
Qual é o papel do Estado nessa questão?
Patrícia Alvarez Cruz — Do indulto, não saberia dizer. Teria que fazer uma análise profunda sobre as origens do indulto. Mas, por exemplo, o papel do Judiciário é fazer Justiça. O papel do Judiciário não é atuar em favor do Poder Executivo nem fazer as vezes do Poder Executivo para resolver o problema carcerário.
O Judiciário também tem culpa no caos carcerário atual?
Patrícia Alvarez Cruz — Acredito que não. Qual seria a culpa do Judiciário?
Falta de correições efetivas, talvez...
Patrícia Alvarez Cruz — Correição é o que mais tem. Aqui, quem faz correição é uma juíza auxiliar. Toda quarta-feira ela sai para fazer correição em cadeia. Isso porque temos poucas cadeias com presos. Salvo engano são cinco. Existe uma fiscalização muito boa, também no juízo das execuções criminais. Não quero crer que meus colegas sejam levianos. Quando eu fazia correição em cadeia, conversava preso por preso, um por um. Nunca fiz uma correição que não fosse assim e quero crer que meus colegas também atuem com responsabilidade.
A cadeia humaniza aqueles que convivem nesse meio, por exemplo, juízes, promotores e advogados?
Patrícia Alvarez Cruz — Sim. Não ignoro as deficiências do sistema carcerário, mas, ao decidir, tenho a árdua tarefa de ponderar se o que deve prevalecer é o direito do indivíduo ou a segurança da sociedade. Já fui juíza corregedora de cadeias públicas e, nessa condição, conheci bem a situação dos presos. Ao proferir uma sentença condenatória ou decisão que envolva a prisão de qualquer um, é evidente que levo em consideração as dificuldades que o preso enfrenta no sistema prisional. Mas não é possível prever, porque ao decidir não temos a noção exata das condições desse ou daquele presídio, nem mesmo, devido às transferências, de em qual deles a pena será cumprida, qual será a realidade concreta daquele preso.
Há presídios melhores e piores e os juízes de conhecimento, em oposição aos das Execuções Penais, não têm informações suficientes a respeito de cada qual, individualmente. Além disso, é necessário fazer uma opção entre a liberdade do preso e a segurança da sociedade. Muitas vezes é preciso sacrificar a liberdade de um indivíduo que representa perigo à coletividade em nome da segurança e da ordem pública. Esse difícil dilema só pode ser resolvido caso a caso. É por isso que, ao analisar cada hipótese concreta, reservamos apenas aos indivíduos mais perigosos, ou aqueles que insistem em delinquir, a solução mais extrema, que é o encarceramento.
A senhora foi acusada de ter sido muito dura com um réu que roubou quatro latas de atum porque ele teria chegado atrasado à audiência. Como foi isso?
Patrícia Alvarez Cruz — Essa questão foi até veiculada na imprensa na época. A Defensoria Pública estava pelo réu assim como o Ministério Público estava pela acusação. A Defensoria tinha todo o interesse de veicular essa matéria dessa forma. A defensora pública que atuou no caso me disse que levaria o caso à imprensa. Ela ficou pessoalmente revoltada com a decisão. Mas o que aconteceu foi o seguinte: o réu era reincidente e foi beneficiado pela liberdade provisória. Deixei que ele ficasse solto o processo inteiro.
No dia da audiência, ele tinha a obrigação de comparecer, mas ele não apareceu. Nesses casos, inclusive, a lei manda prender e essa é, normalmente, minha conduta, exceto quando o sujeito não é reincidente. O sujeito é reincidente, a Justiça dá uma chance para ele — “olha, você vai ficar em liberdade, vai para sua casa, mas você apareça aqui no dia da audiência — e ele não aparece no dia da audiência... O que eu fiz é o que eu normalmente faria: revoguei a liberdade provisória e decretei a prisão. Fiz a sentença e fui fazer outras coisas relacionadas ao meu trabalho. Uma hora depois de ter feito a decisão, ele apareceu. Aí enfrentei outro problema: o de não poder revisar minha própria decisão.
Não tinha o que fazer?
Patrícia Alvarez Cruz — Já tinha uma determinação de prisão. A defensora veio conversar comigo, mas a sentença já tinha sido publicada. Tem que cumprir a ordem de prisão, tem que cumprir o mandato.
A senhora também foi criticada por ter fixado pena de quatro anos em regime fechado a uma ré primária por roubo. A senhora poderia detalhar melhor essa caso?
Patrícia Alvarez Cruz — Isso aconteceu não só uma vez, mas muitas. Já condenei diversas vezes casos de roubo, regime fechado, com pena de quatro anos, porque é a pena do roubo. Não sou a única, pelo menos metade dos juízes da Barra Funda e metade dos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo já julgaram dessa forma. Isso não é uma coisa fora do normal.
Foi veiculado na imprensa que, depois da sua posse na chefia do Dipo, o número de prisões na audiência de custódia aumentou 90%. Esse levantamento foi divulgado pelo Dipo? É um número oficial?
Patrícia Alvarez Cruz — O número oficial é 66%. De onde surgiu esse outro número só a própria imprensa pode me informar. Não sei de onde eles tiraram.
A senhora é vista, principalmente pela advocacia, como uma juíza excessivamente dura e também está sendo tratada na imprensa como uma juíza que pode não fazer bem às audiências de custódia. O que a senhora tem a dizer sobre isso?
Patrícia Alvarez Cruz — Os advogados, obviamente, preferem juízes menos duros, porque é do interesse dos bens deles. Não acredito que eu seja dura. Sou firme. Prezo muito pelo respeito alheio. Agora, do mesmo jeito que sou firme com um preso, com um réu, um autuado, sou firme, por exemplo, com a atividade da polícia.
Caso saiba, por exemplo, que um réu foi vítima de maus tratos ou de violência policial, pode ter certeza absoluta que vou ser firme com o policial que cometeu esses abusos, da mesma forma que eu sou com o réu. O que tenho é uma postura firme diante da criminalidade em geral. Seja ela de colarinho branco, do réu mais humilde ou do policial. Aliás, sou mais firme ainda quando um funcionário público comete um crime do que uma pessoa comum.
Por quê?
Patrícia Alvarez Cruz — Porque o funcionário público tem a obrigação de zelar pelo que é público. Ele recebe do Estado para atender à população.
O juiz federal Marcelo Bretas afirmou em uma entrevista que a Justiça precisa ser temida. A senhora concorda com essa afirmação?
Patrícia Alvarez Cruz — Não acho que a Justiça tenha que ser temida. Tem que ser respeitada.
Por Brenno Grillo
Fonte: Conjur
No entanto, a mudança de jurisprudência do STF que passou a permitir a prisão de réus condenados em segunda instância é bem vista pela juíza, mesmo que a Constituição e o Código de Processo Penal determinem a execução da pena somente após o trânsito em julgado.
"A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência", afirmou, em entrevista à ConJur.
Para Patrícia Cruz, a interpretação da Constituição Federal feita pelos defensores da prisão apenas após o trânsito em julgado da condenação, "é demasiadamente extensiva". "Não fosse assim, não poderíamos admitir as prisões em flagrante e preventiva, todas anteriores ao trânsito em julgado. Além disso, é preciso considerar que a análise do mérito se esgota no segundo grau, não sendo, por isso, razoável aguardar, para a execução da pena, o julgamento dos recursos nos tribunais superiores."
Pelo Dipo, que conta com 111 mil inquéritos, a juíza é responsável por manter o funcionamento contínuo das audiências de custódia em São Paulo — iniciativa que completará três anos no próximo sábado (24/2), criada para garantir ao preso em flagrante o direito de ser ouvido por um juiz em 24 horas.
De acordo com a julgadora, o principal objetivo desses encontros entre presos e juízes é verificar eventuais abusos policiais durante as prisões. Na visão dela, muitas das alegações sobre violência policial são infundadas, sendo poucos os casos em que isso realmente acontece.
Patrícia afirma que o suspeito, mesmo liberado, não pode sair da audiência de custódia sem algemas, porque "algum risco ele sempre acaba oferecendo". Segundo ela, muitas vezes, quem é solto fica circulando pelo fórum, com o objetivo de cometer crimes, como furto de canetas ou celulares.
Leia a entrevista:
Qual a função do Dipo? Se o setor trata de inquéritos policiais, por que ele não fica com a Polícia Civil?
Patrícia Alvarez Cruz — O Dipo cuida do processamento do inquérito, que depende de manifestações do Ministério Público e do Judiciário. O inquérito policial não corre na delegacia e, um dia, termina e vai direto para o promotor. De 30 em 30 dias, o delegado tem que pedir dilação de prazo, porque, em tese, ele deveria terminar em determinado tempo.
Normalmente ele não termina nesse prazo, a menos que seja um inquérito policial envolvendo réu preso. Então ele tem que ir para o promotor. O promotor vai verificar se tem diligências ainda a serem realizadas, investigações que ele entende pertinentes e, depois, o juiz que vai deferir esse retorno dos autos à delegacia de polícia para a continuidade das investigações. Até, finalmente, ir para o promotor oferecer denúncia.
Há um projeto em São Paulo que pretende digitalizar todos os inquéritos policiais. Com essa plataforma, a investigação sai direto da Polícia para o Ministério Público e, em seguida, para o Judiciário. Isso pode acelerar a tramitação dos inquéritos e das ações?
Patrícia Alvarez Cruz — Embora seja extremamente positivo, no início, há um impacto negativo. Os funcionários demoram um pouco a se costumar com o processamento digital. Isso aconteceu nas varas. Eu vivi esse problema. Mas, superada essa dificuldade, não tenho dúvidas de que acelera o processamento. Mas, mesmo com a mudança, continuaremos com 111 mil inquéritos físicos, que não vão desaparecer da noite para o dia.
Qual é o principal objetivo da audiência de custódia?
Patrícia Alvarez Cruz — É verificar se o preso sofreu maus tratos. Não tenho dúvida nenhuma disso.
Maus tratos aos presos são um comportamento constante das autoridades?
Patrícia Alvarez Cruz — Óbvio que não sabemos exatamente o que aconteceu durante uma prisão, porque estamos distantes dessa prisão e da realidade policial. Mas é possível ter uma noção do que realmente houve ao analisar o exame de corpo de delito. É bem raro verificarmos lesões. Quando isso é ocorre, normalmente é porque o preso caiu durante a fuga ou resistiu à prisão. Há também casos de linchamento. Mas a quantidade de presos que alegaram violência policial para mim é enorme. Porém, em muitos casos, quando li o laudo não tinha absolutamente nada. Tem muita alegação infundada.
Linchamentos a criminosos são comuns em São Paulo?
Patrícia Alvarez Cruz — Lembro de alguns casos, sim. Não posso dizer que são muito frequentes, mas também não posso afirmar que é incomum. Normalmente acontece antes da chegada da polícia, porque as pessoas vão embora quando os policiais se aproximam, tanto que dificilmente eles conseguem apurar quem foi. Tenho a sensação de que a população está um pouco revoltada com a impunidade, e isso acaba levando à vingança privada, que é justamente o que a gente tenta evitar por meio da Justiça.
A senhora avalia que uma parcela da magistratura é justiceira? Juízes garantistas são perseguidos pela classe?
Patrícia Alvarez Cruz — Os juízes garantistas não são perseguidos. Nunca vi um juiz ser perseguido, receber qualquer tipo de sanção administrativa por causa do seu convencimento. Nunca vi, em toda minha carreira. Sobre os juízes justiceiros, também não acredito que existam. A maior parcela dos juízes é moderada.
A senhora considera que reincidentes, mesmo presos por crimes sem violência, devem permanecer detidos? A ausência de violência durante o crime é o que mais deve ser considerado na hora de manter uma pessoa presa ou solta?
Patrícia Alvarez Cruz — Via de regra, o reincidente, se for reincidente específico ou pela prática de um crime mais grave ainda, não faz jus nem à pena restritiva de direitos nem à suspensão constitucional da pena. Por isso, vai ser aplicado a ele um regime fechado ou semiaberto. Nós normalmente mantemos preso um reincidente, porque, na sentença, ele vai continuar preso. Não tem sentido nenhum soltar esse acusado para que depois ele receba uma pena em regime fechado ou em regime semiaberto.
Além disso, existem crimes graves que são cometidos sem violência. O tráfico é um exemplo de delito que não demanda violência nem grave ameaça e é um crime gravíssimo. Tanto que ele é equiparado a hediondo pela lei. O tráfico envolve um tipo de violência, basta ver o que acontece no Rio de Janeiro. Sem o tráfico de drogas, acho que a violência nem existiria nas favelas do Rio. Independentemente da violência, o tráfico tem que ser encarado como um crime grave, do meu ponto de vista.
Mas isso não pode ser entendido como cumprimento prévio da pena?
Patrícia Alvarez Cruz — Não, é simplesmente uma medida cautelar. Porque, se é reincidente, o preso está tornando a delinquir e oferece um risco à sociedade.
Como a senhora avalia a jurisprudência do STJ e do Supremo sobre o princípio da insignificância?
Patrícia Alvarez Cruz — Não aplico o princípio da insignificância.
Por quê?
Patrícia Alvarez Cruz — Porque não está previsto em lei. É construção jurisprudencial.
Se não é previsto, então por que o princípio é aplicado?
Patrícia Alvarez Cruz — Porque se construiu essa jurisprudência. Simples assim. Alguém começou decidindo assim, o outro acompanhou e, quando vimos, várias estavam decidindo assim, até os tribunais superiores, mas isso não significa que seja uma medida legal.
A senhora é a favor da prisão após condenação em segunda instância?
Patrícia Alvarez Cruz — Sou favorável à prisão após o esgotamento dos recursos em segunda instância e concordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal no HC 126.292, pois a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência.
A interpretação do artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal que se dá pelos que são contrários a essa ideia é demasiadamente extensiva. Não fosse assim, não poderíamos admitir as prisões em flagrante e preventiva, todas anteriores ao trânsito em julgado. Além disso, é preciso considerar que a análise do mérito se esgota no segundo grau, não sendo, por isso, razoável aguardar, para a execução da pena, o julgamento dos recursos nos tribunais superiores.
Levando em conta a situação do nosso sistema carcerário, a senhora avalia que os juízes, ao condenarem uma pessoa à prisão, devem levar em consideração o local onde ela ficará presa?
Patrícia Alvarez Cruz — Seria muito difícil um juiz conseguir decidir se ele parasse para pensar nisso o tempo todo. Essa não é uma questão que diz respeito ao Judiciário, ela é exclusiva do Poder Executivo. Não temos gerência sobre isso, então é preciso separar as duas coisas. Para o juiz ser objetivo e fazer o trabalho dele, ele tem que separar isso.
A senhora concorda com a criação do juízo de garantias?
Patrícia Alvarez Cruz — Sou a favor do modelo atual. É muito importante para o juiz instruir o processo, porque ele precisa conhecer o réu, saber com quem está lidando. Esse contato que o juiz tem com a testemunha, com a vítima, com os réus é extremamente importante. Por exemplo, em um crime de estupro, o juiz precisa ouvir a vítima para poder averiguar. Normalmente, casos de estupro não têm testemunha. É essencial o juiz instruir o processo que vai julgar.
Isso vale para todo e qualquer crime?
Patrícia Alvarez Cruz — Sim.
A senhora aproveita as provas do inquérito nos processos que julga?
Patrícia Alvarez Cruz — Se estiverem corroboradas com a prova em juízo, sim. Mas, se eu estiver em uma situação em que só tenho prova de inquérito, não, até porque existe vedação legal. Mas há outros meios, por exemplo, a palavra de policiais. Porém, em certas ocasiões, não temos a palavra da vítima, porque ela desapareceu. Mas se a palavra dos agentes de segurança corroborar com o que foi colhido junto à vítima na fase policial, conseguimos aproveitar.
São válidas decisões tomadas apenas com base na palavra dos policiais? Não ferem o contraditório e a ampla defesa?
Patrícia Alvarez Cruz — Não fere o contraditório ou a ampla defesa, porque o policial vai ser ouvido e questionado pela acusação e pela defesa. Agora, não faz sentido o Estado escolher pessoas para reprimirem ou prevenirem o crime e depois negar crédito ao que eles dizem. Via de regra, a gente deve presumir que é legítima a atuação dos agentes do Estado. É óbvio que isso vai depender do caso. Muitas vezes a palavra do policial não é convincente. Mais uma razão pela qual é pedido que o juiz deva instruir o processo. O juiz tem sensibilidade e experiência para perceber se algum policial não está sendo sincero. Muitas vezes eu não me convenci com a palavra dos policiais e absolvi.
Grande parte das pessoas levadas às audiências de custódia aparecem algemadas. Se há súmula do STF com restrições à prática [Súmula Vinculante 11], por que presos por crimes sem violência são levados ao juízo algemados mesmo com a Polícia Militar ao lado?
Patrícia Alvarez Cruz — Porque temos um contingente de mais ou menos 160 presos por dia para 19 policiais. Seria impossível manter a ordem e garantir a segurança de milhares de pessoas que circulam pelo fórum todos os dias.
Por que o acusado, quando é solto pelo juiz na audiência de custódia, não pode sair da audiência sem algema?
Patrícia Alvarez Cruz — Ele é solto depois, com o alvará de soltura. É uma questão de organização, porque isso é da alçada da escolta — é ela que deve decidir o que funciona melhor, porque é preciso passar por todos os procedimentos até cumprir o alvará. E porque, de qualquer forma, algum risco ele sempre acaba oferecendo. Mesmo os réus soltos são levados escoltados para fora do fórum. Já aconteceu muitas vezes de réu solto ficar circulando pelo fórum com o objetivo de cometer crimes. Também já aconteceu de colegas serem abordados por pessoas que tinham acabado de ser soltas em audiência de custódia.
Já houve assalto dentro do próprio fórum criminal?
Patrícia Alvarez Cruz — Assalto não, mas, sim, já houve furto de caneta de juiz dentro de gabinete. Eu presenciei dois casos [de furto de celular]. Um de uma defensora pública que estava defendendo o réu. No que ela foi conversar comigo no gabinete, ele [réu] entrou no gabinete dela e furtou o celular. Teve outro caso que furtaram o celular da minha estagiária lá no cartório.
A pressão pública torna mais fácil condenar do que absolver, na sua opinião?
Patrícia Alvarez Cruz — É muito mais difícil condenar do que absolver, porque é muito mais trabalhoso. Temos que aplicar pena. A aplicação da pena, a dosimetria, é a parte mais complicada da sentença. Também porque colher uma prova para condenar é mais difícil do que colher uma prova para absolver.
Normalmente uma prova para absolver é uma prova em que eu não consegui mover muitas testemunhas... Sobre a pressão pública, muitos juízes já sofreram grandes críticas da imprensa por terem condenado, na mesma medida em que foram criticados por absolver. O Judiciário, em geral, tem sido muito criticado.
Por que essas críticas têm sido tão intensas?
Patrícia Alvarez Cruz — Talvez por causa da internet. Hoje em dia é muito fácil criticar. Qualquer leigo monta um blog e sai por aí criticando. Acho que todos os setores da sociedade têm sido muito criticados.
Existe possibilidade de recuperar o preso no sistema prisional brasileiro? Mesmo com o caos carcerário — falta de infraestrutura, péssimas condições e alimentação ruim?
Patrícia Alvarez Cruz — Acredito que sim. Já vi sujeito que se arrependeu, foi procurar saber qual era a pena que ele tinha que cumprir, porque queria pagar pelo erro dele. Agora, não sei te dizer se é o sistema que corrige ou se é a própria pessoa que se corrige. É difícil. Isso é muito subjetivo.
Se o próprio Supremo já declarou que o sistema carcerário está em um Estado de Coisas Inconstitucional, enviar uma pessoa para o cárcere por determinado crime sem violência ou sem reincidência não seria uma forma de descumprir jurisprudência?
Patrícia Alvarez Cruz — Não. Em primeiro lugar, vamos separar as coisas. Em crime sem violência e sem reincidência, é muito raro a gente enviar para o cárcere. Porque a própria lei cuida de evitar isso. Um sujeito primário que é condenado a uma pena de até quatro anos não pode ser preso. Nos outros crimes, não sendo reincidente, normalmente ele recebe uma pena restritiva de direitos.
É balela dizer que as pessoas vão para a cadeia, mas não cometeram crime com violência nem grande ameaça ou são primárias. Desconheço casos assim. Quando mandamos alguém para a cadeia, é porque o sujeito é reincidente — se for o caso do crime sem violência nem grave ameaça. Já no caso de reincidência, se enviar uma pessoa reincidente para a cadeia é inconstitucional, não precisa mais de juiz. E não seria descumprir jurisprudência, meu Deus. O próprio Supremo Tribunal envia pessoas para a cadeia. Ou não envia? No Mensalão não enviou? Não havia muitos réus primários entre elas?
Muito se fala sobre a precariedade e defasagem das vagas do sistema carcerário, que muitos desses presos ainda não foram condenadas...
Patrícia Alvarez Cruz — Mas alguém já parou para pensar que esses 40% são móveis? Enquanto tem 40% que o processo está em andamento, tem os outros 60% que já estão condenados. Daqui a pouco esses 40% já estão condenados, aí vão aparecer mais 40%. Porque mais 40% cometeram crimes. Isso não é falha da Justiça. Isso é simplesmente porque as pessoas continuam cometendo crimes. Cessaria se as pessoas parassem de cometer crimes.
Como a senhora avalia os termos do indulto concedido pelo presidente Michel Temer em dezembro?
Patrícia Alvarez Cruz — O indulto, via de regra, é benevolente demais. Indulto não foi feito para esvaziar a cadeia, é uma figura para ser usada em casos especiais. A impressão que tenho é que tem servido como instrumento para aliviar a superpopulação carcerária. Não é esse o objetivo do instituto.
Uma vez ouvi de um criminalista que o indulto é uma espécie de pino de panela de pressão, que é um pouco levantado para tirar o excesso da pressão e o presídio não explodir.
Patrícia Alvarez Cruz — Pois é. Mas é esse o papel do Estado?
Qual é o papel do Estado nessa questão?
Patrícia Alvarez Cruz — Do indulto, não saberia dizer. Teria que fazer uma análise profunda sobre as origens do indulto. Mas, por exemplo, o papel do Judiciário é fazer Justiça. O papel do Judiciário não é atuar em favor do Poder Executivo nem fazer as vezes do Poder Executivo para resolver o problema carcerário.
O Judiciário também tem culpa no caos carcerário atual?
Patrícia Alvarez Cruz — Acredito que não. Qual seria a culpa do Judiciário?
Falta de correições efetivas, talvez...
Patrícia Alvarez Cruz — Correição é o que mais tem. Aqui, quem faz correição é uma juíza auxiliar. Toda quarta-feira ela sai para fazer correição em cadeia. Isso porque temos poucas cadeias com presos. Salvo engano são cinco. Existe uma fiscalização muito boa, também no juízo das execuções criminais. Não quero crer que meus colegas sejam levianos. Quando eu fazia correição em cadeia, conversava preso por preso, um por um. Nunca fiz uma correição que não fosse assim e quero crer que meus colegas também atuem com responsabilidade.
A cadeia humaniza aqueles que convivem nesse meio, por exemplo, juízes, promotores e advogados?
Patrícia Alvarez Cruz — Sim. Não ignoro as deficiências do sistema carcerário, mas, ao decidir, tenho a árdua tarefa de ponderar se o que deve prevalecer é o direito do indivíduo ou a segurança da sociedade. Já fui juíza corregedora de cadeias públicas e, nessa condição, conheci bem a situação dos presos. Ao proferir uma sentença condenatória ou decisão que envolva a prisão de qualquer um, é evidente que levo em consideração as dificuldades que o preso enfrenta no sistema prisional. Mas não é possível prever, porque ao decidir não temos a noção exata das condições desse ou daquele presídio, nem mesmo, devido às transferências, de em qual deles a pena será cumprida, qual será a realidade concreta daquele preso.
Há presídios melhores e piores e os juízes de conhecimento, em oposição aos das Execuções Penais, não têm informações suficientes a respeito de cada qual, individualmente. Além disso, é necessário fazer uma opção entre a liberdade do preso e a segurança da sociedade. Muitas vezes é preciso sacrificar a liberdade de um indivíduo que representa perigo à coletividade em nome da segurança e da ordem pública. Esse difícil dilema só pode ser resolvido caso a caso. É por isso que, ao analisar cada hipótese concreta, reservamos apenas aos indivíduos mais perigosos, ou aqueles que insistem em delinquir, a solução mais extrema, que é o encarceramento.
A senhora foi acusada de ter sido muito dura com um réu que roubou quatro latas de atum porque ele teria chegado atrasado à audiência. Como foi isso?
Patrícia Alvarez Cruz — Essa questão foi até veiculada na imprensa na época. A Defensoria Pública estava pelo réu assim como o Ministério Público estava pela acusação. A Defensoria tinha todo o interesse de veicular essa matéria dessa forma. A defensora pública que atuou no caso me disse que levaria o caso à imprensa. Ela ficou pessoalmente revoltada com a decisão. Mas o que aconteceu foi o seguinte: o réu era reincidente e foi beneficiado pela liberdade provisória. Deixei que ele ficasse solto o processo inteiro.
No dia da audiência, ele tinha a obrigação de comparecer, mas ele não apareceu. Nesses casos, inclusive, a lei manda prender e essa é, normalmente, minha conduta, exceto quando o sujeito não é reincidente. O sujeito é reincidente, a Justiça dá uma chance para ele — “olha, você vai ficar em liberdade, vai para sua casa, mas você apareça aqui no dia da audiência — e ele não aparece no dia da audiência... O que eu fiz é o que eu normalmente faria: revoguei a liberdade provisória e decretei a prisão. Fiz a sentença e fui fazer outras coisas relacionadas ao meu trabalho. Uma hora depois de ter feito a decisão, ele apareceu. Aí enfrentei outro problema: o de não poder revisar minha própria decisão.
Não tinha o que fazer?
Patrícia Alvarez Cruz — Já tinha uma determinação de prisão. A defensora veio conversar comigo, mas a sentença já tinha sido publicada. Tem que cumprir a ordem de prisão, tem que cumprir o mandato.
A senhora também foi criticada por ter fixado pena de quatro anos em regime fechado a uma ré primária por roubo. A senhora poderia detalhar melhor essa caso?
Patrícia Alvarez Cruz — Isso aconteceu não só uma vez, mas muitas. Já condenei diversas vezes casos de roubo, regime fechado, com pena de quatro anos, porque é a pena do roubo. Não sou a única, pelo menos metade dos juízes da Barra Funda e metade dos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo já julgaram dessa forma. Isso não é uma coisa fora do normal.
Foi veiculado na imprensa que, depois da sua posse na chefia do Dipo, o número de prisões na audiência de custódia aumentou 90%. Esse levantamento foi divulgado pelo Dipo? É um número oficial?
Patrícia Alvarez Cruz — O número oficial é 66%. De onde surgiu esse outro número só a própria imprensa pode me informar. Não sei de onde eles tiraram.
A senhora é vista, principalmente pela advocacia, como uma juíza excessivamente dura e também está sendo tratada na imprensa como uma juíza que pode não fazer bem às audiências de custódia. O que a senhora tem a dizer sobre isso?
Patrícia Alvarez Cruz — Os advogados, obviamente, preferem juízes menos duros, porque é do interesse dos bens deles. Não acredito que eu seja dura. Sou firme. Prezo muito pelo respeito alheio. Agora, do mesmo jeito que sou firme com um preso, com um réu, um autuado, sou firme, por exemplo, com a atividade da polícia.
Caso saiba, por exemplo, que um réu foi vítima de maus tratos ou de violência policial, pode ter certeza absoluta que vou ser firme com o policial que cometeu esses abusos, da mesma forma que eu sou com o réu. O que tenho é uma postura firme diante da criminalidade em geral. Seja ela de colarinho branco, do réu mais humilde ou do policial. Aliás, sou mais firme ainda quando um funcionário público comete um crime do que uma pessoa comum.
Por quê?
Patrícia Alvarez Cruz — Porque o funcionário público tem a obrigação de zelar pelo que é público. Ele recebe do Estado para atender à população.
O juiz federal Marcelo Bretas afirmou em uma entrevista que a Justiça precisa ser temida. A senhora concorda com essa afirmação?
Patrícia Alvarez Cruz — Não acho que a Justiça tenha que ser temida. Tem que ser respeitada.
Por Brenno Grillo
Fonte: Conjur