goo.gl/fiY3EC | Por mais autoritário que o Juiz possa ser, ele decide conforme sua consciência?
A filosofia da consciência, considerada como paradigma da subjetividade, é ponto de partida para a análise filosófica da linguagem a partir de Wittgenstein, da compreensão em Heidegger e da hermenêutica filosófica de Gadamer. No plano jurídico, trata-se de tema intimamente ligado à contestável discricionariedade judicial, normalmente retratada pela frase “o Juiz decide conforme sua consciência”.
Quando o termo “consciência” começou a ser utilizado ainda no século XVII, possuía dois significados muito distintos, quais sejam, a partilha do conhecimento em comum e a percepção interior privada (WEBB, 1986, p. 37). Modernamente, o termo tem sido utilizado predominantemente no seu segundo sentido, ou seja, como algo que ocorre na mente do indivíduo.
A filosofia da consciência, que tem como principais representantes Descartes e Kant, estabelece que o primeiro fato humano é a relação sujeito-objeto, sustentando a ideia de que o sujeito, ao buscar o conhecimento, fundamenta suas decisões numa subjetividade soberana. Nessa visão, o sujeito se torna quase absoluto na construção do conhecimento.
Em outras palavras, trata-se de um paradigma mentalístico que precede o paradigma linguístico de Wittgenstein. Enquanto aquele tem como conteúdo o sujeito, este apresenta como conteúdo as proposições. Além disso, aquele pergunta “o que posso saber?”, enquanto este tem como questão inicial “o que posso entender?”, conforme Reese-Schäfer (2010, p. 53).
Somente com Descartes a noção de consciência passou a ter as características em razão das quais seria universalmente acolhida na filosofia ocidental. Nas palavras de Heidegger (2012, 93):
Com o cogito sum, Descartes pretende assentar a filosofia sobre um solo novo e seguro. Mas o que ele deixa indeterminado nesse começo ‘radical’ é o modo-de-ser da res cogitans, mais precisamente, o sentido-do-ser do ‘sum’. A elaboração dos fundamentos ontológicos inexpressos no cogito sum caracteriza a parada na segunda etapa no caminho do retorno destrutivo na história da ontologia. A interpretação não somente aduz a prova de que Descartes deveria omitir a questão-do-ser em geral, mas mostra também o porquê de sua opinião segundo a qual o ‘ser certo’ absoluto do cogito o desobrigava de perguntar pelo sentido-de-ser desse ente.
Na linha da crítica realizada por Heidegger, observa-se que Descartes acentuava o cogito (penso), mas não se preocupava com a abordagem filosófica do sum, enfatizando, assim, o pensamento, a consciência, em detrimento da própria ideia de ser. Trata-se da elevação do pensamento ao zênite, sem que igual se faça ao sum, o que nada mais é do que a filosofia da consciência ou paradigma da subjetividade.
Em outros termos, apesar de Descartes ter descoberto o cogito sum como ponto inicial da interrogação filosófica moderna, deixa “inteiramente fora de discussão o sum, não obstante a posição do sum seja tão originária como a do cogito” (HEIDEGGER, 2012, p. 149).
Com efeito, o cogito ergo sum (penso, logo existo) é a autoevidência existencial do pensamento, isto é, a garantia que o pensamento como consciência tem da sua própria existência (ABBAGNANO, 2012, p. 219).
Em Descartes, a filosofia da consciência teria como pressuposto o fato de que a racionalidade é do homem, motivo pelo qual seria ele quem encontraria a fonte do conhecimento.
O subjetivismo defendido pela filosofia da consciência não se confunde com o ceticismo, porquanto este afirma que não há verdade alguma, ideia contrária ao subjetivismo, que defende a existência da verdade, mas com uma limitação quanto a sua validade.
Dessa forma, segundo o subjetivismo, a validade da verdade se restringe ao sujeito que conhece e que julga, não havendo nenhuma verdade absoluta. O conhecimento humano dependeria de fatores que residem no sujeito cognoscente (HESSEN, 2003, p. 36-37).
É demasiadamente fácil perceber o equívoco do subjetivismo, como esclarece com enorme precisão Hessen (2003, p. 38-39), ao afirmar que o subjetivismo apresenta uma contradição na medida em que, para defender que “toda verdade é subjetiva”, utiliza-se de uma validade também subjetiva. Em outras palavras, quando o subjetivista formula esse juízo, não pensa que tal juízo teria validade apenas para ele, enquanto para os outros não teria qualquer validade, de maneira que, se outra pessoa afirmasse que “com o mesmo direito com que você diz que toda verdade é subjetiva, eu digo que toda verdade tem validade universal”, o subjetivista não concordaria. Portanto, o subjetivista atribui validade universal a seu juízo, estando convencido de que seu juízo está correto e traduz um estado de coisas objetivo, razão pela qual claramente pressupõe a validade universal da verdade que nega teoricamente.
O solipsismo, como expressão da filosofia da consciência e da soberania da subjetividade, argumenta que a verdade decorre da representação mental do sujeito, não como alguém que dialoga com o mundo, mas como um sujeito isolado a partir de quem surgiria a própria verdade. Nega-se o existencial e o paradigma linguístico, concedendo um poder enorme ao sujeito, qual seja, a criação da verdade a partir de sua consciência. Com efeito, o solipsismo seria, como define Maslin (2009, p. 294), “a visão de que apenas o próprio eu e suas experiências existem. Uma versão fraca acrescentaria ‘tanto quanto o eu possa dizer’.”
No Direito, considerar que a consciência pode definir um conceito jurídico seria retirar deste sua função – estabelecer parâmetros para a comunicação – em prol de uma discricionariedade que afastaria a tradição linguística. Em outras palavras, o sujeito, na subjetividade de sua consciência, poderia, por exemplo, considerar que “lei” não é o que conhecemos como “lei”, mas sim o que conhecemos como “sentença judicial”. Assim, apossando-se do “conceito” “lei”, o sujeito não teria um conceito, porquanto formado unicamente em sua consciência. Por esse motivo, conforme esclarece Streck (2013, p. 34), “o solipsismo judicial, o protagonismo e a prática de discricionariedades se enquadram paradigmaticamente no ‘paradigma epistemológico da filosofia da consciência’.”
Ora, o Juiz não decide conforme sua consciência, porque sempre está imerso em uma tradição, com os preconceitos (juízos prévios) oriundos da linguagem. Dizer que um Juiz decide conforme sua consciência é afastar o fato de que tal Juiz, como qualquer outra pessoa, não pode se afastar do seu mundo para decidir. Noutras palavras, o existencial define suas decisões.
REFERÊNCIAS:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi; Ivone Castilho Benedetti. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Fausto Castilho: Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Trad. João Vergílio Gallerani Cuter. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MASLIN, K. T. Introdução à filosofia da mente. Trad. Fernando José R. da Rocha. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.
REESE-SCHÄFER, Walter. Compreender Habermas. Trad. Vilmar Schneider. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2010.
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
WEBB, Eugene. Filósofos da consciência: Polanyi, Lonergan, Voegelin, Ricoeur, Girard, Kierkegaard. Trad. Hugo Langone. Lisboa: Edições 70, 1986.
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Por Evinis Talon
Fonte: Jus Brasil
A filosofia da consciência, considerada como paradigma da subjetividade, é ponto de partida para a análise filosófica da linguagem a partir de Wittgenstein, da compreensão em Heidegger e da hermenêutica filosófica de Gadamer. No plano jurídico, trata-se de tema intimamente ligado à contestável discricionariedade judicial, normalmente retratada pela frase “o Juiz decide conforme sua consciência”.
Quando o termo “consciência” começou a ser utilizado ainda no século XVII, possuía dois significados muito distintos, quais sejam, a partilha do conhecimento em comum e a percepção interior privada (WEBB, 1986, p. 37). Modernamente, o termo tem sido utilizado predominantemente no seu segundo sentido, ou seja, como algo que ocorre na mente do indivíduo.
A filosofia da consciência, que tem como principais representantes Descartes e Kant, estabelece que o primeiro fato humano é a relação sujeito-objeto, sustentando a ideia de que o sujeito, ao buscar o conhecimento, fundamenta suas decisões numa subjetividade soberana. Nessa visão, o sujeito se torna quase absoluto na construção do conhecimento.
Em outras palavras, trata-se de um paradigma mentalístico que precede o paradigma linguístico de Wittgenstein. Enquanto aquele tem como conteúdo o sujeito, este apresenta como conteúdo as proposições. Além disso, aquele pergunta “o que posso saber?”, enquanto este tem como questão inicial “o que posso entender?”, conforme Reese-Schäfer (2010, p. 53).
Somente com Descartes a noção de consciência passou a ter as características em razão das quais seria universalmente acolhida na filosofia ocidental. Nas palavras de Heidegger (2012, 93):
Com o cogito sum, Descartes pretende assentar a filosofia sobre um solo novo e seguro. Mas o que ele deixa indeterminado nesse começo ‘radical’ é o modo-de-ser da res cogitans, mais precisamente, o sentido-do-ser do ‘sum’. A elaboração dos fundamentos ontológicos inexpressos no cogito sum caracteriza a parada na segunda etapa no caminho do retorno destrutivo na história da ontologia. A interpretação não somente aduz a prova de que Descartes deveria omitir a questão-do-ser em geral, mas mostra também o porquê de sua opinião segundo a qual o ‘ser certo’ absoluto do cogito o desobrigava de perguntar pelo sentido-de-ser desse ente.
Na linha da crítica realizada por Heidegger, observa-se que Descartes acentuava o cogito (penso), mas não se preocupava com a abordagem filosófica do sum, enfatizando, assim, o pensamento, a consciência, em detrimento da própria ideia de ser. Trata-se da elevação do pensamento ao zênite, sem que igual se faça ao sum, o que nada mais é do que a filosofia da consciência ou paradigma da subjetividade.
Em outros termos, apesar de Descartes ter descoberto o cogito sum como ponto inicial da interrogação filosófica moderna, deixa “inteiramente fora de discussão o sum, não obstante a posição do sum seja tão originária como a do cogito” (HEIDEGGER, 2012, p. 149).
Com efeito, o cogito ergo sum (penso, logo existo) é a autoevidência existencial do pensamento, isto é, a garantia que o pensamento como consciência tem da sua própria existência (ABBAGNANO, 2012, p. 219).
Em Descartes, a filosofia da consciência teria como pressuposto o fato de que a racionalidade é do homem, motivo pelo qual seria ele quem encontraria a fonte do conhecimento.
O subjetivismo defendido pela filosofia da consciência não se confunde com o ceticismo, porquanto este afirma que não há verdade alguma, ideia contrária ao subjetivismo, que defende a existência da verdade, mas com uma limitação quanto a sua validade.
Dessa forma, segundo o subjetivismo, a validade da verdade se restringe ao sujeito que conhece e que julga, não havendo nenhuma verdade absoluta. O conhecimento humano dependeria de fatores que residem no sujeito cognoscente (HESSEN, 2003, p. 36-37).
É demasiadamente fácil perceber o equívoco do subjetivismo, como esclarece com enorme precisão Hessen (2003, p. 38-39), ao afirmar que o subjetivismo apresenta uma contradição na medida em que, para defender que “toda verdade é subjetiva”, utiliza-se de uma validade também subjetiva. Em outras palavras, quando o subjetivista formula esse juízo, não pensa que tal juízo teria validade apenas para ele, enquanto para os outros não teria qualquer validade, de maneira que, se outra pessoa afirmasse que “com o mesmo direito com que você diz que toda verdade é subjetiva, eu digo que toda verdade tem validade universal”, o subjetivista não concordaria. Portanto, o subjetivista atribui validade universal a seu juízo, estando convencido de que seu juízo está correto e traduz um estado de coisas objetivo, razão pela qual claramente pressupõe a validade universal da verdade que nega teoricamente.
O solipsismo, como expressão da filosofia da consciência e da soberania da subjetividade, argumenta que a verdade decorre da representação mental do sujeito, não como alguém que dialoga com o mundo, mas como um sujeito isolado a partir de quem surgiria a própria verdade. Nega-se o existencial e o paradigma linguístico, concedendo um poder enorme ao sujeito, qual seja, a criação da verdade a partir de sua consciência. Com efeito, o solipsismo seria, como define Maslin (2009, p. 294), “a visão de que apenas o próprio eu e suas experiências existem. Uma versão fraca acrescentaria ‘tanto quanto o eu possa dizer’.”
No Direito, considerar que a consciência pode definir um conceito jurídico seria retirar deste sua função – estabelecer parâmetros para a comunicação – em prol de uma discricionariedade que afastaria a tradição linguística. Em outras palavras, o sujeito, na subjetividade de sua consciência, poderia, por exemplo, considerar que “lei” não é o que conhecemos como “lei”, mas sim o que conhecemos como “sentença judicial”. Assim, apossando-se do “conceito” “lei”, o sujeito não teria um conceito, porquanto formado unicamente em sua consciência. Por esse motivo, conforme esclarece Streck (2013, p. 34), “o solipsismo judicial, o protagonismo e a prática de discricionariedades se enquadram paradigmaticamente no ‘paradigma epistemológico da filosofia da consciência’.”
Ora, o Juiz não decide conforme sua consciência, porque sempre está imerso em uma tradição, com os preconceitos (juízos prévios) oriundos da linguagem. Dizer que um Juiz decide conforme sua consciência é afastar o fato de que tal Juiz, como qualquer outra pessoa, não pode se afastar do seu mundo para decidir. Noutras palavras, o existencial define suas decisões.
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REFERÊNCIAS:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi; Ivone Castilho Benedetti. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Fausto Castilho: Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Trad. João Vergílio Gallerani Cuter. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MASLIN, K. T. Introdução à filosofia da mente. Trad. Fernando José R. da Rocha. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.
REESE-SCHÄFER, Walter. Compreender Habermas. Trad. Vilmar Schneider. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2010.
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
WEBB, Eugene. Filósofos da consciência: Polanyi, Lonergan, Voegelin, Ricoeur, Girard, Kierkegaard. Trad. Hugo Langone. Lisboa: Edições 70, 1986.
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Por Evinis Talon
Fonte: Jus Brasil